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A novela da mata atlântica

Após catorze anos de expectativas e pressões políticas, parece que se aproxima do fim a novela em que se transformou a promulgação do PL da mata atlântica.

17 de fevereiro de 2006 · 18 anos atrás

Popularmente conhecido como Projeto de Lei da Mata Atlântica, o PL 3.285, de 1992, tem como objetivo regulamentar o § 4° do art. 225 da Constituição Federal e, mais especificamente, a utilização e a proteção do chamado “bioma mata atlântica”. Após apenas algumas emendas superficiais do Senado, o PL deve voltar em breve para a sua casa de origem, a Câmara, antes de ir para sanção presidencial. Já não era sem tempo.

Se promulgado com a redação atual, o PL poderá significar o fim de muitas das desculpas utilizadas até hoje por quem ainda desmata – literalmente. Em primeiro lugar, ele traz a definição detalhada de o que é a mata atlântica: “Floresta Ombrófila Densa, Floresta Ombrófila Mista, também denominada de Mata de Araucárias, Floresta Ombrófila Aberta, Floresta Estacional Semidecidual e Floresta Estacional Decidual, bem como os manguezais, as vegetações de restingas, campos de altitude, brejos interioranos e encraves florestais do Nordeste”. Ou seja, tudo o que se encaixar em alguma dessas definições – incluídas aí as florestas de araucárias – e que represente o bioma em seu primário – virgem – ou em estado de recuperação secundário, estará protegido por lei específica.

A passos miúdos

É um passo importante. Muitas árvores já foram perdidas enquanto se discutia se uma pequena mancha de vegetação nas terras de alguém era, ou não, mata atlântica, protegida constitucionalmente. Mas o PL delega para o CONAMA a tarefa de definir, em 180 dias, o que seriam os estados primário e secundário de recuperação. Seria um passo técnico demais para os nossos legisladores tentarem definir isso também? Provavelmente não. Em catorze anos até um jabuti é capaz de aprender os termos técnicos necessário. Ou, pelo menos, consultar quem os saiba. Nossos nobres parlamentares não o fizeram.

Outra inovação bem-vinda com o PL é a criação de incentivos, fiscais e creditícios, para quem decidir preservar remanescentes de mata atlântica. Mas, mais uma vez, o PL deixou de ir até onde poderia. Ele estabelece incentivos econômicos para a proteção e o uso sustentável da mata atlântica, mas é só isso o que ele faz. Literalmente. O PL não aponta quem dará tais incentivos. Ou como o fará. Ou quando. Enfim, nossos legisladores, mais uma vez, lançaram idéias e princípios no vazio.

Os únicos benefícios reais que o PL cria para incentivar os particulares são de natureza creditícia. Ou seja, o proprietário de terra ou posseiro “que tenha vegetação primária ou secundária em estágios avançado e médio de regeneração do Bioma Mata Atlântica receberá das instituições financeiras benefícios creditícios”, sendo eles: “prioridade na concessão de crédito agrícola, para os pequenos produtores rurais e populações tradicionais; prazo diferenciado para pagamento dos débitos agrícolas, nunca inferior a 50% do tempo normal do financiamento; e juros inferiores aos cobrados, com desconto que será, no mínimo, de 25% do índice ordinário”.

Talvez a mais significativa novidade trazida pelo Projeto seja a alteração que ele faz no art. 66 da Lei de Crimes Ambientais. Inserindo um parágrafo único a esse artigo, o PL inova consideravelmente. Faz incidir sobre os auditores ambientais, os responsáveis técnicos de obras, planos ou projetos potencialmente causadores de impactos ambientais, e os integrantes de equipe multidisciplinar de avaliação de impactos ambientais, que façam afirmações falsas, omitam ou soneguem informações ou dados técnicos em processos de autorização e licenciamento ambiental, as mesmas penas que incidem sobre os funcionários públicos nesses casos, que vai de 1 a 3 anos de reclusão – prisão – e multa.

Fundo sem fundos

O Projeto também cria o Fundo de Restauração do Bioma Mata Atlântica, “destinado ao financiamento de projetos de restauração ambiental e de pesquisa científica”. Seus recursos, segundo o texto, serão provenientes de dotações orçamentárias da União; de doações e contribuições de pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou internacionais; de rendimentos de qualquer natureza decorrentes da aplicação de seu patrimônio; e de “outros, destinados em lei”. Tem cheiro de fiasco.

Em primeiro lugar, a União não é dada a distribuir, de bom grado, fundos para a causa ambiental. Nem mesmo quando é obrigada. Nesse caso, sem um valor ou um percentual definido, fica difícil acreditar que uma quantidade significativa de dinheiro público vá parar nesse fundo.

Quanto às doações e contribuições de particulares, enquanto a única coisa que eles ganharem com isso for um alívio na consciência, o fundo deve ficar a ver navios. Por que a lei não estipulou incentivos fiscais, ou de qualquer outra natureza, para quem doar dinheiro para esse fundo, não dá para entender. Que outro motivo as grandes empresas – os maiores mantenedores hipotéticos desse fundo – terão para não colocar seus lucros em outros fundos, que efetivamente rendam alguma coisa?

E, por último, alguém acredita em “outros, destinados em lei”? E em mula sem cabeça?

É, portanto, tempo de celebrar para aqueles que se preocupam com o futuro desse verdadeiro tesouro de biodiversidade do qual temos sido espoliados diariamente, certo? Sem dúvida. Mas o PL, mais do que tudo, evidencia como são tímidos e conservadores – além de lentos – os esforços legislativos ambientais no país. Por isso a nova lei que se aproxima é um avanço, não há dúvida, mas depois de catorze anos de gestação, esse bebê poderia ter vindo mais bem acabado.

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