No debate sobre descarbonização e transição energética, o Brasil desponta como um ator estratégico, graças ao seu enorme potencial para energias renováveis. No entanto, enquanto o país busca se posicionar como líder no combate às mudanças climáticas, é essencial que isso seja feito de forma estruturada e com uma visão de longo prazo. A descarbonização não deve ser tratada como uma corrida, mas como um processo que respeite as particularidades socioeconômicas e ambientais do país, garantindo sustentabilidade e justiça social.
O tema volta às notícias com a tramitação do Projeto de Lei das Eólicas Offshore (PL 576/2021) no Senado Federal. O PL é entendido pelos proponentes como um avanço para o setor, pois permitirá ao país avançar na estruturação de uma cadeia de negócios e investimentos relacionadas à implementação de eólicas offshore, contribuindo para a segurança energética brasileira e com metas climáticas globais. Apesar disso, o projeto pode ser comparado a um “presente grego”¹, pois carrega diversos jabutis². Representando, desta forma, um verdadeiro retrocesso para a política energética nacional, de modo que trazem incentivos às políticas de carvão e gás.
Jabutis
O texto levanta sérias preocupações sobre os incentivos incluídos no Projeto de Lei das Eólicas Offshore, os quais enfraquecem o compromisso do Governo Federal com a transição energética do país. Um dos principais “jabutis” introduzidos é a prorrogação, por 22 anos, dos contratos federais das termelétricas a carvão, cujos contratos originais venceriam em 2028. Além disso, as alterações também garantem um prazo adicional de 3 anos para que projetos renováveis de até 30 megawatts possam acessar subsídios, ao mesmo tempo em que favorecem a contratação de termelétricas e pequenas hidrelétricas.
Essas mudanças não apenas representam um retrocesso nas políticas de transição energética, visto que mantém investimentos em fontes de energia poluentes e impactantes ao meio ambiente, mas também podem impactar diretamente a conta de luz dos brasileiros. A Frente Nacional dos Consumidores de Energia estima que os “jabutis” poderão resultar em um aumento de até R$ 658 bilhões nos custos, o que representaria um acréscimo de 11% na tarifa de energia elétrica, intensificando a pobreza energética no país.
Para além dos jabutis
Mesmo que os jabutis não tivessem sido inseridos no Projeto de Lei nº 576/2021, e o mesmo focasse apenas na regulamentação das Eólicas Offshore, o Brasil pode estar cedendo à pressão dos grandes investidores internacionais que estão com todos os olhos voltados para o mar brasileiro. O potencial eólico do Brasil tem atraído grande interesse, com estimativas de até 700 GW em águas de profundidade até 50 metros. Atualmente, há 96 solicitações para a instalação de parques eólicos offshore encaminhadas ao IBAMA, sendo a região Nordeste a mais requisitada, com 48 projetos propostos.
Apesar do entusiasmo em torno desse setor, trata-se de um movimento ainda bastante especulativo, dado que muitos projetos se sobrepõem e competem por áreas entre si e com outras atividades econômicas e ambientais. Essa situação levanta preocupações significativas sobre os impactos socioecológicos que podem surgir com a implementação dessa tecnologia no Brasil, especialmente considerando os desafios de compatibilizar as novas infraestruturas com o uso tradicional e sustentável das áreas marítimas.
Embora existam estudos baseados em experiências internacionais, eles refletem realidades distintas e não capturam a complexidade das interações sociais, econômicas e ambientais das regiões costeiras brasileiras. Por isso, é tão importante abordar os impactos com uma perspectiva ecossistêmica, considerando que as relações com o oceano e os usos das áreas marinhas no Brasil são extremamente diversificados e específicos. No Nordeste, por exemplo, além da riqueza natural das praias, que sustentam um forte potencial para o turismo de sol e praia, há atividades tradicionais como a pesca artesanal, importantes para a segurança alimentar e cultural.
Entre os impactos já mensurados, se destacam os danos à fauna marinha, especialmente às aves migratórias, que podem alterar suas rotas de voo e colidir com as torres. Além disso, há efeitos invisíveis para quem está fora d’água, mas que podem ter consequências globais, como as vibrações subaquáticas causadas pelas estruturas e as alterações nas correntes oceânicas, que podem afetar a dinâmica dos ecossistemas marinhos. Embora tenhamos dados obtidos pelo setor de óleo e gás, estes não refletem, necessariamente, as respostas que buscamos sobre a atividade eólica.
Tramitação
Para a aprovação de um Projeto de Lei, são seguidas várias etapas que devem garantir uma avaliação detalhada e um debate aprofundado. Os projetos podem começar tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados, e as etapas variam conforme o ponto de início.
O Projeto das Eólicas Offshore (ou Eólicas no Mar), entrou na pauta da Comissão de Serviços de Infraestrutura (CI) na terça-feira 26 de novembro. No entanto, por solicitação do relator, senador Weverton Rocha, a análise foi adiada para a próxima semana. A matéria encontra-se na etapa de avaliação no Senado após aprovação e alterações feitas pela Câmara dos Deputados, que envolvem a introdução de “jabutis” no texto. Até a publicação deste texto, o parecer do relator ainda não foi divulgado publicamente.
Não é o momento
A aceleração na tramitação do PL 576/2021 levanta questões importantes sobre a falta de um debate aprofundado e transparente. O Brasil estará desenvolvendo o seu Planejamento Espacial Marinho (PEM) até 2030, um instrumento essencial para organizar e planejar o uso sustentável de seu espaço marítimo. Além disso, o IBAMA já manifestou preocupações com a pressa em avançar com a regulamentação das eólicas offshore. Para avaliar seus impactos, é importante fortalecer e aprimorar os instrumentos de licenciamento, como os estudos de impacto ambiental. Precisamos, também, destacar a ausência de mecanismos sólidos de consulta às populações costeiras e a necessidade de estudos mais abrangentes sobre os impactos socioambientais.
Dessa forma, fica evidente que o momento deveria ser dedicado à construção de um debate amplo e profundo sobre como essa regulamentação deve ocorrer, respeitando o tempo necessário para o avanço das pesquisas e a participação ativa das comunidades afetadas. Além disso, o mínimo que se espera é a retirada de todos os “jabutis” do projeto, pois estes não apenas desviam do objetivo central da proposta de lei, mas também comprometem a transição energética e o equilíbrio entre desenvolvimento e sustentabilidade.
Para saber mais
O que é a energia eólica no mar (offshore)?
Danos socioambientais das eólicas offshore
Nota
¹O termo “presente grego” remete à lenda do Cavalo de Troia, um presente que escondia soldados gregos e levou à queda de Troia. Refere-se a algo aparentemente vantajoso, mas prejudicial.
²O termo jabuti é usado como referência a elementos estranhos ao tema principal, mas contidos em uma matéria legislativa. Ganhou popularidade com a fala do então Deputado Ulysses Guimarães: “um jabuti não sobe em árvore, se está lá; foi pela enchente ou mão de gente”.
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