Com um potencial técnico estimado em 700 GW, considerando apenas águas de até 50 metros de profundidade e ventos acima de 7 m/s, a geração de energia elétrica por meio dos ventos em alto mar – conhecida como eólica offshore – é tida uma das grandes promessas da transição verde no Brasil no médio prazo. Os primeiros projetos começaram a ser protocolados no Ibama, órgão responsável pelo licenciamento ambiental, em meados da década passada. Aumentaram rapidamente em número: no início de 2022, pouco mais de 20 projetos constavam no mapa de Complexos Eólicos Offshore; em dezembro eram 70.
O interesse cada vez maior foi impulsionado, entre outros fatores, pela guerra na Ucrânia, que afetou o fornecimento de energia globalmente. O coordenador de Licenciamento Ambiental de Energia Nuclear, Térmica, Eólica e outras fontes alternativas do Ibama, Eduardo Wagner, conta que as empresas relataram ter adiantado os projetos já programados em até quatro anos, com foco na produção de hidrogênio verde, principalmente.
Com a chegada de mais projetos, os órgãos regulatórios identificaram a necessidade de buscar informações, conhecimentos e formação específica para esta modalidade inédita no país. O Brasil já possui expertise em plataformas de óleo e gás offshore, por exemplo, mas esta é uma modalidade que não se equipara em termos de impactos ecossistêmicos. Isso porque a exploração de petróleo e gás não requer uma área tão grande como a dos parques eólicos offshore, além de causar impactos mais pontuais, distantes da costa e sem ligação estrutural com o continente, como explica a professora Adryane Gorayeb, do Observatório da Energia Eólica da Universidade Federal do Ceará (UFC). Da mesma forma, a experiência que temos com as eólicas onshore (em terra) não servem de espelho para as estruturas que captam ventos no mar, porque os ecossistemas são distintos.
A Europa, com mais experiência no tema, serviu de inspiração e fonte de trocas importantes de conhecimento em eventos internacionais com a presença de técnicos brasileiros. Hoje, o país conta com uma regulamentação bastante robusta, principalmente por meio do Decreto nº 10.946, de 25 de janeiro de 2022, que reúne disposições para a cessão de exploração de recursos naturais para geração de energia elétrica offshore.
Além disso, o Roadmap, desenvolvido pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), tem por objetivo identificar barreiras e desafios, além de apontar recomendações, e o Termo de Referência do Ibama para estudo de impacto ambiental (EIA) e relatório de impacto ambiental (Rima) – que ficou em consulta pública por 90 dias e foi publicado no final de 2020 – traz diretrizes para o desenvolvimento dos estudos. Já o Estudo sobre Avaliação de Impactos compila algumas informações sobre o tema, com grande inspiração no caso europeu. Outra regulamentação bastante aguardada é o Projeto de Lei do Senado n° 576, de 2021, atualmente apensado ao PL n° 11247/2018, da Câmara dos Deputados; uma vez aprovada, esta matéria deve disciplinar a outorga de autorizações para aproveitamento de potencial energético offshore.
O caminho para a efetiva operacionalização de tais complexos, no entanto, apenas começa a ser percorrido: segundo o Plano Decenal de Expansão de Energia 2031, produzido pela EPE, esta modalidade de energia deve estar operante apenas em 2027. Os desafios a serem superados vão da estrutura portuária robusta e pontos de conexão à rede, até a análise dos impactos socioambientais.
Os parques eólicos offshore podem ser construídos com diferentes tecnologias – tipos de fundação, arranjo de cabos e instalação de turbinas, para citar algumas questões, podem variar. Em maior ou menor grau, no entanto, os impactos potenciais são múltiplos, como degradação do ecossistema, perda, perturbação e mudança de habitat, mortalidade de indivíduos ou mudança populacional e modificação negativa dos parâmetros ambientais.
Entre os projetos hoje protocolados, apenas dois apresentaram estudos de impacto, que foram recusados por não atenderem aos critérios. “O conceito-chave do licenciamento ambiental é uma boa caracterização ambiental, uma fotografia de como está o ambiente agora, seja no aspecto físico, biótico ou socioeconômico” explica Eduardo Wagner, do Ibama. “Se você fizer uma boa fotografia do ambiente hoje, você consegue fazer um prognóstico dos impactos ambientais, da instalação e da operação. Com isso você consegue propor as medidas de prevenção, mitigação e compensação”, diz.
Se a teoria é simples, a prática impõe barreiras. O Brasil ainda desconhece grande parte dos seus ecossistemas marinhos, por conta dos parcos investimentos em ciência. Alguns estudos já vêm sendo publicados e grupos de pesquisadores se dedicam a entender melhor as espécies que habitam nossa costa, mas muito ainda precisa avançar, segundo afirmam de forma uníssona os especialistas ouvidos pela reportagem.
“Não existem estudos para o hemisfério sul global do impacto da instalação destas plataformas. Temos estudos muito pobres, incipientes e preliminares em relação à biodiversidade, quantidade de corais ou mamíferos marinhos,” exemplifica a professora Adryane Gorayeb. Ela acrescenta que não há como dimensionar, ainda, o impacto sobre o turismo e sobre comunidades tradicionais indígenas, quilombolas e pescadores artesanais que habitam as regiões do entorno dos futuros empreendimentos. “O Brasil é o único país no mundo que quer industrializar o mar e implantar parques eólicos offshore em toda a sua costa sem ter um planejamento espacial marinho, que é um suporte mínimo e básico para todos os países que têm eólica offshore,” critica.
Dados e modelagens matemáticas para avaliação de impactos
A despeito dos desafios envolvendo a falta de dados científicos consistentes, investir na caracterização ambiental é fundamental, uma vez que a energia eólica offshore é uma novidade no Brasil, “cheia de incertezas”, como admite o coordenador de licenciamento ambiental do Ibama. “A gente não entende tudo que está relacionado a sua instalação e operação, guardadas as especificidades do Brasil”, afirma.
O coordenador do Ibama ressalta que o processo de licenciamento ambiental é dinâmico e que ajustes de rota podem ser necessários à medida que os estudos avançam. Em outras palavras, impactos não previstos podem ser identificados com os projetos já em andamento, e isso vale para qualquer licenciamento ambiental.
Para evitar este cenário, algumas ferramentas podem ajudar.
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE), por exemplo, vem se dedicando a avaliar a potencialidade da eólica offshore desde que os primeiros projetos começaram a surgir. No Plano Nacional de Energia 2050, esta nova modalidade foi aventada, ainda sem viabilidade econômica. “A gente fez um exercício mostrando que a fonte ainda era pouco competitiva, mas, a depender da velocidade da redução de custos, ela poderia vir a fazer parte da matriz no longo prazo,” explica Gustavo Ponte, superintendente adjunto de geração na instituição.
A partir daí, novos estudos foram feitos e a realidade da eólica offshore começou a se tornar cada vez mais próxima. No entanto, as informações ainda estavam “soltas”, explica o analista de pesquisa energética Rodrigo Vellardo. Uma ferramenta que veio a público no final de 2022 é resultado de um esforço de compilação de dados em um formato palatável para a sociedade. Ali, é possível visualizar o mapa dos projetos ao longo da costa brasileira, a potência de geração de cada um, além de incluir camadas como sazonalidade, arranjo elétrico e portos.
“Destes primeiros estudos, a gente viu a necessidade de reunir mais informações, como a batimetria [profundidade dos oceanos], e também separar algumas feições restritivas, como a Revis de Santa Cruz, no Espírito Santo, e Abrolhos, que causam mais impacto,” destaca Vellardo. Ainda assim, existe espaço para aprimoramentos, já que os dados sobre ecossistemas são, nacionalmente, incompletos.
“Estes dados mais qualitativos a gente vai ter à medida que os estudos, principalmente do licenciamento ambiental, forem avançando,” explica Glauce Botelho, superintendente adjunta de meio ambiente da EPE. Sem especificar prazos, Botelho informa que há a previsão de elaborar um planejamento espacial marinho “para que haja a convivência harmônica entre empreendimentos e atividades econômicas, desde os primeiros estudos, incluindo impactos sobre a pesca e a fauna marinha”.
Outra ferramenta que pode contribuir para a análise e determinação dos melhores locais e formas de instalação das futuras usinas de eólica offshore foi desenvolvida na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O pesquisador Maurício Hernandez, do Laboratório Interdisciplinar de Meio Ambiente (Lima/COPPE) do Programa de Planejamento Energético, concebeu um software capaz de agregar diversos dados em um único sistema de modelagem. Alimentado com dados de mais de 50 instituições e empresas públicas como Ibama, ICMBio, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Embrapa e EPE, o sistema é capaz de fornecer às pessoas tomadoras de decisão um panorama dos riscos relacionados a um projeto específico em análise.
Por meio de modelagem matemática e com base em informações técnicas fornecidas pelos bancos de dados públicos, como batimetria, velocidade do vento, distância da costa e das estruturas de portos e conexões, além das unidades de conservação, o software é capaz de avaliar conjuntamente as restrições e fornecer um mapa das regiões prioritárias para a instalação das usinas, otimizando interesses econômicos e ambientais.
As modelagens feitas na costa do Ceará, recorte do seu estudo de doutorado, mostram que questões como áreas sensíveis para corais, peixes-boi, tartarugas e aves pouco são consideradas nos projetos e precisam ser reavaliadas pelos estudos de impacto – levando, em última instância, à necessidade de adequação. Na parte terrestre, a existência de cabos de transmissão exige que sejam considerados os biomas e outros fatores sensíveis, como caatinga ou manguezais, para citar o caso do Ceará. Em entrevista ao ((o))eco, o pesquisador mostrou alguns projetos que hoje pleiteiam outorga e licenciamento cujos cabos de conexão passariam exatamente por áreas sensíveis. Por outro lado, há aqueles que respeitam integralmente estas regras.
Resultados obtidos em suas análises focadas naquele Estado nordestino revelam que apenas 28,7% do potencial técnico estimado é viável, se excluídos os conflitos ambientais. “Até esse momento, pela falta de informações ambientais, não é possível evitar todos os impactos. São áreas mais [ambientalmente] amigáveis, porque eu analisei distância da costa, de alguns recursos naturais e conflitos sociais,” explica.
O software, que hoje já conta com registro de propriedade intelectual, ainda não foi cogitado para uso pelo Ibama, mas pode vir a encontrar um caminho para auxiliar o órgão nas futuras análises. “Toda ferramenta que possa agregar fatores de informação para análise da equipe técnica é válida”, afirma Eduardo Wagner, quando questionado sobre a possibilidade de o sistema criado na UFRJ ganhar, um dia, uso em escala no país – o que, segundo Hernandez, viabilizaria um estudo completo da costa brasileira em alguns meses.
Todo o arcabouço que se constrói hoje no campo das eólicas offshore vai subsidiar um processo longo de amadurecimento, mais complexo que o de usinas instaladas em terra, segundo o superintendente de geração da EPE, Gustavo Ponte. O processo envolve identificar as áreas e buscar as outorgas – um portal único está em desenvolvimento para reunir as propostas –, desenvolver os estudos (que exigem observações ao longo de grandes períodos de tempo) e finalmente construir e operacionalizar toda a estrutura. “Ter dados disponíveis, seja pela nossa ferramenta ou outras informações, [faz com que] os projetos desde já vão amadurecendo e se baseando em informações melhores, para que os estudos lá na frente sejam ainda mais robustos,” conclui Ponte.
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Diante da emergência energética, em face do desenvolvimento com sustentabilidade ambiental e responsabilidade social, a matéria apresenta um panorama dos avanços e desafios postos. Parabéns à autoria, especialmente à Profa. Adryane Gorayeb e demais pesquisadores que se dedicam a questões e soluções tão relevantes.