“Aquele buraco na cerca-viva, pode ter sido por lá que ela passou”, disse Michael Disney, apontando um barranco à sua esquerda. “Ela desceu o barranco, atravessou calmamente a estrada e sumiu entre os arbustos”.
No final de 2010 e no início de 2011, o tranquilo condado de Pembrokeshire, no País de Gales, teve sua paz perturbada por vários relatos seguidos, num espaço de poucas semanas, sobre um grande gato selvagem avistado na região. Foram também encontradas carcaças de animais mortos por ele, e o grande animal foi visto carregando na boca, em ocasiões diferentes, um cordeiro e um ganso. Os relatos coincidiam em falar de um animal ágil e muscular, com um lustroso pelo preto (“ink-black”), com cinco ou seis pés de comprimento (1,5 a 1,8 m) e uma longa cauda. Tudo parecia apontar para uma pantera negra – um indivíduo melânico de leopardo, Panthera pardus, um dos mais espetaculares felinos selvagens. Naquele inverno, os jornais de todo Reino Unido publicaram relatos quase diários sobre o bicho, que logo se tornou famoso como “the Pembrokeshire panther” (“a pantera de Pembrokeshire”).
O imenso interesse dos britânicos pelo caso, porém, colocava uma grande pressão sobre as autoridades locais. Leopardos não são só bonitos; são também muito perigosos. Na África e na Índia, matam pessoas com impressionante destreza e facilidade. Logo, a polícia, os Royal Marines e cientistas de órgãos governamentais, além de criptozólogos amadores, estavam procurando o bicho armados com uma parafernália que incluía câmeras e teleobjetivas profissionais, câmeras para imagens térmicas, armadilhas para captura viva e armadilhas fotográficas. É raro ver grandes felinos em plena luz do dia, mas se eles viverem na mesma área que você, é líquido e certo que você vá encontrar, cedo ou tarde, sinais da sua presença – fezes, ocasionais pelos presos no arame farpado, e, claro, pegadas. Além disso, as armadilhas fotográficas tem rotineiramente detectado grandes felinos em habitats naturais, mesmo quando em densidades populacionais muito baixas (ver “Um tigre, dois tigres, 1,3 tigres”, aqui em O Eco). Com um esforço de busca tão intenso em uma área relativamente pequena (Pembrokeshire tem 1590 Km2, um pouco maior que o município do Rio de Janeiro), não deveria ser tão difícil assim vasculhar tudo até encontrar o bicho.
À medida que as semanas se passavam, porém, a expectativa foi cedendo lugar à frustração. Ninguém achava nenhum vestígio da famosa pantera. Nem um chumaço de pelo, nem fezes, nem uma imagem em alguma armadilha fotográfica. Nada, nada, nem sequer uma mísera pegada…
O grande predador é capturado
A pantera de Pembrokeshire, é verdade, não está sozinha entre os grandes gatos avistados nas ilhas britânicas nos últimos anos. Esta história, como muitas outras, é contada por George Monbiot no seu excelente livro “Feral” (agradeço a Everton Miranda e Bernardo Araujo, que também escrevem em O Eco, por me chamarem a atenção para este livro). Monbiot assinala – citando a autora Merrily Harpur, que estudou a questão – que incríveis dois mil a quatro mil avistamentos de grandes gatos e outros predadores selvagens são registrados a cada ano na Grã-Bretanha. Com este imenso número de relatos, será possível que nem um só vestígio dos bichos tenha sido encontrado?
Bom, alguns foram. Em 1980 um puma – o animal mais conhecido aqui como onça parda ou suçuarana, Felis concolor, de ampla distribuição nas Américas, de onde é nativo – foi capturado vivo na Escócia, depois da alguns ataques a animais de criação. A imagem do monstro assustador, porém, logo se dissipou quando se viu que o bicho era manso com as pessoas, ronronando e tentando se esfregar nelas. Soube-se então que ele era um de dois pumas de cativeiro que haviam sido soltos no ano anterior por um homem prestes a ser preso; o outro foi encontrado morto pouco depois. Em Leamington Spa, uma cidade perto de Coventry, um policial enviado para capturar um leão que havia escapado de um circo teve seu trabalho facilitado quando o temível animal, sem ser visto, pulou pela janela do carro de polícia e ficou deitado calmamente no banco de trás, como que esperando que o guarda o levasse para a delegacia – o que ele prontamente fez.
Ah, sim, e houve uma captura em armadilha viva. Um criptozoólogo (uma pessoa que tem o hobby de procurar por animais misteriosos) chamado Pete Bailey estava montando uma armadilha, iscada com carne, para capturar outro dos grandes predadores relatados, “the beast of Exmoor”. A armadilha se fechou acidentalmente e Bailey acabou capturando a si mesmo. Durante dois dias e duas noites, o grande predador sobreviveu comendo a isca de carne crua, até ser finalmente encontrado e resgatado.
Fora isso, há algumas fotos e vídeos que continuam aparecendo, nenhum deles de qualidade boa o suficiente para ser uma evidência conclusiva – o que é estranho, porque hoje todo mundo anda com smartphones com excelentes câmeras. Algumas imagens claramente são fraudes, às vezes feitas com gatos domésticos pretos em fundos que dão a ilusão de que os bichos seriam muito maiores do que de fato são. E há um homem que diz que foi atacado pelas costas por um leopardo – se isso tivesse acontecido na realidade, ele certamente estaria morto muito antes de poder contar a história.
A fera na selva da nossa mente
A conclusão de todas as investigações à procura das grandes feras selvagens avistadas na Grã-Bretanha é bastante clara: elas não existem. Isso não impede, porém, que continuem a ser vistas, às centenas por ano pelo menos. Nem é um fenômeno apenas britânico: em vários outros países do mundo, em vários continentes, há persistentes tradições semelhantes de avistamento de grandes animais misteriosos, como o “pé-grande” (ou sasquatch) nos Estados Unidos, ou o yeti no Himalaia. Nestes lugares, assim como na Grã-Bretanha, nenhuma evidência jamais foi encontrada, apesar de muito esforço.
O que a história da pantera de Pembrokeshire nos mostra, então, não é que existam grandes feras na Grã-Bretanha, mas o quanto nós sentimos falta de que existissem.
Como escreve Monbiot, “Talvez as feras que muitas pessoas agora acreditam que estejam escondidas nos cantos escuros da terra injetam em nossas vidas uma excitação que de outra forma só poderia ser obtida por meios artificiais (…) [estas supostas feras] sugerem um desejo não-expresso por vidas mais selvagens e ferozes do que as que nós vivemos. Nossos desejos nos espreitam, rosnando com olhos ferozes, nas selvas da nossa mente”.
Maravilhamento e reserva de mistério
Sim! Por que ter bichos grandes no mundo, as panteras, os elefantes, os rinocerontes, os gorilas, as baleias, os tubarões, os leões, os tigres, as onças? Porque nós sentimos falta deles. Porque nós, independente de cultura ou de quem nós somos, queremos que eles existam. Porque nós evoluímos com esses bichos, cercados por exuberantes ecossistemas naturais, e instintivamente sentimos que algo está errado, que algo está faltando, se eles não estão mais aqui (se não fosse por sentimentos similares a esses, nem teríamos árvores nas cidades). Hoje, vivemos vidas cinzas e estressantes, cada vez mais confinadas às nossas monótonas selvas de concreto, cada vez mais afastados da natureza. Procuramos universos artificiais que nos permitem escapar momentaneamente do mundo real, apenas para perceber o vazio de tudo isso no momento seguinte. Sentimos falta daquele profundo maravilhamento, quase uma experiência religiosa, que os ingleses chamam de “awe” – não existe uma boa tradução em português – que sentimos ao ver um bicho desses. Você já viu um elefante, uma onça ou uma baleia de perto? Então, você sabe do que estou falando.
Hoje vivemos em um planeta muito empobrecido e muito bem conhecido. Não há mais vastas regiões inexploradas, não há mais animais maravilhosos ainda por descobrir. Neste mundo que perdeu seu encantamento, as grandes feras que restam são nossa reserva de mistério. Precisamos de mistério, precisamos acreditar que vivemos em um mundo que não tenha só nossas preocupações cotidianas, política deprimente, e burocracia; um mundo que ainda tenha maravilhas à espreita. Precisamos do maravilhamento que esses bichos podem nos proporcionar. Precisamos aprender a cuidar melhor das poucas feras que ainda temos, e se possível reintroduzi-las onde não as temos mais. Há também sólidas razões científicas, ecológicas – de porque elas são importantes para o funcionamento dos ecossistemas – para mantê-las, mas esse não é o ponto aqui. Enquanto ajudam a fazer o mundo melhor, elas fazem nossa vida melhor. Isso já é razão mais que suficiente.
PS – Esta que você acabou de ler é a primeira da minha nova série de colunas para O Eco, “Os Cadernos do Antropoceno”.
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
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