Olhe com atenção para o aparelho que você tem em frente de seu rosto. Seja ele um notebook ou um celular, ele possui diversas capacidades, extremamente valorizadas por você. Esse equipamento permite que você veja fotos, se conecte com a rede mundial de computadores, assista centenas de filmes, que você ouça suas músicas preferidas, receba notícias, mantenha contato com pessoas distantes. Por ele, você se alegra, se inspira, se manifesta, se entristece, se apaixona. Certamente não é apenas uma máquina. É algo mais, ao qual você se apega fortemente.
Agora imagine que você desmonte, com zelo, minúcia e cuidado, o seu equipamento, peça por peça. Você pega todos os componentes, do menor ao maior deles, do parafuso mais ordinário ao processador mais complexo, e coloca cada uma dessas peças em uma caixa. Agora olhe para essa caixa com atenção. Todas as peças estão nessa caixa. A bateria, os processadores, a placa de vídeo, a placa de som, o monitor, as caixas de som, os botões. Todos permanecem ali, inertes. Você não tem mais acesso à internet, não escuta músicas, não recebe a ligação de pessoas queridas. Apesar de todas as peças estarem ali, definitivamente você não tem um computador. Afinal de contas, se esse amontoado de peças não é capaz de fazer o que se espera de um computador, você tem apenas um amontoado de peças. Estão todas as peças lá, mas nada acontece.
No entanto, quando você reúne novamente essas peças de forma organizada, considerando a função de cada peça, a composição de cada parte, sua posição no sistema e a estrutura do seu aparelho, quando você organiza a passagem da energia da bateria pelas peças, quando as peças recebem, utilizam e transmitem energia, você novamente tem um computador e tudo aquilo que você espera de um computador.
O som, a imagem, a luz, o processamento, a conectividade, o armazenamento e diversas outras funções executadas pelo seu computador são propriedades emergentes de seu sistema computacional. Propriedades emergentes surgem como resultado da interação de diferentes partes de sistemas complexos. Elas nos mostram a importância da interação entre os diferentes componentes do sistema, pois o resultado dessa interação é maior que a simples soma das partes.
A emergência de propriedades inesperadas é uma das principais características dos sistemas complexos. Uma pessoa que vê um computador pela primeira vez é simplesmente incapaz de compreender todas as possibilidades do aparelho olhando apenas para a aparência das peças. É necessário tempo, paciência e muita experimentação para entender os princípios básicos do funcionamento de um computador. No entanto, o computador terá todas as suas funcionalidades disponíveis, mesmo que você não saiba quais são essas possibilidades.
Agora imaginemos que, por alguma razão, você resolva eliminar algumas peças de seu computador. Tirando alguns dos parafusos que seguram a carenagem, pouca coisa acontece no seu computador. Parafusos são abundantes e ordinários, assim como são os botões do teclado. Mas se você retirar todos os parafusos, você acaba causando mudanças na aparência do computador, mas ele ainda funciona. Você continua tirando peças. Dependendo das peças que você remove, ele perde algumas funções, mas continua mantendo outras. Dependendo da quantidade de peças que você remove, ele já apresenta problemas. Dependendo do que você retira, seu sistema está comprometido. Não é por acaso que o um dos maiores pesadelos de quem abandona seu amado computador no conserto é que técnicos desonestos roubem ou troquem componentes essenciais e valiosos.
Assim como computadores, os ecossistemas também dependem da estrutura, função e composição de seus componentes para produzirem suas propriedades emergentes. Todos se preocupam (ou deveriam) com os serviços ecossistêmicos, mas poucos discutem que serviços ecossistêmicos são uma das propriedades emergentes dos ecossistemas e que o provimento desses serviços depende diretamente da manutenção do complexo sistema ecológico. A forma como os organismos capturam, produzem, organizam e transferem energia na natureza e como se organizam nesse processo, formam a geratriz das propriedades emergentes dos ecossistemas, incluindo aí os serviços ecossistêmicos.
Um besouro que deposita seus ovos em uma esfera de excrementos não está, de forma alguma, preocupado se está incrementando a dinâmica de incorporação de matéria orgânica no solo, nem um predador que captura uma presa doente se pergunta se está evitando a emergência de alguma epidemia, nem um morcego faminto que visita flores com néctar imagina que irá garantir a fecundação de flores. No entanto, apesar disso, o solo se torna mais fértil, a população de presas continua saudável e novos frutos são produzidos. Nesse processo, as peças estão ligadas por trocas de matéria e, consequentemente, de energia e essa é chave para que tudo ocorra.
Diversos estudos têm se ocupado em mensurar a escala de grandeza e a valorar serviços ecossistêmicos tais como a polinização, a produção de solo, a infiltração e evaporação de água, o controle de pragas. No entanto, diversas pessoas que eventualmente leem a palavra “polinização”, que é um termo aparente intuitivo e popular, não percebem a real dimensão dessa propriedade dos ecossistemas. A polinização envolve a atividade de diversas espécies de aves, de uma diversidade fantástica de morcegos, de incontáveis insetos, de uma infinidade de plantas, além das especializações morfológicas específicas entre esses organismos para que o processo aconteça, com a maior eficiência possível, mesmo que o interesse dos animais (obter recursos alimentares) sejam completamente diferentes dos interesses das plantas (dispersar células germinativas). E essa relação entre diferentes elementos do mundo natural gera um processo essencial para a reprodução de uma enormidade de plantas, muitas das quais nos fornecem alimento. Mesmo uma propriedade ecossistêmica aparentemente simples, é extremamente complexa e valiosa. Segundo um relatório produzido pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviço Ecossistêmicos, apenas a atuação dos polinizadores geraram, para a agricultura nacional, mais de 40 bilhões de reais em 2018.
De forma análoga, vamos imaginar que fôssemos capazes de separar todos os elementos dos ecossistemas, um a um. Guardamos individualmente esses componentes em caixas, frascos e gavetas, organizados por tipo, por homologias, por função, por tamanho e por afinidade evolutiva. Apesar do enorme conhecimento adquirido por tal atividade, que permite (e permitiu) aprender muito sobre um ecossistema, esses elementos separados já não serão capazes de realizar nenhum serviço ecossistêmico. Mesmo coleções de organismos vivos, como observamos em zoológicos, bancos de germoplasma, sementeiras ou orquidários, por exemplo, são incapazes (ou praticamente incapazes) de exercer qualquer serviço ecossistêmico. O ecossistema vai produzir propriedades emergentes quando suas peças interagirem na captura, transformação, armazenamento e transmissão de energia em um sistema amplamente interconectado.
Agora, imaginemos que, por alguma razão obscura, alguém decida remover componentes dos ecossistemas. De forma análoga a outros sistemas complexos, pouca mudança ocorre quando você retira uma ou algumas poucas peças dos componentes mais abundantes. No entanto, da mesma forma que acontece com um computador canabalizado em uma assistência técnica desonesta, a capacidade do sistema produzir propriedades emergentes irá depender da intensidade de remoção de peças, da extensão dessa remoção e de quais peças são removidas. Muitos sistemas simplesmente podem deixar de existir e, com eles, os serviços ecossistêmicos que são gerados. É simples assim.
Olhe novamente para o seu computador. Imagine que ele perdeu 10% de todas as peças. O que você espera da capacidade desse equipamento continuar “trabalhando” (i.e. continuar produzindo propriedades emergentes)? Não muito, acredito eu. No entanto, é exatamente essa porcentagem de peças que a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos estima estar ameaçada de desaparecimento no Planeta. Se existe na Terra algo em torno de 10 milhões de espécies, estamos falando no desaparecimento de 10% das plantas e animais do planeta. Não se sabe quais serão os efeitos da perda desses componentes nas propriedades emergentes dos ecossistemas naturais e na manutenção da qualidade da vida humana e não-humana em futuro próximo.
No entanto, nenhuma analogia é perfeita. No caso de um computador com problemas, podemos adquirir peças novas no mercado, substituir as peças faltantes e manter todas as possibilidades do equipamento, até que a obsolescência programada determine seu destino final, gerando mais lixo tecnológico. Embora possamos atuar, através de técnicas de manejo, no funcionamento dos ecossistemas, não podemos simplesmente ir no mercado e comprar um predador topo de cadeia para substituirmos os predadores eventualmente perdidos (mas leia um pouco mais sobre a interessante discussão sobre os parques do pleistoceno – Megafauna and ecosystem function from the Pleistocene to the Anthropocene; Pleistocene Park: Does re-wilding North America represent sound conservation for the 21st century?; The Pleistocene re-wilding gambit, Pleistocene Rewilding: An Optimistic Agenda for Twenty‐First Century Conservation.
A consequência é que precisamos nos preparar, como humanidade, para lidarmos com problemas no fornecimento de serviços ecossistêmicos. Tal situação é ainda mais alarmante quando pensamos do ponto de vista de falência de sistemas agrícolas. É estimado que apenas a polinização responda por 577 bilhões de dólares por ano na produção agrícola mundial, mas cerca de 16% dos animais polinizadores estão ameaçados de desaparecimento.
Alguém pode perguntar: “Mas porque o colapso dos ecossistemas ainda não aconteceu?”. Essa é uma boa pergunta e envolve também propriedades emergentes. A regeneração de áreas degradadas, a resiliência de comunidades e ecossistemas, a depuração da poluição em rios e mares, a dinâmica de populações, a delimitação de nichos ecológicos fundamentais e realizados, a migração e colonização, são todas propriedades emergentes dos ecossistemas e são, em diferentes escalas, responsáveis por evitarem que ocorra o imediato colapso dos ecossistemas naturais.
Além disso, a natureza conta com a mais incrível nanotecnologia conhecida, onde diversos processos observados em escalas amplas, ocorrem também em escalas microscópicas, além de outros processos exclusivos, como a interação entre elementos químicos e bactérias, a mineralização da matéria orgânica e fantásticas relações mutualísticas.
Devido à interação entre propriedades dos sistemas atuando em macro e micro escalas, os ecossistemas possuem diversos pontos de “equilíbrio”. Mesmo ecossistemas extremamente empobrecidos podem continuar apresentando propriedades emergentes e parecer, à primeira vista, que está tudo bem. No entanto, ecossistemas empobrecidos irão prover serviços ecossistêmicos empobrecidos, empobrecendo também, a longo prazo, a experiência humana sobre a Terra.
Já os sistemas complexos produzidos pelo ser humano não apresentam essa capacidade de criar diferentes estados de “equilíbrio” antes de seu colapso final. Esses sistemas tenderão ao colapso de suas propriedades bem mais rápido. Mesmo a Economia Global, um dos únicos sistemas complexos produzidos pelo ser humano capazes de criar diferentes estados de “equilíbrio” mesmo quando extremamente empobrecidos, tenderá a colapsar rapidamente com o colapso dos ecossistemas. Por outro lado, estados de equilíbrio em sistemas paupérrimos não significam muita coisa e a Economia depende da constante produção e troca de dinheiro (ou outros recursos) para poder funcionar. No entanto, moedas são apenas um construto humano criado artificialmente que tenta representar, de forma precária, a troca de Energia nos Ecossistemas. Além disso, praticamente toda a produção de riqueza humana depende da transformação de recursos naturais…
O fato de um computador estragado ligar quanto colocado na tomada não significa que ele vá funcionar a contento, que ele irá executar o que se espera dele. Da mesma forma, é comum ouvirmos pessoas equivocadas dizerem que os ecossistemas naturais com os quais têm contato estão funcionando a contento pela simples presença de alguns elementos naturais. Você pode chegar em um ambiente e ver plantas e animais e achar que a natureza está em “equilíbrio” ou em “harmonia”, quando os componentes que você enxerga são espécies invasoras (talvez o melhor análogo natural para os vírus computacionais) em um ambiente degradado ou apenas os últimos indivíduos de uma população sofrendo constante declínio populacional em um ecossistema esquálido.
Humanos são conhecidos pela capacidade de adaptação a diferentes condições. Vejamos como iremos nos adaptar à perda das propriedades emergentes sobre as quais construímos nossos ecossistemas artificiais. Que a Economia tenha piedade de nós.
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Excelente, Reuber! Didático e muito informativo, como sempre. Parabéns pelo texto. Abraço!
Muito obrigado Prof. Rafael! É sempre motivo de orgulho um elogio seu!
Poxa, Reuber, que analogia brilhante! Como ficou bem explicado o conceito de propriedades emergentes e os rebatimentos desse conceito, descritivo de uma ocorrência real, no mundo também real. Não sou cientista, mas curioso, tenho impressão de que há "folgas" nos sistemas naturais (frutos não aproveitados, sementes que não germinam, bichos que morrem de velho etc). Em folgas como essas, que podem estar ocorrendo em maiores escalas na natureza (que talvez faça com que existam os diferentes pontos de equilíbrio de um sistema a que se vc se referiu na coluna), é que, ACHO (POFT!), tem se respaldado a permanência da nossa civilização apesar das bobagens que andamos fazendo. Se bem que quando a gente se depara com um rio podre, fedorento; tem que gastar um monte de grana e tecnologia pra ter água potável, ou tem que viajar não sei quantos quilômetros pra ver algum resquício de ambiente preservado, nos damos conta de que algumas dessas propriedades emergentes ou funcionalidades do sistema natural JÁ foram pras cucuias.
Oi José! Muito obrigado pelo interesse
É muito por aí mesmo. Existem diferentes níveis de interferência nos ecossistemas que geram diferentes estados de provimento de propriedades emergentes. O interessante aí é imaginar como largas paisagens, contando com diferentes níveis de interferência, respondem a esses usos, entre diferentes organismos. E isso se não acontecerem eventos inesperados, como um meteoro!
Oi Flávio,
Lendo seu compêndio acima, vejo que não importa para você o conteúdo de nada que você lê. Você está em uma cruzada ideológica e, nessa sua missão, repele tudo que não pareça alinhado aos dogmas que te prendem. No entanto, devo admitir que te sobra ânimo para tergiversar, discutindo confusamente fatos inexistentes enquanto desconsidera seletivamente os fatos claramente apresentados. Como bom militante, denuncia nos outros seus próprios defeitos. Fica evidente seu forte compromisso ideológico, sua pretenção em julgar o que é ou não digno de crédito com base apenas na tábua rasa que segue, além da repetição de termos, abordagens, construções gramaticais e perjúrios manjadíssimos. Pelo menos você é ideologicamente alinhado, denotando coerência (ou obediência) aos seus senhores. Espero que seja bem recompensado pelo esforço.
No mais, só me resta agradecer ao fato de você não ter gostado do texto. Muito obrigado.
A analogia não cabe porque são sistemas distintos: computadores não evoluem, computadores não são sistemas dinâmicos, computadores não incluem humanos como parte de suas peças. Contudo, o pior pecado do artigo é não considerar o ser humano como parte do sistema, parte da natureza, cujo propósito final não depende do intelecto humano. O fato de terem havido havido grandes extinções em massa anteriormente e o desenvolvimento tecnológico e populacional humano estar contribuindo para muitas extinções, não significa que a atuação humana não faça parte do ciclo natural e previsível.
O problema é que como bandeira ideológica que busca demonizar o homem e advogar a depopulação e o subdesenvolvimento correto, demonizando a economia , não se importam ou não pensam nas consequencias da exclusão social quando grande parte da população passa a não ter acesso à tecnologia, ao consumo de bens e serviços que, curiosamente, serão retirados do meio ambiente e sem a otimização de recursos por processos industriais, aumentando impacto exatamente sobre a biodiversidade.
Em resumo, é mais uma análise canhestra e ideologicamente alinhada que serve mesmo para diminuir a credibilidade do ambientalismo e este a se configurar como uma ameaça ao desenvolvimento humano e inclusão social.