“É uma situação curiosa essa que o mar, de onde a vida emergiu, esteja sendo ameaçado pelas atividades provenientes de uma dessas várias formas de vida.
Mas o mar, mesmo mudando de maneira tão assustadora, vai continuar a existir; a ameaça é na verdade à própria vida.”
Rachel Carson, O Mar que nos Cerca (1957)
As dimensões humanas do oceano são complexas – sim, do oceano, no singular –, pois se trata de um grande corpo d’água que une terra, conecta pessoas e sustenta a vida. Por milênios, as pessoas têm concebido e utilizado o oceano de várias formas. De pescadores e marisqueiros, a baleeiros, exploradores (muitos deles colonizadores) e comerciantes, civilizações surgiram, evoluíram e mudaram com o oceano. Civilizações, que assim como hoje, veneravam e temiam as águas salgadas. Descobrimos e conquistamos territórios navegando por rotas desconhecidas, desbravando novas fronteiras e seguindo as estrelas. Prosperamos com as riquezas encontradas no oceano (ou transportadas com ele), e passamos a depender cada vez mais dos seus recursos.
Dependemos do oceano como fonte de alimento, renda, transporte e energia (Figura 1). De acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), o oceano provê sustento a mais de 3 bilhões de pessoas (de forma direta e indireta) e é responsável por mais de 90% de todo o comércio e transporte de bens e matéria-prima. Em relação ao consumo mundial de carne, cerca de 17% da produção global de carne vem do mar (peixes e frutos do mar); com o aumento da população humana, estima-se um crescimento entre 36-74% na demanda por esses peixes, moluscos e outros invertebrados até 2050. Em 2009, cerca de 20% do abastecimento mundial de petróleo veio de plataformas de extração em alto mar; e em 2018, mais de 25% de todo o petróleo e gás natural produzido teve origem no mar (Agência Internacional de Energia, 2018). Mas o oceano provê mais que comida, energia e renda: o oceano desperta o imaginário, cura dores da alma, inspira arte, música e poesia; é ponto de partida e de chegada, e um dos principais mantenedores da vida na Terra!
Com uma profundidade média de 3,8 km – e máxima de 11 km – o oceano produz mais da metade de todo o oxigênio do planeta, armazena 50 vezes mais dióxido de carbono que a atmosfera, e por meio de suas correntes, regula o clima global. É evidente que um oceano em equilíbrio dinâmico é vital para a manutenção da vida.
Apesar dos esforços globais para proteger o oceano e aumentar o número de áreas marinhas protegidas dos atuais aproximadamente 7,5% para 30% em 2030 (já perdemos o alvo de proteger 10% do oceano até 2020), evidências apontam para uma realidade um tanto quanto assustadora. Rachel Carson (1907-1964), renomada bióloga marinha e ambientalista estadunidense, ficaria horrorizada em presenciar o grau e velocidade em que estamos poluindo o mar; explorando e dizimando populações de peixes, mamíferos marinhos, tartarugas, e aves marinhas; liberando concentrações altas de dióxido de carbono na atmosfera – tão altas que a temperatura da água está mudando, impactando correntes marítimas, rotas migratórias de algumas espécies, e matando recifes de corais por um processo chamado de ‘branqueamento’.
É difícil (e triste) imaginar que seríamos capazes de deixar um legado assim para as gerações futuras. Mas o Antropoceno (uma possível nova era geológica caracterizada pelo impacto humano no ambiente) está aqui. A globalização e o aumento na demanda por bens e recursos naturais têm impactado de maneira significativa – e negativa – os ecossistemas costeiros e marinhos. Estressores antropogênicos, ou seja, aqueles que derivam de atividades humanas – como pesca industrial, mudanças climáticas, poluição, tráfico marítimo, exploração de petróleo e aquicultura – já causaram um impacto cumulativo em pelo menos 59% do oceano!
Diante dessa alarmante realidade, a ONU declarou esta década que se iniciou em 2021, como a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável – lançada oficialmente no Brasil em 20 de abril. Uma década, que, de acordo com a ONU, irá fortalecer a cooperação internacional para o desenvolvimento de pesquisas científicas, conectando ciência e sociedade com o intuito de conservar o oceano e ao mesmo tempo promover seu desenvolvimento sustentável.
No entanto, o caminho para um futuro mais sustentável, como trazido pela ONU, onde a pesca é regulamentada, controlada e a capacidade de renovação das populações de peixe é considerada; onde energias renováveis substituem combustíveis fósseis, recifes de corais prosperam, e áreas marinhas são protegidas, parece um tanto quanto utópico. Mas utopia, nas palavras do jornalista uruguaio Eduardo Galeano (1940 – 2015), é o que nos faz avançar. Essa visão [utópica] do futuro, onde pelo menos 30% do oceano é protegido, onde a poluição marinha é reduzida ou mitigada, onde comunidades costeiras têm direitos e acesso reconhecido aos recursos naturais e são envolvidas de forma significativa nos processos de tomada de decisão, é o que nos faz avançar.
Avançar em direção a um futuro mais justo e sustentável, entretanto, exige entendimento e mudança de valores e comportamentos humanos, tanto em nível individual quanto em níveis de sociedade, suas políticas e economia. Podemos não ter conhecimento total sobre as profundezas do oceano que nos cerca, mas não podemos desvincular o oceano da terra firme: a vida depende do equilíbrio entre os dois. Devemos lembrar que a saúde do oceano depende em grande parte das nossas ações diárias; e como uma via de mão dupla, nossa saúde física e mental também depende de um oceano saudável. Cada escolha que fazemos, tanto de consumo quanto de descarte, impacta o oceano e tudo que há nele, e reconhecer isso é o primeiro passo individual para a mudança. Todos os resíduos oriundos do nosso padrão de consumo têm potencial para acabar no oceano se não reaproveitados, reciclados ou dispostos em aterros sanitários, o que demanda ações do poder público. Imagens de animais marinhos mortos pelo lixo que foi parar no mar chocam e causam revolta, a alguns. Mas deixar de usar canudinhos é o suficiente para salvar a fauna marinha? Infelizmente não, por mais necessário que isso seja.
Dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais – ABRELPE (2020) demonstram que o habitante brasileiro produziu cerca de 379,2 kg de resíduos no ano de 2019, ou seja, 1,0 kg de lixo por pessoa por dia! E o mais alarmante, cerca de 40% de todo esse volume não foi destinado corretamente, tampouco reciclado. Sem contar que jogamos toneladas de esgoto industrial e urbano não tratadas em córregos, lagos, rios e mares, aumentando a matéria orgânica, adicionando compostos químicos tóxicos, modificando os ecossistemas aquáticos da água doce ao mar e afetando sua diversidade biológica. Nosso ‘Planeta Água’ está se afogando nos excessos e no descaso humano.
Políticas públicas mais rígidas e inclusivas, assim como a fiscalização do cumprimento das mesmas, são urgentes, o que implica, em muito, em votarmos em governantes comprometidos com a preservação da terra e do mar. Investir em educação, priorizar o investimento financeiro em tecnologias de produção mais limpas e no desenvolvimento de produtos biodegradáveis, se faz necessário, uma vez que é difícil contar com a diminuição realmente expressiva do padrão de consumo das sociedades modernas – a não ser que nossa utopia se torne realidade num mundo pós pandemia.
Uma nova narrativa para essa década dedicada ao oceano é necessária para que não haja (ainda mais) frustrações com metas não atingidas. Uma narrativa que ultrapasse os interesses puramente econômicos. Uma narrativa onde ‘estoques pesqueiros’ são tratados como populações de uma espécie selvagem; onde o cuidado, o respeito e o entendimento da importância do oceano para a manutenção da vida prevaleçam.
Para orientar e auxiliar essa navegação, foi publicado em 2020 o Manifesto das Ciências Sociais Marinhas, que aponta para uma série de pesquisas e ações prioritárias, tais como uma maior ênfase na adaptação e mitigação das mudanças climáticas, o reconhecimento que a pesca não é a única indústria atuando no oceano, e que as comunidades costeiras têm papel fundamental na tomada de decisões (Figura 2). O documento ainda ressalta a urgência de uma justiça social e ambiental e a garantia de segurança alimentar. Questões essas que refletem algumas das inúmeras dimensões humanas do oceano, ou seja, da nossa complexa – e por muitas vezes ambivalente – relação com o oceano, e que devem ser tão claras quanto parte das águas que nos cercam já foram um dia.
Navegando nas Dimensões Humanas do Oceano – Temas e leituras adicionais:
Imenso e profundo como o Oceano, assim é esse campo das dimensões humanas. Impossível seria tratar de todos os assuntos aqui, mas há ainda muito a que explorar. Por exemplo, as interações entre pescadores e leões-marinhos, como elaborado por Ana C. Pont e colaboradores no litoral norte do Rio Grande do Sul. Ou ainda sobre as diferentes formas em que valorizamos o mar, nossas percepções sobre responsabilidade individual, coletiva e governamental sobre esse ambiente, e como a maneira em que imaginamos o oceano influencia nossas atitudes e comportamentos, como abordado por Mônica T. Engel e colaboradores em estudo realizado na costa leste Canadense. Esperamos que essa breve travessia instigue o leitor a surfar outras ondas e a mergulhar nas diferentes dimensões humanas do oceano.
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