É exatamente na hora mais tensa do fechamento das redações que os editores costumam fazer pedidos inusitados e até extravagantes, exigindo dos repórteres habilidade, poder de negociação e, especialmente, calma. Muita calma. Rogério Santos Daflon Gomes, com quem tive o enorme prazer de dividir reportagens, angústias e alegrias, conseguia reunir todos esses atributos. Ansioso e preocupado com o deadline, eu queria entregar logo o texto, mas Daflon, tal qual um escultor caprichoso, jamais abria mão dos pormenores: dizia que era importante observar se as “costuras” do texto estavam a contento. “Vamos reler, cumpadi. Eles que esperem”, acalmava-me. O zelo surtiu efeito: ganhamos juntos, lá se vão sete anos, o primeiro prêmio de reportagem da ISWA, uma associação internacional sobre resíduos sólidos, em Florença. As reportagens, uma série na verdade, falavam dos percalços enfrentados no Rio e no país na gestão do lixo.
Rogério e eu fomos pequenos para a Tijuca. Ele em 1969, aos cinco anos. Eu ainda bebê, no fim de 1981. Rogério morou na José Higino e na Maria Amália. Eu morei na Henrique Fleiuss e na Tobias Moscoso. Tudo bem pertinho. Nossas famílias sempre foram unidas. Alice, uma de suas irmãs, era minha médica na infância. Uma pessoa atenciosa, educada – marca registrada, viria a descobrir depois, de todo o clã dafloniano. Eu era amigo de seus sobrinhos, Dudu e Pedro. Por fim, éramos vizinhos na divisa de Botafogo com o Humaitá. Um tempo atrás fui conhecer o apartamento que ele tinha acabado de comprar, de frente para o vai-e-vem da Voluntários da Pátria. Perguntei se o barulho o atrapalhava. Claro que não. Isso era uma coisa menor. Bebemos cerveja e conversamos coisas amenas. Dafla me deu de presente um belo livro de fotos, no qual ele escreveu um capítulo. Chama-se “RIOAtivo – Geografia Social do Esporte”. Dafla me contou bastidores das fotaças do Ivo González. Vejo agora que o “produto está indisponível” no website de uma livraria. Relíquia. Tá no móvel da televisão lá de casa.
A vida, essa danada, nos afasta de muitos queridos amigos e amigas. É curioso como Daflon estava sempre por perto (Gilberto Scofield, com quem trabalhamos no Globo, atentou para esse incrível fato). Um café na Cobal. Um café desmarcado na Cobal. Leve, amoroso, amigo. Um puta sujeito. Um grande jornalista. Adorava Aurora e Clarice, minhas filhas. Dividíamos angústias sobre os rumos políticos do Brasil. Nos entendíamos superbem. Ele talvez um pouco mais radical à esquerda. Não era capaz de engolir muitos sapos. Eu ria do meu amigo. Eu ria muito do meu amigo. Daflon era muito engraçado. Uma figura “interessantíssima”, como ele gostava de dizer. Esquecia tudo. Tudo. Esqueceu até, certa vez, de assinar o sobrenome numa reportagem. Saiu como “Rogério”. Simplesmente “Rogério”. E tome gozação dos amigos. Certa vez me ligou, de manhã: “Cumpadi, quebra uma pra mim. A Bia (filha mais velha) tem que ir pra Rural e eu esqueci de deixar o dinheiro pra ela. Se puder levar 50 pratas pra mim, agradeço. Deixa na portaria”. Fui correndo. É impossível negar um pedido do Daflon.
Sua última reportagem foi publicada aqui em O Eco, em 30 de junho. Uma senhora entrevista com Haroldo Cavalcante de Lima, pesquisador do Jardim Botânico, sobre os riscos ambientais da construção de um autódromo em Deodoro. Quando conversávamos sobre o assunto, Rogério demonstrava indignação com esse autódromo que vai destruir 200 mil árvores: “Os caras vão passar o trator. Tá tudo dominado. Que loucura…”
Daflon foi atropelado no domingo (7) na Rua Pinheiro Machado. Dizem que o motociclista não prestou socorro. Se pudesse comentar o acidente que lhe tirou a vida, certamente Daflon diria que foi “uma loucura, cumpadi”. Criticaria o trânsito selvagem e a falta de humanidade das pessoas. Eu o vi no sábado (13), na UTI do Miguel Couto. Entrei na sala. Ele estava na companhia do Beto, seu irmão mais velho, a quem conheci naquele dia. Rogério manifestou desconforto. Beto, um sujeito calmo e amoroso – sina dos Daflon – perguntou se ele tinha dor. Daflon disse que não com a cabeça. Fiquei aliviado. “Aqui é o Manu, cumpadi, lembra de mim?”. Ele me olhou. Não sei se reconheceu. Mas me chamou – o gesto me animou. O coração do meu amigo deixou de bater às 8h40m desta terça-feira, dia 16 de julho de 2019, aos 55 anos. Mas continuará a pulsar em cada um de seus amigos e familiares. Todos amam o Daflon. Que falta você fará. Te amo. Fique bem.
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