Em maio, o ecologista Carl Safira esteve na Semana de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde palestrou sobre o que os animais pensam e sentem. No mesmo dia, ele concedeu esta entrevista ao nosso colunista Fernando Fernandez.
*
Fernando Fernandez ‒ Hoje estamos aqui com o Dr. Carl Safina, do Centro Safina, nos EUA, que veio ao Brasil para dar uma palestra na BioSemana da Universidade Federal do Rio de Janeiro, patrocinada pelo Instituto Luísa Pinho Sartori. Ele nos deu uma palestra fascinante sobre como animais pensam e sentem, e sobre a importância disso para nossa relação com o mundo natural e para a conservação. Você poderia nos falar um pouco sobre o que se passa na mente dos animais?
Carl Safina ‒ Sim. A questão principal é que outros animais também possuem mentes, e desfrutam da experiência de estar vivos. Eles podem gozar de bem-estar, ou eles podem sofrer. E se você observa o jeito que eles se comportam na natureza, você percebe que eles se esforçam bastante para tentar permanecer vivos e bem. Eles querem viver, assim como nós queremos viver. Tenho tentado transmitir para as pessoas as minhas observações de que outros animais tem uma experiência muito vívida do mundo, e que muitos deles conhecem uns aos outros individualmente. Para animais sociais indivíduos importam: eles têm relacionamentos individuais uns com os outros. Se você pensar, por exemplo, no seu cachorro, caso você tenha um, você pode facilmente perceber que para ele você é importante. Ele tem um relacionamento com você. Também é fácil perceber que os cães preferem estar bem alimentados e longe de risco, da mesma forma que nós preferimos estar bem alimentados e longe de risco. Os desejos de vida deles e nossas necessidades básicas são muito similares. Nós estamos no mundo com todos esses outros seres, e eles têm tanto direito de estar aqui quanto nós. Mas não é dessa forma que humanos no geral veem a questão.
Eu acho que o fato de que as pessoas normalmente não percebem o quão intensa é a vida dos animais – suas vidas emocionais, os pensamentos que ocorrem em suas mentes – acaba sendo um equívoco muito conveniente que nos permite negar direitos a eles.
Bom, nós temos que negar essas coisas, porque se as levássemos em conta, perceberíamos que a maior parte do que fazemos com os animais é terrível. Quando nós criamos animais para consumo alimentar, nós normalmente os colocamos em campos de concentração. Nós tiramos deles tudo aquilo que animais selvagens normalmente sentem e valorizam. Nós mantemos esses prisioneiros concentrados e nós os matamos. O primeiro passo em guerras humanas é desumanizar o inimigo para que fazer coisas terríveis com eles seja mais fácil…
Essa é a raiz da escravidão, por exemplo.
Sim, essa é a raiz da escravidão, e é também como nós tratamos outras espécies. Isso vale tanto para aquelas que criamos para comer quanto as selvagens, as quais não pensamos a respeito e nem nos importamos: se queremos tomar seu habitat, tomamos seu habitat. Nós não nos importamos com o sofrimento daqueles que nós matamos ou desalojamos. Temos um longo caminho para percorrer para nos tornar verdadeiros seres humanos. Um dos nossos grandes problemas é que não somos espertos o suficiente para perceber o quão longe deveríamos ir para realmente humanizar nossa existência, e para lidarmos uns com os outros, e com o mundo, com empatia e compaixão. Não estamos conseguindo enxergar nada disso.
Sim. Algo que eu acho interessante das ideias que você tem cultivado é que você parece fundamentar uma conservação pelo bem dos animais em si, e não por razões utilitárias* de que eles podem prover serviços e comida para as pessoas. Eles têm seu próprio direito de viver nesse planeta, e isso deve ser levado em conta.
Correto. Uma razão para se conservar pode se basear no que animais podem prover para as pessoas, mas essa também tem sido a principal razão para destruí-los. E aqueles que não achamos importantes, que não podemos comer, não conseguimos ver, ou não sabemos muito a respeito, simplesmente não importam para a maior parte das pessoas. O que estou tentando dizer é que nós precisamos, sim, nos importar, de um ponto de vista ético. O mundo não é só nosso. Nossa mitologia diz que somos a única coisa que importa no mundo, e que o mundo foi feito para nós e que podemos fazer qualquer coisa com ele, e nos apropriar de qualquer coisa contida nele. Eu acho que isso é imoral. Nós estamos sim destruindo o mundo, e destruindo coisas que nós precisamos para sobreviver. Mas o principal é que todos os outros seres vivos têm tanto direito de habitar a Terra quanto nós. Não podemos simplesmente dizer para eles “se você não pode me dar alguma coisa, eu vou acabar com você”. Mas essa é a relação que nós temos com a natureza. Nós dizemos coisas como “eu não posso lucrar com essa área natural”, ou então “a única forma de extrair valor dessas espécies é atirando nelas para comê-las”, e é assim que agimos. Este é um dos motivos pelo qual temos declínios catastróficos de populações animais, habitats e da qualidade dos ambientes. Nós poluímos, jogando nosso lixo onde bem entendemos, e não agimos de forma responsável ou com empatia.
Sim. Eu acredito que nós percebemos que os animais, tal como o resto do mundo vivo – plantas etc. – provém muitas coisas úteis para as pessoas. Mas temos também outras razões – como um dever moral – para dar a eles a oportunidade de viver.
Exato.
Outra coisa que eu gostaria de perguntar para você: eu sinto que a nossa cultura, muito frequentemente, tenta enfatizar o quão diferentes nós humanos somos das demais espécies animais. Em português existem várias frases do tipo “o homem é o único animal que…”. Por exemplo: “o homem é o único animal… que pensa”, “… que sente”, “… que possui linguagem”, “… que é capaz de abstração”, “… que produz arte”, e por aí vai. Para mim todas essas afirmações são demonstravelmente falsas para pelo menos algumas outras espécies animais. Mas é conveniente para nós enfatizar as diferenças, porque se enfatizássemos as similaridades – como pensar evolutivamente nos leva a fazer – nós sentiríamos obrigados a respeitá-los e valorizá-los mais, e a conceder direitos a eles. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre o que pensa disso.
Bom, existem coisas especiais sobre seres humanos, é claro. Também existem coisas especiais sobre cada espécie. Um filósofo do século XVII, Jeremy Bentham, disse uma vez que a questão não é se eles são capazes de pensar, mas sim se são capazes de sofrer**. Se você olhar para o que os animais fazem para ficar vivos, é evidente que eles entendem a diferença entre bem-estar, permanecer vivos, se sentir bem e medo, perigo e morte. Se você tenta matar um porco, ele luta para não morrer, e ele grita. E só porque ele não grita em uma língua humana, não deixa de ser óbvio que ele não quer que você o mate. Eu não falo português, mas se eu estou tentando matar alguém que está gritando “não me mate” em português, a língua usada não faz absolutamente nenhuma diferença. É óbvio que a pessoa quer permanecer viva, e deveria ser óbvio que outros animais também querem permanecer vivos. Eles valorizam permanecer vivos. Eles não querem sofrer. Negar isso e dizer que eles não sentem nada e não se importam com nada é falso, e é apenas uma desculpa conveniente para que possamos tratá-los com total negligência.
Sim, eu acho que isso é desastroso. Nós vivemos hoje num mundo pressionado por superpopulação, alto consumo, pelo excesso de lixo que produzimos, por mudanças climáticas… E além disso tudo, nós temos diversos governos de diversos países, incluindo os nossos, que parecem atribuir pouco valor à conservação. Eles não se importam com o meio ambiente e pensam que conservar atrapalha o desenvolvimento de um país pobre, e é um luxo que tal país não pode bancar. Esse cenário pode ser desanimador para uma pessoa jovem que é interessada por conservação, e que gostaria de trabalhar com isso. É uma situação onde é difícil manter as esperanças e continuar agindo em prol da causa. O que você diria para uma pessoa jovem interessada em conservação nesse momento?
Bom, eu acho que você levantou três questões diferentes. A primeira foi a ideia de que um país pobre não pode bancar conservação. Na verdade, um país pobre é o que menos pode bancar a destruição de suas paisagens e da qualidade de seu ar e sua água, porque isso só vai te deixar ainda mais pobre. Esses países têm mais a perder por destruir a natureza, eu diria, do que os países ricos. Em segundo lugar, mesmo que possa parecer que nosso países não tenham nenhum interesse pela conservação, neles existem muitas pessoas que querem conservar, que querem manter a beleza natural e que não querem ver espécies sendo extintas. Existem muitos de nós. Nós não estamos no controle da maioria das decisões no momento, mas nós estamos lutando muito bem ainda assim, e impedindo que algumas coisas terríveis aconteçam. Então o que eu diria para pessoas jovens é que este é um momento muito importante e que existe muita coisa em jogo, e que nós precisamos do maior número de pessoas envolvidas possível. Sim, pode ser desencorajante e deprimente às vezes, mas se você está tentando recrutar pessoas jovens para lutar numa guerra, você não pergunta se elas acreditam que podem perder, ou se acham que a luta pode ser deprimente. Você diz “nós precisamos lutar”. E este é o jeito que as coisas são no momento para a vida na Terra. É verdadeiramente uma guerra para preservar o que resta.
Então talvez devêssemos pensar neste como um momento crucial na história.
É um momento crucial, e na conservação você sente que está fazendo algo muito importante. Existem muitas profissões nas quais as pessoas jamais sentem que estão fazendo algo importante. E isso é verdade se seu trabalho é vender um pouco disso, ou fabricar um pouco daquilo, de forma que outra companhia poderia fazer a mesma coisa se você não estivesse ali. Eu conheço muitas pessoas que pensam que seus empregos não tem um propósito maior, mas todas as pessoas que conheço que trabalham com conservação sentem que suas funções são importantes.
Eu gostaria de terminar com um ponto que também creio que seja importante para a conservação, porque as pessoas conservam aquilo que elas amam, e elas amam aquilo que elas podem entender. Então talvez você pudesse dizer algumas palavras a respeito do novo universo que se abre para nós quando percebemos a vida emocional dos animais, e como a mente deles é rica. Como existe todo este universo diante de nós no qual mal reparamos. Vivemos alheios à linguagem, à comunicação e à vida de tantos outros seres vivos com os quais dividimos este planeta.
Durante minha vida toda, desde que eu era uma criança bem pequena, eu gostava de observar outros animais, mesmo quando morei na cidade e havia poucos animais à minha volta. Por alguma razão eu sempre fui fascinado por eles. Eu sempre os considerei grandes professores, e aprendi muito com eles. Eu aprendi sobre como ser um ser humano melhor, como cooperar mais, como ser mais pacífico. Mesmo quando eles lutam, não é como uma guerra humana, eles não tentam devastar o outro lado. Eles têm conflitos individuais: um ganha, o outro perde. É mais como uma partida esportiva. Você sai do meu território e pronto, agora nós não lutamos mais. A guerra humana é muito mais brutal e muito mais feroz. Outros animais são muito interessantes e maravilhosos, e permitem que você se abra para camadas e camadas de beleza no mundo. Mas se você foca apenas em si mesmo, ou apenas em outras pessoas, você só consegue observar um pequenino pedaço do mundo. Por que não se abrir para a beleza miraculosa que está à nossa volta, e mantê-la conosco? Cada um de nós permanece aqui por um período muito, muito curto, e todas essas criaturas e habitats estão por aqui há milhões de anos. Não existe como justificar a destruição desses seres agora, privando todas as outras pessoas que virão nos próximos milhares de anos de coexistir com eles. Como alguém pode possivelmente justificar isso? É completamente imoral. Não existe nada em nenhuma religião e nem em nenhuma filosofia que diga que é aceitável destruir o mundo. E ainda assim, isso é exatamente o que estamos fazendo.
Sim. Muito obrigado pela conversa, Dr. Safina!
Obrigado a você! Foi muito bom estar aqui.
*
Tradução Bernardo Araujo.
Notas do tradutor:
* Utilitárias aqui se refere à ideia de se conservar animais para o uso prático e bem estar humano. Não confundir com a noção filosófica de utilitarismo, de maximização de bem estar de seres sencientes, que é bem próximo do que o Dr. Safina propõe, fundada pelo próprio Jeremy Bentham mencionado a seguir.
** “A questão não é ‘Eles podem raciocinar?’, nem ‘Eles podem falar?’, mas sim ‘Eles podem sofrer?’” – Jeremy Bentham, 1789.
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Parabéns. É o egocentrismo destilado.
Eu acho engraçado essa turma que lê olavo de carvalho e se acha intelectual…
Que entrevista incrível! Parabéns, Fernando.