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E o vento levou…

A impressão que se tem é que a nova realidade climática estava fora dos radares dos gestores, em percepção notadamente dissociada da ciência

8 de novembro de 2023
  • Carlos Bocuhy

    Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

Já começou o que será um longo caminho de empurra-empurra sobre responsabilidade climática em São Paulo. O recente vendaval que chegou a mais de 150 km/h no litoral e mais de 100 km na capital e afetou 40 municípios, derrubou centenas de árvores e fez oito vítimas. Derriçou fiações e deixou milhões de usuários sem luz. A Enel, concessionária de energia, não conseguiu responder à emergência e depois de quatro dias São Paulo assistiu a protestos e confrontos com a polícia.  

A mudança climática é uma realidade presente. Provoca não só danos econômicos. Não há métrica consagrada para capturar a realidade dos impactos climáticos, que atinge, além da realidade física e biofísica, os meios culturais, comunitários e de bem-estar. 

O usual discurso sobre áreas de risco e inundáveis, comum para uma cidade como São Paulo onde a intempestividade testa de forma permanente os limites topográficos da expansão inadequada, expandiu-se agora para a capacidade de suporte da infraestrutura energética.  

Trata-se de fato novo, mas já anunciado. Como resposta, os discursos políticos e corporativos diante dos episódios extremos continuam a assemelhar-se: “Nunca choveu tanto” ou “nunca ventou tanto”. 

O fato é que a atual realidade climática retrata o estado de incerteza radical. Apontando a superação das previsões anteriores registradas na série histórica. Traz também questionamentos sobre a infraestrutura, a exemplo do atual modelo de distribuição de energia por fios expostos ao tempo, abrindo a velha discussão que antes era apenas estética sobre fiações subterrâneas. 

A impressão que se tem é que a nova realidade climática estava fora dos radares dos gestores, em percepção notadamente dissociada da ciência, que sempre afirmou que as condições climáticas e seus impactos deveriam piorar significativamente. 

Cenários futuros apontam que o episódio do vendaval em São Paulo deverá ser superado em intensidade, na medida em que o aquecimento global aumenta. É bom lembrar que este será um verão muito atípico, pois a potencialização nociva do El Niño, que contribui para a intempestividade climática, deverá permanecer até meados do outono de 2024. 

James Hansen, cientista da Nasa considerado o pai das mudanças climáticas, voltou à carga nos últimos dias. Depois de 35 anos de seu famoso pronunciamento no Congresso americano, quando revelou a gravidade evolutiva das mudanças climáticas que levariam a humanidade a novos desafios de sobrevivência, ressurgiu para reafirmar que as coisas vão piorar. 

Hansen é experiente em políticas públicas e notabilizou-se por ironizar os alertas climáticos do governo americano. Afirmava que, em vez de usar a caveirinha do sinal de perigo, o governo utilizava uma figurinha de smiling face (rosto sorridente, na tradução literal).

Dois anos após a Conferência de Paris, Hansen vaticinou que o limite de + 1,5º C até o final do século era natimorto, pois não se tratava da perspectiva científica, mas sim de limite traçado pela diplomacia internacional. 

De fato. O último relatório do Painel Intergovernamental da Mudança Climática de 2023 aponta aumento entre 2,4 e 2,6º C até 2.100. No início de novembro Hansen declarou, durante coletiva à imprensa, que ainda pode haver esperança na manutenção de aquecimento em + 2ºC até 2100, “mas apenas com ações concertadas para parar de usar combustíveis fósseis e em um ritmo muito mais rápido do que os planos atuais”.

É difícil. Vide a instabilidade geopolítica e planos para aumento exponencial de extração de combustíveis fósseis das grandes petroleiras até 2030, ao passo que as perspectivas de contenção do aquecimento global, segundo a Organização Mundial de Meteorologia da ONU, apontam necessidade de redução em 25% na queima de combustíveis fósseis até aquele ano.

O cenário corporativo das Oil Sisters simplesmente desmonta a esperança científica. Segundo Joeri Rogelj, cientista climático do Imperial College London, que trabalha em cenários climáticos com as projeções atuais, “os caminhos mais promissores para evitar 1,5º C claramente desapareceram”. 

A realidade atual contrasta com as expectativas mais promissoras de 2021, quando se previa uma janela suportável de mais 11 anos no ritmo de emissões atuais.   

Mesmo havendo pequenas discordâncias em projeções sobre diferentes cenários de aquecimento, Zeke Hausfather, pesquisador da Berkeley Earth, afirma: “Acho que todos concordam que 1,5 grau está no retrovisor neste momento”.

Se os vendavais atuais estão surgindo na realidade atual de + 1,2ºC, eventualmente acrescido da intensidade esporádica do El Niño, não é difícil imaginar que as dificuldades irão aumentar significativamente nos próximos seis anos, quando se consolidar a previsão de + 1,5ºC, conforme afirmam vários especialistas. 

É preciso ressaltar a intensa queda de braço para a adoção do limite de 1,5º C durante a Conferência de Paris (COP21), estabelecida em função do limite ser considerado “mais seguro” por cientistas do IPCC. 

Note-se que, desde então, a velocidade e intensidade do aquecimento global têm sido subestimados, conforme afirmam diferentes recortes científicos de 2015, 2021 e 2023.  Continuamos a receber notícias da ciência de que a turbulência poderá se expandir de forma mais rápida e mais intensa. 

Segundo recente estudo publicado por Andra Garner, professora assistente de ciência ambiental da Universidade de Rowan, “os furacões no Oceano Atlântico têm agora duas vezes mais probabilidade de passar de uma tempestade fraca para um grande furacão de categoria 3 ou superior em apenas 24 horas”. 

Assim, estamos passando do cenário de alertas e previsões para o cenário das consequências. Isso inaugura o que deverá ser um longo caminho de discussões sobre perdas e danos, especialmente sobre responsabilidades diante dos eventos climáticos. Tais discussões trarão reflexos econômicos que afetarão o cenário dos negócios, o universo dos seguros, da construção civil, da infraestrutura etc. 

Publicação recente intitulada “Vivendo nas sombras das perdas e danos: descobrindo os impactos não econômicos” revela, por meio de 14 estudos de caso, como os eventos climáticos provocam impactos culturais sobre diferentes comunidades e alteram o bem-estar da população. 

Assim, é urgente que o planejamento estatal e a economia das mudanças climáticas aprendam a contabilizar também elementos não-estruturais, adotando indicadores adequados para mensuração, em seus múltiplos aspectos, da realidade dos impactos climáticos às comunidades.

Também não resta dúvida de que a lógica “nunca ventou tanto” deve ceder lugar ao dimensionamento dos cenários de piora assinalados pela ciência, analisando riscos à luz desses novos tempos, ensejando políticas públicas permanentes, estruturais e não estruturais, visando a uma adequada adaptação climática que possa salvaguardar a proteção do ambiente e das comunidades.

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