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Energia limpa, território vivo: a Amazônia como modelo de transição justa

Transição energética na Amazônia não pode ser tratada como mera troca de fonte. Substituir diesel por energia solar é avanço, mas insuficiente se não houver acesso

28 de novembro de 2025
  • Valcléia Lima

    Superintendente de Desenvolvimento Sustentável da Fundação Amazônia Sustentável (FAS).

Na Amazônia, falar de energia é falar de dignidade. Quando a eletricidade não chega, nada funciona plenamente: a escola perde recursos, o alimento não é conservado, a produção local não ganha escala. Energia, aqui, não significa apenas acender luzes, significa  criar condições de saúde, educação, renda e permanência no território com autonomia. 

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA) mostrou que quase um milhão de pessoas na Amazônia ainda vivem sem acesso regular à energia elétrica, muitas delas indígenas, ribeirinhas e quilombolas. É um paradoxo: a região que mais garante equilíbrio climático para o planeta ainda convive com a pobreza energética. Enquanto grandes centros urbanos usufruem de eletricidade gerada em usinas amazônicas, há comunidades inteiras que seguem na escuridão ou dependem de geradores a diesel, que são caros, poluentes e limitados. 

Nesse contexto, a COP30, em Belém, precisou ir além do anúncio de metas e rotas tecnológicas. O debate sobre transição energética só se sustenta quando parte da realidade de quem está fora do mapa da energia. Antes de discutir o futuro global, é preciso garantir o básico a milhares de famílias amazônicas que ainda esperam por acesso contínuo e também por energia a um preço justo, que não comprometa a renda das comunidades nem as deixe reféns de tarifas incompatíveis com suas condições de vida.  

Onde a energia falta, a rotina encolhe. Escolas funcionam sem ventilação adequada e com equipamentos ociosos, calendários precisam se ajustar ao calor, iniciativas produtivas esbarram na ausência de tomada. Sem eletricidade, sementes não podem ser  beneficiadas, alimentos não podem ser armazenados e o peixe  pescado precisa ser consumido imediatamente. Sem energia, não há  planejamento, só sobrevivência diária.

Quando a energia chega, a realidade muda de escala. Estruturas de energia renovável instaladas em escolas e espaços comunitários garantem iluminação, ventilação e permitem que atividades ocorram sem depender da luz do dia. Pequenas usinas permitem armazenar a produção de açaí, cupuaçu ou pescado, evitando perdas e gerando renda. Oficinas de artesanato passam a ter máquinas simples para corte e beneficiamento de materiais. Atividades que antes levavam horas se tornam mais eficientes, permitindo que as pessoas dediquem  mais tempo ao planejamento do negócio ou a outras atividades comunitárias.  

É por isso que, na Amazônia, energia renovável e dignidade caminham juntas. 

Mas não se pode falar de transição energética sem reconhecer que ele só será justa se considerar os desafios do território. Na lógica urbana, discute-se substituir fontes fósseis por renováveis, calcular eficiência, otimizar matriz. Na Amazônia profunda, a lógica é outra: antes de  debater transição, é necessário garantir que exista energia disponível e que seu custo seja compatível com a renda local. 

Em muitas comunidades isoladas, o custo do diesel torna a energia inacessível. E mesmo quando a eletricidade chega pela rede, as tarifas muitas vezes não dialogam com a renda das famílias, o que mantém a exclusão por outra via. Uma transição justa precisa garantir não apenas a chegada da energia, mas também que ela seja economicamente viável.  

Iniciativas de energia renovável em comunidades ribeirinhas e indígenas mostram esse caminho. Estruturas de geração usadas em cozinhas comunitárias, empreendimentos de turismo e pontos de beneficiamento permitem que o valor do trabalho permaneça na comunidade. Em áreas produtoras de açaí, por exemplo, a eletricidade possibilita o uso de equipamentos para processamento, reduz perdas e amplia renda. O resultado é direto: mais valor agregado permanece na própria comunidade.

Por isso, transição energética, na Amazônia, não pode ser tratada como mera troca de fonte. Substituir diesel por energia solar é avanço, mas é insuficiente se não houver acesso, governança local e aderência às necessidades de cada território. Transição justa significa garantir energia para a vida acontecer, com participação das comunidades no desenho, nas escolhas tecnológicas e na gestão dos sistemas. 

Na COP30, a Amazônia tem algo fundamental a oferecer: exemplos que já estão funcionando. Enquanto governos debatem grandes soluções globais, territórios amazônicos mostram que é possível conciliar desenvolvimento com redução de emissões sem deslocar pessoas e sem desconsiderar modos de vida. A floresta aponta um caminho concreto: descentralizado, comunitário, eficiente e economicamente justo.  

Se a conferência pretende deixar legado, alguns compromissos são essenciais: priorizar o acesso à energia na Amazônia como medida urgente de adaptação climática, financiar soluções de geração compatíveis com o território, garantir tarifas adequadas à realidade das comunidades e assegurar participação local em todas as etapas, do desenho à gestão dos sistemas. 

A Amazônia já provou que prosperidade e conservação caminham juntas quando quem cuida da floresta tem autonomia para decidir seu futuro. Levar energia limpa para as comunidades não é benefício, é reconhecimento. É assim que a transição deixa de ser promessa e se torna realidade: com energia que ilumina casas, fortalece economias locais e mantém a vida de pé, com a floresta em pé.

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