O que a onça-pintada, o tubarão, o urso panda, o ornitorrinco, as tartarugas marinhas e o elefante têm em comum? Todos são exemplos de espécies carismáticas. A definição de carisma não é consenso, e não está ligada exclusivamente à aparência. Aqui utilizamos a classificação de espécies carismáticas de acordo com Céline Albert e colaboradores (2018), no artigo ‘The twenty most charismatic species’ (em português: As vinte espécies mais carismáticas), onde o carisma está relacionado à aparência do animal (como a beleza e a fofura), sua relação com os humanos (como perigosa, fascinante) e seu status de conservação (como ameaçado ou raro).
O carisma não necessariamente está associado a uma espécie, mas ao papel que ela desempenha no ambiente. Espécies indicadoras, por responderem rapidamente às mudanças no ambiente ou à perda de biodiversidade; e espécies-chave, que desempenham papéis ecológicos importantes na integridade da estrutura e funcionamento do ecossistema, também são vistas como carismáticas. Espécies guarda-chuva e espécies bandeira têm grande relevância conservacionista por possuírem grandes áreas de vida, o que traz mais apelo e aumenta o nível de importância para o carisma (Figura 1).
Quando pensamos em espécies carismáticas, em geral lembramos de atributos de beleza, habilidades específicas, raridade ou perigo de extinção, características que despertam sentimentos controversos, atitudes e percepções variadas em cada indivíduo. Essas espécies são amplamente utilizadas como “espécies bandeira”, pois tendem a atrair a atenção das pessoas, do poder público e de financiadores para programas de conservação da biodiversidade. Também são escolhidas como bandeira porque cumprem um papel chave no ecossistema. São selecionadas de acordo com diferentes características, dependendo do que é valorizado pelo público que tentam atingir, engajando-o na conservação do meio ambiente. Assim, podemos dizer que as espécies carismáticas também são espécies “guarda-chuva”, cuja manutenção assegura a sobrevivência da própria espécie e das espécies que coocorrem com elas. Utilizar estes animais se tornou uma excelente oportunidade de comunicação assertiva direcionada à conservação com diferentes grupos de interesse. No Brasil, o mico-leão-dourado, a onça-pintada, a arara-azul-de-lear, as tartarugas marinhas e o tamanduá-bandeira são exemplos de animais que cumprem muito bem este papel.
Quando assistimos vídeos tendo como protagonistas espécies carismáticas, nossas emoções afloram! Quem não gosta de ver filhotes de diferentes espécies interagindo? Adicione a essas cenas uma música de fundo, voz de criança ou carícia do humano no animal silvestre, e as emoções vão ao rubro. E isso diz-nos mais sobre o lado humano da relação do que sobre o carisma do lado animal. E realmente algumas espécies nos cativam mais do que outras, pela sua aparência e comportamento. O valor estético caracterizado pela teoria da biofilia de Kellert (1984) como apelo físico e beleza da vida silvestre, está entre os nove valores tipificados do ser humano frente à natureza: utilitarista; naturalista; ecológico-científico; estético; simbólico; humanista; moralista; domínio e negativista. Isso indica que as características físicas das espécies são importantes para as nossas percepções sobre elas.
Contudo, a palavra carisma também remete a fascínio, sentimento que pode desencadear nas pessoas diferentes atitudes – posicionamento favorável ou desfavorável de um indivíduo em relação à conservação –, provocando inclusive desconfortos em meio a quem trabalha com a conservação da biodiversidade. Por exemplo, ainda que existam vários programas de conservação ex situ (estratégia de preservação e recuperação de uma espécie fora de seu ambiente natural) desempenhando um bom papel, apoiados no carisma das espécies, seguimos tendo um grande número de espécies carismáticas em risco de extinção. O que nos faz refletir sobre a responsabilidade dos programas de conservação de vida silvestre ex situ em não transmitir uma mensagem controversa, ou em dialogar conceitual e metodologicamente com os programas de conservação in situ (estratégia de preservação e recuperação de uma espécie no seu ambiente natural).
O turismo baseado na observação de fauna carismática, como, por exemplo, os safaris fotográficos, é considerado uma atividade educativa, sacia a vontade das pessoas de conhecer mais profundamente os hábitos de cada animal, e, se conduzido de forma séria por profissionais competentes, torna-se forte aliado da conservação in situ.
Porém, usado de forma incorreta, o turismo de observação de fauna pode ser danoso aos animais, principalmente para espécies difíceis de serem avistadas. Em alguns lugares, animais são capturados ilegalmente para serem expostos aos turistas em parques privados, e em outros, pessoas despreparadas alimentam os animais para que estes fiquem em lugares estratégicos à observação por turistas. Também este é um assunto relevante e delicado.
São recorrentes reações acaloradas que mais conseguem dividir e amplificar os conflitos do que identificar causas óbvias e nada óbvias de certos comportamentos humanos, com o objetivo de mitigar interações humano-fauna silvestre inadequadas à fauna. Por exemplo, se alguém se posiciona publicamente contra pagar a uma criança que pose com seu macaco (já pet) para fazer uma foto de lembrança com um turista, virá alguém chamar esse outro de ‘urbanoide’, ‘não coloca a bota na lama’, ‘nem imagina as condições de vida da criança… é sobrevivência!’. Sim, o distanciamento pode turvar nossas perspectivas. Sim, a experiência impacta nossas percepções, atitudes e valores. Porém, quão construtivas são colocações que polarizam? Não seria mais produtivo identificar as motivações não escancaradas do uso da fauna, e se forem problemas sociais e econômicos, agir no sentido de diminuir essa vulnerabilidade? Também essa reflexão precisa acontecer quando se trata de espécies carismáticas.
Não podemos esquecer de mencionar aquela minoria de zoológicos e santuários que dopam tigres e leões para as famosas ‘selfies’; parques que mantêm golfinhos, focas e leões marinhos para fazer truques e dar “beijinhos” nos turistas; fazendas que permitem que os turistas caminhem com leões, leopardos, elefantes, e alimentem seus filhotes com mamadeiras; parques que mantêm orcas para dar show aos turistas; mergulhos para ficar cara a cara com tubarões; elefantes e camelos que carregam turistas por longas distâncias; circos com ursos acorrentados andando sobre bolas… enfim, poderíamos citar inúmeros exemplos. Este fascínio das pessoas pela fauna silvestre acaba alimentando essa indústria cruel.
Os animais que vivem em cativeiro são fundamentais como plantel de segurança genética e como embaixadores para educação para a coexistência. Porém, por que temos animais em cativeiro? Os motivos e a mensagem precisam ser claros. Não podemos induzir as pessoas a pensarem que é bom que o território dos animais silvestres seja o cativeiro, onde eles não desempenham suas funções ecológicas. Mas reconhecemos que muitas vezes esta é a única alternativa. Muitos animais são resgatados de zonas de conflito (uma onça-pintada predando gado, por exemplo, ou um tigre matando aldeões); ou ainda de áreas onde sua sobrevivência é ameaçada por forças naturais, como as queimadas que atingiram o Pantanal em 2020.
Pesquisas têm demonstrado que tutores e criadores profissionais de pets exóticos citaram envolvimento e fascínio por animais que observavam em zoológicos e parques como nos locais citados mais acima no texto. A maioria, mesmo tendo cães e/ou gatos como pet, passou para um próximo nível, adquirindo por exemplo, um quati, uma jiboia, um guepardo. Dentre esses criadores, um número significativo se considera como salvador do pet exótico que possui, manifestando uma forte conexão emocional com o animal sob sua tutela. Com o indivíduo. Não necessariamente com a espécie, entendamos a sutil diferença.
Essa relação de admiração e conexão com a fauna silvestre pode ser ainda mais complexa. A mesma pessoa que paga e faz viagens específicas para ver grandes mamíferos na África pode muito bem não aceitar a presença de uma onça-parda, um lobo ou de uma onça-pintada em seu ambiente natural vizinho à sua propriedade, mesmo esses animais sendo considerados carismáticos. Caracterizando o que se chama em inglês de “Not in My Backyard” (“Não no meu quintal”). Ou seja, “Eu gosto da fauna, mas distante da minha rotina, em um ambiente controlado, que não representa riscos para mim, minha família, propriedade ou rebanho”.
Assim, fica evidente que os valores, as percepções, as atitudes e os sentimentos se misturam quando abordamos espécies carismáticas. Levar em consideração todos os aspectos citados neste artigo é importante para se traçarem estratégias de conservação e para a coexistência humano-fauna, seja ela carismática ou não, pois como todos sabemos, a beleza não se põe à mesa.
Convidamos você a acompanhar nossa coluna, divulgá-la e refletir sobre este tema tão fundamental para a construção e viabilização de novas relações humanas com a natureza.
*Nota 1: É importante dizer que existem empreendimentos sérios que respeitam as características selvagens dos animais. Se você tem o sonho de ter um contato mais próximo com a fauna silvestre, procure por profissionais e locais comprometidos com as diretrizes de bem estar animal e com a conservação da vida silvestre. Faça uma pesquisa prévia, não escolha pelo preço. O barato quase sempre custa caro às espécies.
*Nota 2. Com o advento das redes sociais, parece ter se tornado moda publicar fotos pessoais com animais selvagens – vivos, quase ‘domesticados’. Não parece se diferenciar tanto assim das fotos que muitos fazem com seus troféus, mortos, em reservas de caça – exceto para o animal, claro. A provocação é apenas para induzir-nos à reflexão: as pessoas querem ter contato com a fauna silvestre e pagam para isso. Por quê? Pano para mangas.
Sobre as autoras:
Ana C. Pont, bióloga, educadora socioambiental e estudante de Dimensões Humanas da Natureza.
Francine Schulz, bióloga, especialista em Perícia Auditoria e Gestão Ambiental, mestre em Engenharia Civil – Gestão de Resíduos.
Referências:
Albert C., Luque G. M., Courchamp F. (2018). The twenty most charismatic species. PLoS ONE 13(7): e0199149.
Kellert, S.R. (1984). American attitudes toward and knowledge of animals: An update. In M.W. Fox & L.D. Mickley (Eds.), Advances in animal welfare science 1984/85 (pp. 177-213). Washington, DC: The Humane Society of the United States.
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Bom dia.
Porque ele é da família Ursidae. Permitindo também chamá-lo de urso panda.
Nada que prejudique a excelente matéria.