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Evoluir para a sustentabilidade exige participação social

É preciso que o setor ambientalista reivindique o direito de prevalência da defesa do meio ambiente nos conselhos. A área governamental deve rever procedimentos antidemocráticos

20 de agosto de 2020 · 4 anos atrás
  • Carlos Bocuhy

    Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

Nova composição do CONAMA foi escolhida através de sorteio. Foto: Ascom/MMA.

Os conselhos ambientais são espaços de gestão pública que permitem introduzir a força motriz da percepção e da exigência social nos processos decisórios em matéria ambiental. Essa energia transformadora, porém, hoje está muito aquém da sua potencialidade e foi ainda mais esvaziada em medidas adotadas pelo atual governo.

A falta de democracia existente no Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), onde os representantes da sociedade civil perderam espaço para representantes do governo e do setor econômico, levaram o Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam) e representantes do MPF a consultar o renomado jurista e constitucionalista José Affonso da Silva sobre a questão. Para o jurista, a estrutura do Conama não cumpre seu papel constitucional.

Affonso da Silva considera que a disparidade numérica de votos entre os conselheiros que defendem exclusivamente o meio ambiente e os demais, que representam interesses não exclusivamente ambientais, é condição que interfere negativamente nos resultados e na promoção do desenvolvimento sustentável. Sem isso, a exploração da potencialidade dos recursos naturais não deixará nada para as futuras gerações.

O professor José Affonso da Silva referenda seu parecer nos princípios democráticos da igualdade. Ele menciona Aristóteles, filósofo grego: “A democracia é o governo onde domina o número, isto é, a maioria, e a alma da democracia é a liberdade, sendo todos iguais”. O filósofo destacava que toda a democracia se funda no direito à igualdade e “tanto mais pronunciada será a democracia quando se avança na igualdade”.

Essas conclusões desnudam a realidade da grande maioria dos conselhos ambientais existentes no Brasil, que não deveriam ferir os princípios constitucionais e os objetivos determinados na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6938/1981). O regramento interno dos conselhos não pode estar dissociado dos princípios da democracia e da igualdade.

É inconcebível que regimentos internos vedem, por exemplo, a prerrogativa do conselheiro de pedir vistas de um processo sobre o qual tenha dúvidas, sem que este pedido seja aprovado pela maioria do conselho, controlado por representantes do governo. O pedido de vistas permite dirimir as dúvidas e enriquecer a matéria por meio de um parecer do conselheiro que o requereu. Deixar de conceder vistas ao processo é ferir um direito inalienável, necessário para formação de juízo de valor do conselheiro antes que este manifeste seu voto.

“É inconcebível que regimentos internos vedem, por exemplo, a prerrogativa do conselheiro de pedir vistas de um processo sobre o qual tenha dúvidas, sem que este pedido seja aprovado pela maioria do conselho, controlado por representantes do governo.”

Em um conselho, o equilíbrio de forças deve ser alicerçado na real paridade entre governo e sociedade civil, estabelecendo de forma criteriosa a igualdade democrática para evitar a prevalência de interesses econômicos, aos quais se alinha, via de regra, o governo, seja em busca do desenvolvimento econômico, ou por meras influências políticas pontuais.

Ação recente da Procuradoria Geral da República contra a atual composição do Conama afirma: “Além disso, o desbalanço no arranjo de forças tem dado ensejo a um permanente estado de desvirtuamento do órgão em relação às finalidades institucionais a que está vinculado por força da lei que o criou e da própria Constituição Federal”.

Outro aspecto fundamental para o bom funcionamento dos conselhos é a garantia de legitimidade e representatividade. Existem muitos conselhos que apresentam, em seu regramento, um vício insanável: não permitem que o setor ambientalista tenha direito de participar da elaboração de seu próprio cadastro de entidades. Um cadastro chapa-branca certamente não irá contar com procedimentos e critérios que possam garantir isonomia na atuação do setor ambientalista.

Mesmo que haja paridade e representatividade, os conselhos não podem prescindir de boa condução democrática, que permita colocar em pauta matérias de interesse da sociedade.  Se os conselhos fossem dotados de equilíbrio de forças, de igualdade entre segmentos que fazem a defesa dos interesses difusos e demais representações setoriais; se tivessem bom regramento e condução democrática, restaria a necessidade de produzir boas decisões, bem informadas, motivadas, devidamente justificadas e fundamentadas, de caráter pró sociedade e pró sustentabilidade.

Neste aspecto encontramos as piores mazelas, onde se revela evidente atropelamento da sociedade civil pelos interesses econômicos e governamentais. Ao longo do tempo, o aparato governamental desenvolveu artifícios para driblar a vigilância da sociedade civil, especialmente para “passar a boiada”, com licenciamentos de projetos que apresentam dados insuficientes para comprovar sua viabilidade ambiental. Brasil afora encontramos exemplos comprováveis às bateladas. Vale citar aqui o conselho nacional, o Conama, que aprovou a durabilidade insuficiente dos catalisadores para motos; a aplicação de agrotóxicos em águas utilizadas para abastecimento público; a aplicação de lodo de esgoto com fármacos na agricultura etc.

Os pareceres dos órgãos ambientais que balizam tecnicamente as decisões dos conselhos muitas vezes apresentam posturas condescendentes. É comum a insuficiência de dados apresentados nos estudos ambientais (EIA-Rima), a exemplo do que ocorreu na deliberação do Conselho Estadual de Política Ambiental de Minas Gerais (Copam), que aprovou a ampliação da barragem de Brumadinho, sob protestos, meses antes da tragédia. Ou ainda a recente aprovação pelo Consema paulista do incinerador de resíduos da cidade de Mauá, no ABC paulista, com a falta de dados técnicos das emissões atmosféricas, essenciais para compor as condições de modelagem da dispersão de poluentes.

“Os pareceres dos órgãos ambientais que balizam tecnicamente as decisões dos conselhos muitas vezes apresentam posturas condescendentes.”

O que está em jogo nada mais é do que a vida de milhares de pessoas que vivem nas áreas de influência dos empreendimentos. A insuficiência técnica em estudos ambientais encontra terreno fértil em condições antidemocráticas, onde os pleitos da sociedade civil e de representantes da academia são ignorados.

No debate público que ocorreu no período pré-pandemia, entre representantes da sociedade civil e dos ministérios públicos estadual e federal, em São Paulo, houve consenso sobre condições preliminares para o bom funcionamento dos conselhos ambientais. De início, recomendou-se que a representação ambientalista deve ser deliberada pelo próprio segmento, de acordo com suas especificidades, assim como o fazem as demais instituições representadas nos conselhos.

Outras questões de essência foram consenso, com justificativas e sustentação legal: paridade entre os representantes da sociedade civil e do governo; estabelecimento de um protocolo de conflito de interesses para a atuação de conselheiros; intercâmbio permanente e participação do setor científico e acadêmico para fortalecer as decisões informadas e posicionamentos do setor público e representações sociais; qualificação de setores representativos, como os mais ligados à defesa dos interesses difusos, em especial o setor ambientalista, oriundo das ONGs; e o respeito aos princípios da gestão participativa, com a adoção de regimento interno democrático, permitindo que os diversos atores do colegiado ambiental possam exercer seu direito constitucional de plena participação social, entre outros.

Não é possível esconder mais as mazelas que assolam os conselhos ambientais e que atingem os princípios constitucionais da plena participação social. Estas distorções minam as diretrizes basilares da sustentabilidade ambiental. É preciso evitar as simulações nas quais se escondem os governos para aprovar os projetos que lhes interessem, independentemente de sua viabilidade ambiental.

Os conselhos ambientais são fundamentais para construir um modelo de sustentabilidade no país, seja na transparência e participação social na área de licenciamento ambiental, seja na definição de políticas públicas, com decisões qualificadas, pró sociedade e pró sustentabilidade.

O Ministério Público tem sido vigilante sobre os reflexos pontuais do mau licenciamento e deveria estar atento à correção das distorções que assolam os conselhos ambientais, na garantia de uma plena e constitucional gestão participativa.

É preciso que o setor ambientalista reivindique o direito de prevalência da defesa do meio ambiente nos conselhos. A área governamental deve rever procedimentos antidemocráticos, sair da zona de conforto e da ilegalidade. É necessário corrigir o estado de ineficácia a que foi reduzida a gestão participativa, que consiste na maior força motriz da exigência social transformadora, sem a qual o país não atingirá patamares desejáveis de sustentabilidade.

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