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Floresta vale mais que ouro

Ou entendemos que a conservação ambiental e a diversidade cultural são condicionantes para a manutenção da existência, ou seremos sugados pelas dragas da autodestruição

7 de fevereiro de 2023 · 2 anos atrás
  • LEGAL

    Laboratório de Estudos Geopolíticos da Amazônia Legal

  • Melissa Curi

    Doutora em Antropologia, pesquisadora do Laboratório de Geopolítica da Amazônia Legal (LEGAL), Diretora de Educação do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade - IABS

Estamos assistindo perplexos as consequências funestas de políticas de governo que abandonaram os cuidados com a saúde do povo indígena Yanomami, e incentivaram o garimpo ilegal nessas terras, localizadas entre os estados de Roraima e Amazonas. A população contaminada pelo mercúrio chora os seus mortos e seus doentes, e ações governamentais e humanitárias emergenciais são necessárias para conter o genocídio em marcha.

A questão da exploração de minérios em terras indígenas é um assunto que acompanha todo o processo histórico de invasão dessas áreas. No início da colonização até meados do século XIX, a questão indígena estava centrada na figura do índio, ou seja, no questionamento sobre sua humanidade e nas ações violentas de catequização e escravização. Após esse período, a questão indígena passou a ser, principalmente, um assunto relacionado à terra. Processos demarcatórios inacabados, tentativas de diminuir os direitos indígenas sobre seus territórios, conflitos, exploração ilegal de madeira e de recursos minerais em terras indígenas e mais uma lista extensa de atos violentos e de despeito aos povos originários.

Existem projetos de lei sobre mineração em terras indígenas tramitando no Congresso Nacional desde o início da década de 1990. As previsões constitucionais sobre a matéria encontram-se nos artigos 176, § 10 e 231, § 30. Com isso, a Constituição Federal requer uma análise conjunta dos requisitos e restrições das atividades minerárias e garimpeiras, quando elas acontecem nessas áreas. 

O texto constituinte não deixa dúvidas de que mineração e garimpo são atividades diferentes e que a segunda é proibida em terras indígenas. Em relação à mineração formal, embora exista uma previsão de regulamentação, há a exigência de cumprimento de três requisitos cumulativos: 1) autorização do Congresso Nacional; 2) oitiva das comunidades indígenas afetadas; 3) garantia aos indígenas de uma participação nos resultados da lavra. 

O caráter restritivo da Constituição se dá pelo reconhecimento de que a exploração de minérios em terras indígenas é altamente impactante para o meio ambiente e para as comunidades, deixando um rastro negativo de externalidades, muitas vezes irreversíveis, que se perpetuam no tempo.

Associada a outras práticas degradantes, como desmatamento, contaminação dos rios, alcoolismo e prostituição, o garimpo faz parte de uma rede de atores composta não apenas por garimpeiros, mas também por políticos, contrabandistas, atravessadores, empresários e, em alguns casos, infelizmente, por lideranças indígenas cooptadas.

Segundo o MapBiomas (2020), as principais áreas de garimpo em terras indígenas estão na Amazônia brasileira – nas terras dos povos Munduruku e Kayapó, no estado do Pará, e na Terra Indígena Yanomami, que se estende entre os estados de Roraima e Amazonas. Entre 2010 e 2020, a atividade garimpeira cresceu cerca de 500% em áreas indígenas e, com esse crescimento, aumentou exponencialmente a contaminação dessas populações por mercúrio, visto que o garimpo ilegal de ouro é o mais usual na Amazônia e nas terras indígenas.

Sobrevoo regista áreas de garimpos ilegais dentro da Terra Indígena Yanomami, em Roraima, em abril de 2021. Foto: Reprodução

O Projeto de Lei (PL) mais recente sobre o tema e, certamente, o mais impactante, é o PL 191/2020, apresentado pelo próprio Executivo. O então presidente Jair Bolsonaro, que enaltecia a atividade garimpeira do pai nos garimpos de Serra Pelada, no Pará, não mediu esforços para tentar liberar esse tipo de atividade em terras indígenas, sendo, inclusive, uma das suas promessas de campanha. Seus discursos a favor do garimpo e de outras atividades exploratórias na Amazônia provocaram uma intensificação da presença de garimpeiros na região e de invasão das terras indígenas e de Unidades de Conservação. 

Com a derrota do Bolsonaro nas urnas, entramos em um outro momento histórico. Um Ministério dos Povos Indígenas foi criado, a Funai possui uma representante indígena em sua presidência e o atual Presidente da República tem assumido o compromisso de barrar o garimpo em terras indígenas. Há um alívio coletivo de todos aqueles que defendem e lutam pelos direitos socioambientais. No entanto, sabemos que isso não é suficiente. Com as eleições de 2022, temos hoje o Congresso Nacional mais conservador da história do período democrático do País, que se alinha ideologicamente com as pautas do antigo governo.

O projeto do Bolsonaro (PL 191/2020), que pretende liberar a exploração de recursos minerais, hidrocarbonetos e o aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas, está em tramitação, em regime de prioridade, no Congresso Nacional. Aguarda a criação de uma Comissão Especial para apreciar a matéria, visto que foi distribuído a mais de três comissões de mérito.

Todo e qualquer projeto que se disponha a regulamentar o assunto, diante dos riscos que envolve, deve ser tratado com especial atenção. A partir de uma análise do referido PL, constata-se que o rigor deve ser ainda maior, visto que o projeto possui vícios de inconstitucionalidade, tentando liberar o garimpo em terras indígenas e retirar, em muitos aspectos, a exclusividade do Congresso Nacional para tratar da matéria.

A título de exemplo, vale mencionar a previsão no PL de que atividades exploratórias poderão ser realizadas, em caráter provisório, enquanto aguardam a deliberação do Congresso Nacional, e que serão consideradas autorizadas, caso o Congresso não se manifeste sobre o pedido no prazo de quatro anos previsto no projeto (Art. 37, PL 191/2020). Referidas proposições não possuem qualquer respaldo legal, pois a inexistência de deliberação do Congresso jamais se configura como uma autorização tácita, mas sim como uma recusa ou ausência de prioridade.

O projeto também recorre ao processo demarcatório para retirar o direito originário dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, permitindo a exploração em terras indígenas ainda não homologadas, antes mesmo da autorização do Congresso Nacional de ouvir as comunidades indígenas afetadas e de estabelecer a participação nos resultados da lavra. Chega ainda ao disparate de não exigir estudos prévios de impacto ambiental para exploração nessas áreas e de prever a dispensa de recuperação ambiental, caso o Congresso decida pela não autorização. 

É pacífico o entendimento jurídico, diante dos preceitos constitucionais socioambientais, de que nenhuma atividade econômica em terra indígena, seja minerária ou de aproveitamento hídrico, pode ser autorizada com violação dos direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, do usufruto exclusivo sobre os recursos naturais, bem como do direito de posse permanente sobre essas terras. Direitos necessários para garantir a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas. Corroborando com esse entendimento, vale mencionar o Artigo 42 do Código de Mineração, que diz que se a lavra for considerada prejudicial ao bem público ou comprometer interesses que superem a utilidade da exploração industrial, a autorização será recusada, a juízo do Governo.

Além de todos os riscos e prejuízos da mineração e do garimpo para os povos indígenas, hoje, já temos conhecimento e discernimento suficientes para entender que os danos não se restringem à comunidade que terá que suportar a atividade em suas terras. O significado da floresta em pé e da importância das terras indígenas, como áreas de preservação ambiental, são reconhecidas por estudos científicos, que comprovam o papel da floresta amazônica para regulação do clima, no contexto das mudanças climáticas, bem como para assegurar a sociobiodiversidade. Como diz o grande líder Yanomami Davi Kopenawa, “floresta vale mais que ouro”. 

A atual Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, trouxe em seu discurso de posse palavras otimistas e esperançosas, ressaltando que a nova geração, seja ela de direita ou de esquerda, será “sustentabilista”. Diante da crise que estamos inseridos, que coloca em risco a nossa sobrevivência, existem valores que já estão na categoria de irrenunciáveis. Não há mais tempo para erros primários ou mesas de negociações, como se estivéssemos simplesmente tratando de conflitos de interesses. Ou entendemos que a conservação ambiental e a diversidade cultural são condicionantes para a manutenção da existência, e que, sim, obrigatoriamente precisamos ser todos sustentabilistas, ou seremos sugados pelas dragas da autodestruição.  

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Comentários 1

  1. Davilson Brasileiro diz:

    Incrível, que com uma verba dessas não estejam investindo em “Aterros Sanitários”, tratamento de água e saneamento, mesmo nos municípios mais ricos como Sapezal, funciona um LIXÃO, e queima do lixo. Para um Estado que se diz grande protetor do meio ambiente, isso chega a ser vergonhoso! A baixa proteção do Pantanal, ameaçado constantemente por queimadas e o avanço do agronegocio, também representa uma equivocada compreenção e ignorância do potencial turístico deste bioma, que é único no país. Diante dessa realidade, e da proliferação absurda de “Clubes de Tiro” em quase todos os municípios, fica difícil de acreditar nas palavras do governador!