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O aprendizado brasileiro das trilhas de longo curso no mundo

Viagens para conhecer trilhas implementadas e consolidadas fora do Brasil, como a Arizona Trail, ajudam iniciativas do Brasil na implementação das suas próprias travessias

5 de novembro de 2017 · 6 anos atrás
Foto: Pedro da Cunha e Menezes.
Foto: Pedro da Cunha e Menezes.

A conservação no Brasil começa – finalmente – a enxergar o uso público também como um aliado. No resto do planeta, esta percepção não é nova, e uma das ferramentas mais usadas nos últimos anos é a Trilha de Longo Curso.

O conceito foi criado por Benton Mackey, em 1921, quando defendeu a criação de uma trilha de 3.600 quilômetros ligando as unidades de conservação da cordilheira dos Apalaches, no leste dos Estados Unidos. Sua ideia deu origem à Appalachian Trail, inaugurada em 1932 e, desde então, serviu de inspiração e subsídio para o estabelecimento de mais de 1.000 trilhas de longo curso mundo afora.

Ao longo do tempo, verificou-se que, para além de serem equipamentos de recreação e agentes indutores da geração de emprego e renda em uma escala regional linear, as trilhas de longo curso também são utilizadas pela fauna para movimentação e migração entre as unidades de conservação que, normalmente, são áreas núcleo dessas trilhas.

Essa conclusão, levou os Estados Unidos a elevarem as trilhas de longo curso à categoria de Unidades de Conservação no contexto do SNUC [Sistema Nacional de Unidades de Conservação] norte-americano. Hoje o país abriga dezenas de trilhas nacionais que somam mais de 95 mil quilômetros que, ao correrem no meio de corredores vegetados, ligam cerca de 120 unidades de conservação federais.

O sistema deu tão certo que foi copiado no mundo inteiro. Na Europa, ele evoluiu para que as trilhas de longo curso formassem verdadeiras redes, permitindo a movimentação de fauna em vários sentidos. Na França, esse sistema já conta com 180 mil quilômetros de trilhas. No contexto da Europa, estão sendo implementadas 12 trilhas continentais, a menor com cerca de cinco mil quilômetros de extensão. Na Oceania e Ásia, Austrália, Nova Zelândia e Japão também possuem milhares de quilômetros de trilhas de longo curso implementados; no Canadá, a maior trilha de longo curso, a TransCanada, com mais de 15 mil quilômetros, foi inaugurada esse ano.

Foto: Pedro da Cunha e Menezes.
Foto: Pedro da Cunha e Menezes.

A ferramenta não é exclusividade de países ricos. Nossos vizinhos Panamá, Peru, Chile e Argentina já têm as suas. Dominica, no Caribe, África do Sul e Zimbábue, na África Austral, Hong Kong, Israel, Jordânia, Albânia, Kosovo e Rússia também. E o Brasil?

Nós finalmente levantamos de nosso berço esplêndido! No início deste ano foi inaugurada a Trilha Transcarioca que, com 183 km de extensão, é a primeira trilha de longo curso regional do Brasil. Começamos tarde, é verdade, mas isso nos deu uma vantagem. Não precisamos repetir o erro dos outros. Para implementar a Trilha Transcarioca, voluntários e profissionais das unidades de conservação por ela ligados tiveram acesso à robusta capacitação técnica, por meio de oficinas e palestras dadas por especialistas estrangeiros. Outra estratégia de capacitação utilizada foi na forma de viagens de estudos a trilhas de longo curso existentes mundo afora. Assim, antes de implementar a Trilha Transcarioca, seus voluntários e profissionais visitaram, caminharam em trechos e interagiram com os gestores da Trilha Israel; da Trilha Jordânia; das trilhas Hoerikwaggo, Rim of Africa, Whale e Otter, na África do Sul; da Trilha Turacco, no Zimbábue; da Trilha Laugavegur, na Islândia; das Trilhas Rota Vicentina e Grande Rota de Torres Vedras, em Portugal; do Pennine Way, da West Highland Way, da Offa Dike e da Muralha de Adriano no Reino Unido; no Wicklow Way, na Irlanda; da Via Alpina, na Eslovênia; da Grande Rota 1, na França; da Peaks of Balkans, na Albânia e Montenegro; das trilhas Transeuropeias E1, E5 e E9; nas trilhas Great North Walk, Craddle Mountain, Fraser Island, Heysen, Bibbulmun, Cape to Cape, Harbour to Hawkesbury e Larapinta, na Austrália; das trilhas Bruce e International Appalachian Trail, no Canadá; da Waitukubuli Trail, em Dominica; do Sendero de Chile; da Huella Andina, na Argentina; e do Camino Inca, no Peru; além da Florida Trail, da Appalachian Trail, da Continental Divide Trail e da Buckeye Trail, nos Estados Unidos.

Foto: Pedro da Cunha e Menezes.
Foto: Pedro da Cunha e Menezes.

Essas visitas eram inicialmente realizadas por voluntários de forma individual e independente. Recentemente, contudo, foi iniciada uma rotina anual de visitas organizadas de grupos de voluntários e profissionais a algumas trilhas previamente escolhidas.

O programa sempre inclui palestras, sessões de perguntas e respostas, oficinas e caminhadas de aprendizado. Nesse formato, foram realizadas duas visitas à Rota Vicentina, uma à Hoerikwaggo Trail, uma à Buckeye Trail, uma ao Sendero de Chile e uma à Huella Andina. Em setembro deste ano, com agenda técnica preparada pelo Serviço Florestal Americano, embora com os custos pagos pelos bolsos dos próprios participantes, um grupo de quatro voluntários da Trilha Transcarioca teve capacitação técnica e visitou a Pacific Crest Trail, a Tahoe Rim Trail, a John Muir Trail e a Arizona Trail.

Essa última trilha foi implementada em 2011, tem 1.287 quilômetros e liga os extremos sul e norte do estado americano do Arizona. Além do puro prazer de trilhar, a visita teve como objetivo verificar como se dá a gestão de uma trilha de longo curso, quando ela corre sobre o mesmo leito de outra trilha com relevância local.

Nessa visita verificou-se que, quando bem planejada, uma trilha de longo curso deve ter relevância local, regional, nacional e, se possível, internacional. Em linhas gerais, as trilhas de longo curso nacionais percorrem mil quilômetros ou mais; as trilhas de longo curso regionais percorrem centenas de quilômetros e as trilhas de longo curso locais (ou travessias) têm dezenas de quilômetros e exigem, pelo menos, um pernoite durante a caminhada. Já, as trilhas de longo curso internacionais devem ligar pelo menos dois países, com, no mínimo, um pernoite em seu traçado.

Foto: Pedro da Cunha e Menezes.
Foto: Pedro da Cunha e Menezes.

O conceito deve-se ao fato de que uma trilha de longo curso deve SEMPRE ser implementada de baixo para cima. Embora o conceito de seu traçado possa, em linhas gerais, ser definido em um escritório, ou por um pequeno número de pessoas, de cima para baixo; no terreno ela deve ser definida por grupos locais. No processo, é preciso pensar o traçado de uma trilha de longo curso nacional de forma que o maior número possível de seus trechos individuais tenha também relevância local e que gere emprego e renda nas suas proximidades. Em outras palavras, um trecho de um dia de caminhada deve, sempre que possível, também estar estruturado para uma caminhada de fim de semana, com opções de uma trilha auxiliar que o ligue de volta ao ponto de partida, promovendo um circuito ou, ainda, uma logística de transporte que garanta o retorno do trilheiro ao ponto de partida, onde terá deixado seu carro.

No segundo caso, o trilheiro terá caminhado um trecho de dois dias da trilha de longo curso nacional ou regional. Já no caso do circuito, o caminhante terá percorrido uma trilha de longo curso local em que um dos trechos também faz parte de trilha de longo curso nacional/regional. Dessa forma, um percurso de centenas de quilômetros também ajudará a gerar emprego e renda localmente, além de criar pertencimento da população da área.

Nesse caso, como ficam a questão da governança, da identidade e da sinalização das trilhas que correm sobre o mesmo leito? Para estudar o tema, escolhemos um trecho da Arizona Trail em que ela cruza um atrativo muitas vezes mais famoso do que ela mesma: o Grand Canyon.

Para quem desce do South Rim em direção ao rio Colorado, a Arizona Trail oferece as duas opções discutidas. É possível pernoitar às margens barrentas do rio (em acampamento, abrigo ou pousadas, todos excelentes) e subir, no dia seguinte, pela própria Arizona Trail até o North Rim. Também é possível subir de volta ao ponto de partida por outra trilha, que não faz parte da Arizona Trail.

Foto: Pedro da Cunha e Menezes.
Foto: Pedro da Cunha e Menezes.

Escolhemos a segunda opção. Ao longo dos dois dias do percurso, aprendemos sobre o manejo das trilhas e a estruturação dos pernoites, sobretudo o sistema de venda, reserva, manejo e fiscalização dos locais de acampamento.

Ao chegarmos ao ponto de pernoite, em conversas com guardas-parque e concessionários do Phantom Ranch, complexo de hospedagem existente às margens do Colorado, foi verificado que cerca de 90% dos usuários da trilha não são da região e não dispõem de muito tempo. Visitam o Grand Canyon, no contexto de uma viagem pelo meio oeste americano e estão fazendo uma caminhada cujo objetivo é apenas o Grand Canyon. Nesse sentido, não estão trilhando a Arizona Trail. Percentagem semelhante sequer tem conhecimento dela, o que não gera pertencimento. Por outro lado, o Grand Canyon como o atrativo que é, não precisa nem minimamente da Arizona Trail para gerar emprego e renda na área em que está inserido.

Nesse caso específico, sinalizar intensivamente a Arizona Trail poderia confundir os usuários pois os levaria a dúvidas na hora de escolher o caminho ou de se localizar. Ainda assim, tão logo deixa o Grand Canyon, a sul ou a norte, a Arizona Trail logo começa a percorrer regiões sem grandes atrativos turísticos e deprimidas economicamente (em contexto norte-americano, é bom deixar claro!). Nesse sentido, decidiu-se sinalizar a trilha do Grand Canyon, mostrando que ela faz parte da Arizona Trail, bem como explicando o que ela é, apenas em lugares estratégicos, como as bordas do Canyon e os locais de pernoite. Essa escolha tem o objetivo de aguçar a curiosidade dos visitantes que residem na região e são adeptos do esporte de caminhadas e incentivá-los a voltar e percorrer mais trechos da Arizona Trail.

Embora não haja pesquisas que confirmem ou desmintam a eficácia da estratégia, a avaliação amostral feita pelos administradores da Trilha Arizona é de que a forma escolhida foi a melhor possível. Para o grupo de voluntários da Trilha Transcarioca ficou o aprendizado de que a estratégia de sinalização depende do objetivo a ser atingido em um dado momento e local, e pode mudar de acordo com o lugar e com o momento, desde que não afete negativamente nenhum dos objetivos perseguidos (geração de emprego e renda, consolidação da trilha nacional e/ou regional, geração de pertencimento e conectividade de paisagens).

Foto: Pedro da Cunha e Menezes.
Foto: Pedro da Cunha e Menezes.

No contexto da visita aos Estados Unidos, a análise das Trilhas Regionais Tahoe Rim e John Muir e da Trilha Nacional Pacific Crest também geraram muito aprendizado. Em breve ((o))eco vai publicar um relato da experiência nessa última.

A viagem do ano que vem terá como foco a segurança e a geração de emprego e renda. Em princípio, vamos percorrer a Trilha Líbano e a Trilha Jordânia. Dessa vez, a iniciativa não vai se restringir ao Movimento Trilha Transcarioca. À luz da iniciativa do ICMBio de coordenar a implementação das trilhas de longo curso nacionais Oiapoque x Chuí, Caminho do Peabiru, Caminho dos Goyazes e Estrada Real e de diversas Trilhas de longo Curso Regionais a exemplo  da Trilha Chico Mendes, voluntários e profissionais envolvidos com os respectivos trabalhos de sinalização e manejo serão muito bem-vindos. Contudo, é preciso recordar que a iniciativa é totalmente voluntária e cada um precisa ser capaz de arcar com seus próprios custos.

Observação: Voluntários de Trilhas de Longo Curso Regionais e Locais como a Trilha Transmantiqueira, a Rota do Descobrimento, o Caminho da Serra do Mar, o Caminho de Cora Coralina, o Caminho da Mata Atlântica, a Rota das Emoções, a Trilha Transespinhaço, o Caminho das Araucárias, os Caminhos da Costa Verde e a própria Trilha Transcarioca, entre outras, também são bem-vindos!

Foto: Pedro da Cunha e Menezes.
Foto: Pedro da Cunha e Menezes.

 

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Comentários 5

  1. Wilson França diz:

    Excelente texto, Pedro. Parabéns. Acho que a melhor prática para mantermos e ampliarmos as trilhas que temos e teremos é a divulgação das mesmas com o objetivo de conquistarmos mais adeptos das caminhadas, potenciais "fiscais" das mesmas. Sou adepto da máxima "locais frequentados por gente do bem, os marginas não proliferam".


    1. Wilson França diz:

      Desculpe a repetição "das mesmas" e "marginas". Na correria, não revisei.


  2. jtruda diz:

    Um trabalho excelente, com dois grandes inimigos a enfrentar: a degradação ambiental do trajeto e entorno, num país de devastadores e porcos, e a criminalidade galopante, que faz da caminhada um risco medonho. Pra essas iniciativas darem certo, precisamos mudar o Brasil mais amplamente. Bora lá que a tarefa é árdua!


  3. Leonardo M Gomes diz:

    Legal Pedro,
    Ler o seu relato me despertou a percepção da importância sobre a missão que você parece ter escolhido para sua vida. Independente dos fatores circunstanciais, políticos, institucionais ou mesmo de problemas pessoais, lhe resta sempre a convicção clara sobre sua missão. Esse tipo de convicção é essencial para quando balançamos ou o ânimo está baixo. Nos mantém seguindo adiante, para além da nuvem de incertezas. Aprendi sobre isso quando passei por momentos de dificuldade pessoal, aprendi na teoria, embora ainda esteja construindo a "minha convicção". Mais uma lição que você nos dá. Siga firme e contagie mais gente. Abs


  4. Muito bom.

    E reforça a idéia, longa de anos, de implementar o Varedo do Mar ao Sertão do Baixo São Francisco (ambas as margens do Velho Chico em Sergipe e Alagoas e seguindo pelo leito da antiga estrada de ferro Piranhas a Jatobá em Pernambuco).

    O caminho, secular desde as primeiras ocupações, já existe, podendo ser percorrido a pé, de bicicleta, canoa de tolda (embarcação tradicional do Baixo São Francisco), lombo de jegue.