Que o pirarucu (de nome científico Arapaima gigas) é o maior peixe de água doce todo mundo já sabe e que, a partir dele, é possível preparar diversos e ricos pratos também não é nenhuma novidade. O que você precisa saber é que para esse peixe maravilhoso chegar à sua mesa existe muito trabalho, envolvimento comunitário e compromisso com a sustentabilidade do meio ambiente. Trabalho esse que também tem grande participação das mulheres, que são invisibilizadas em sua maioria.
O pirarucu possui algumas características que garantem a possibilidade de manejá-lo. Ele respira de forma branquial e aérea, isso quer dizer que a cada 5 e 20 minutos ele submerge da água para respirar, pois o oxigênio da água não é suficiente para sua respiração. O gigante da Amazônia pode crescer até três metros e pesar até 200 quilos.
No manejo, primeiramente os comunitários realizam a vigilância dos lagos, em seguida a contagem do peixe, que ocorre a partir do momento em que o peixe submerge para respirar. Essa técnica é tradicionalmente utilizada pelos ribeirinhos e validada pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Só é permitida a captura de 30% da população da espécie em um local. Além disso, não é permitida a captura durante o período do defeso e nem de pirarucus menores que 1,5 metro.
A pesca do pirarucu só é permitida em áreas de manejo e autorizadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos). Sua despesca é permitida no período de 1º de junho até 30 de novembro, conforme nota técnica do Ibama. Na prática, a despesca ocorre a partir de setembro quando os lagos estão mais secos, momento ideal para ser realizado o manejo do peixe, após a realização da contagem dos pirarucus adultos.
Esse processo do manejo é um trabalho majoritariamente realizado por homens, mas pouco se fala do papel crucial das mulheres desde o monitoramento dos lagos até a venda do peixe. Elas pilotam as embarcações para a despesca até o beneficiamento, em que realizam a lavagem, evisceração e monitoramento para seguir ao resfriamento, manipulação e armazenamento do pescado.
De 2 a 5 de dezembro de 2023, tive a experiência de acompanhar os processos do manejo do pirarucu na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Piagaçu Purus e pude ver de perto a importância e o papel das mulheres. Elas se destacam pela força e destreza na manutenção do processo do manejo, provando que a atuação nesse segmento não é um trabalho exclusivamente masculino, mas de todas as pessoas. E, vejamos, as mulheres na sociedade provam a cada dia que mesmo diante do machismo são capazes de fazer qualquer coisa.
A viagem que realizamos foi longa, como é de costume quando se trata de viajar pelo Amazonas, já que a logística é sempre um desafio. Saímos de Manaus no dia 2 de dezembro, às 6, pela estrada até o município de Manacapuru, distante 70 quilômetros de Manaus. De lá, por volta das 8h30, pegamos uma lancha pequena com destino às comunidades Novo Supiá e Redenção, localizadas no município de Beruri, que fica a 263 quilômetros de Manaus.
Não conseguimos chegar até às comunidades no mesmo dia, pois no meio do trajeto descobrimos que o combustível da embarcação era adulterado, o que causou falhas no motor. O resultado disso foi uma viagem mais longa com várias paradas no meio do rio até realizarmos uma parada final na comunidade Nossa Senhora do Rosário do Cuiuanã, onde pernoitamos. No dia seguinte, partimos cedo para o nosso destino final, chegando no fim da tarde.
Após outro pernoite, acompanhei os grupos de comunitários para o lago onde seria pescado o pirarucu; ficamos no local das 8h às 14h. Aqui, destaco a relevância das mulheres no processo da pesca. Elas produzem a lança que será usada para capturar o pirarucu, conduzem as embarcações para que os homens consigam retirar o peixe do lago e fazer o abate e pilotam o rabeta na ida e volta do lago às bases e comunidades.
Ao chegarmos na base, local em que é realizada a medição do tamanho do peixe, o peso e o registro se o pirarucu é fêmea ou macho, o pescado passou pelo primeiro processo de beneficiamento. Depois disso, esses peixes foram deslocados até às comunidades, e posteriormente entregues ao seu comprador, que estava aguardando. Ao longo da semana, foram capturados 500 pirarucus para comercialização.
Esse é um processo que precisa ser reconhecido e valorizado por instituições, sejam elas do terceiro setor ou não, que se propõem a implementar projetos em comunidades da Amazônia. No caso do pirarucu, quem comercializa e compra precisa entender como é feito o manejo do gigante da Amazônia e como funciona todo o processo desde a época do defeso até a comercialização desse peixe, e a quantidade de famílias envolvidas em todas as etapas.
Essa logística e todo o trabalho realizado pelos comunitários precisa ser levado em consideração na hora em que você for ao mercado comprar esse produto. Em 2019, a Fundação Amazônia Sustentável (FAS) e a Universidade Notre Dame, por meio de pesquisa na Reserva Mamirauá, constataram que os resultados econômicos da cadeia produtiva do pirarucu para o pescador são de apenas 15%, sendo 35% para intermediários e 50% para os frigoríficos. A FAS busca atuar com projetos para fortalecer a economia local nas Unidades de Conservação (UCs) em que atua.
Ao longo do ano, a FAS realiza feiras de comercialização de pirarucu, em parceria com a Associação dos Moradores e Usuários da RDS Mamirauá Antônio Martins (Amurman), em Manaus. Os próprios manejadores vão até à capital amazonense e vendem o pescado. Além disso, também existe o projeto Piraruclub, o primeiro clube de comercialização por assinatura de pirarucu de manejo sustentável do Amazonas. O projeto funciona por meio de três tipos de assinaturas anuais: cota sustentável, cota pirarucu e cota premium. O estabelecimento recebe combos de pirarucu elaborados sob medida, com cortes especiais e de forma mensal, de acordo com a cota escolhida. As assinaturas são direcionadas aos restaurantes, hotéis e empórios de Manaus. Mas nós entendemos que esse é um trabalho que ainda precisa de muito investimento, especialmente em infraestrutura, como barcos e salgadeiras, construção de flutuantes, capacitação de boas práticas de manejo e gestão de bens e negócios, por exemplo.
Quero enfatizar que todo esse processo do manejo que citei não é valorizado quando chega ao mercado, porque as pessoas não percebem que, por trás do produto, existem vários processos e conceitos ligados a questão socioambiental e que deveriam ser observados. Muitos brasileiros, até quem vive na Amazônia, não percebem que, quando se vende um peixe que vem de área protegida, há uma correlação direta com a proteção das populações da espécie. E essa conservação tem participação de famílias e lideranças femininas que geram benefícios econômicos, sociais e ambientais para os territórios.
Já ouvi e li comentários como “Ah, o peixe está muito caro”, mas essas pessoas pagam, muitas vezes, um valor mais barato em um produto que é fruto da pesca predatória. Então, até que ponto nós precisamos nos educar e olhar para um produto tendo a clareza de quem ele vai beneficiar? Quando tivermos esse comportamento, conseguiremos contribuir cada vez mais em produtos da sociobiodiversidade, especialmente agregar valor aos produtos que são oriundos de áreas ambientais protegidas.
As opiniões e informações publicadas nas sessões de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
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Uma pena que trabalho tão importante tenha tantas mensagens de ativismo por parte da autora do texto.
Que matéria linda. Esse peixe me encanta e orgulha.
Erro no uso do termo “submergir” em vez de “emergir”.