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Reconhecimento aos povos indígenas corrige erros históricos

Essa correção de rumos chegou em boa hora. Não só com relação ao novo Ministério, mas também com a nomeação de Joênia Wapichana para a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

13 de janeiro de 2023 · 1 anos atrás
  • Carlos Bocuhy

    Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a nomeação da ministra Sonia Guajajara, o Brasil corrige atrasos e erros históricos na gestão dos povos originários. A pasta iniciará a retomada da demarcação de terras e a expulsão de invasores. Ou seja, faltavam políticas de demarcação territorial que fizessem justiça aos povos originários e o cumprimento da lei que deveria, há muito, prover sua proteção.

Essa correção de rumos chegou em boa hora. Não só com relação ao novo Ministério, mas também com a nomeação de Joênia Wapichana para a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

A questão indígena no Brasil, até 31 de dezembro, quando acabou a gestão de Jair Bolsonaro, estava em terreno pantanoso. Há farta comprovação sobre os ataques aos povos indígenas especialmente na gestão Bolsonaro, quando as invasões em terras indígenas cresceram 135% no ano de 2019, o número de assassinatos cresceu 61% nos dois primeiros anos de governo e em 2021 o Brasil registrou o recorde de 305 casos de invasão, exploração ilegal e danos a 226 terras indígenas de 22 estados. O aumento foi de 180% em relação aos números de 2018, antes do início da gestão de Bolsonaro.

É incompreensível que tenhamos assistido essas desconformidades depois de mais de três décadas de vigência de nossa Constituição cidadã.

A criação do Ministério dos Povos Indígenas e a nomeação de lideranças indígenas para sua condução são condições que, internacionalmente, já foram equacionadas em outras realidades nacionais. O Bureau of Indian Affairs (BIA), do Estados Unidos, desde a criação do cargo de Secretário Adjunto para Assuntos Indígenas em 1977, contou com treze nomeações indígenas, incluindo o atual secretário Bryan Newland, da Comunidade Indígena Bay Mills. A partir de 2020, a maioria dos funcionários do BIA são índios americanos ou nativos do Alasca.

O empoderamento e a autodeterminação dos povos originários dentro dos espaços políticos de gestão nos diferentes países são reivindicações justas – e remontam há mais de um século e meio. O conceito de autodeterminação foi expresso pela primeira vez em 1860 e hoje é um princípio do direito internacional moderno. A autodeterminação inclui a efetividade na gestão independente, condição basilar para a boa condução dos assuntos indígenas.

A história é pródiga em exemplos sobre os malefícios da dominação de povos originários. A obra que recebeu o Prêmio Pulitzer “Armas, Germes e Aço: Os Destinos Das Sociedades Humanas” (2001) de Jared Diamond, professor de geografia na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), traz relatos impressionantes sobre a história dos povos originários e seus embates com o mundo dito civilizado.

Diamond emprega fortemente a dimensão tecnológica e ambiental como determinante nesses conflitos entre conquistadores e conquistados. Os ameríndios foram passados a fio de aço, contra o qual não possuíam defesas. Os Incas do Peru perderam 5.000 guerreiros diante de apenas 160 cavaleiros de Francisco Pizarro, revestidos, assim como seus cavalos, de armaduras de aço. No Chile, na batalha de Penco, as armaduras e armas de aço de uma centena de cavaleiros de Pedro de Valdívia dizimaram 4.000 mapuches.

Retrata também o livro a dizimação das resistências astecas no México frente às bactérias da varíola e da gripe. Os europeus possuíam imunidade decorrente de seu convívio secular com vetores de doenças infecciosas, enquanto os povos ameríndios sucumbiam aos milhares diante de simples surto gripal.

Os germes encontram hoje substituto no envenenamento das águas por mercúrio decorrente da mineração desregrada e clandestina, além dos agrotóxicos presentes em terras, muitas vezes griladas, próximas das áreas indígenas.

Já em 1971, em “As Veias Abertas da América Latina”, o escritor Eduardo Galeano demonstrava as dimensões da exploração econômica da América Latina, que custou a vida de milhões de indígenas. Sua obra foi banida pelos governos militares da Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, mas sua essência verdadeira sobreviveu a esses governos com a redemocratização, que afastou ideias retrógradas de dominação e exploração territorial de forma ambientalmente e socialmente desregrada.

Diane Lenton, antropóloga argentina, afirma que o genocídio pode ser caracterizado quando o Estado moderno elimina as possibilidades de diversidade interna. “É genocídio quando se pode estabelecer a intencionalidade de destruir um povo”, afirma. Lendon cita o general argentino Julio Roca como exemplo de genocídio dos povos ameríndios da Araucania, dos mapuche aos manzaneros. Ao buscar erradicar a presença indígena dos pampas à Patagônia, Roca estudou as reservas norte-americanas. Na América do Norte, ao fim das “guerras indígenas”, uma população de 25 milhões com cerca de 2.000 idiomas foi reduzida a 2 milhões, menos de 10% do total, que foram removidos para reservas.

Mas Roca preferiu adotar os procedimentos da colonização francesa na Argélia. Decidiu pelo modelo francês de subjugar árabes e berberes, porque dizia que o modelo de reservas era caro. Ou seja, optou pelo extermínio.

A colonização da Argélia ensejou reflexões humanitárias como as de Jean-Paul Sartre, que afirmou que políticas coloniais segregacionistas e o impedimento de ascensão social geravam problemas psicológicos de inferioridade para o colonizado, sempre tratado pelo colonizador como inferior.

Na Argentina, Julio Roca foi aos extremos da segregação e do genocídio. Declarou em diversas ocasiões a intenção de destruir até o último indígena, inclusive em seu discurso quando assumiu a presidência. Não é para menos que seus monumentos estão sendo objeto de pressão para erradicação da Argentina, incluindo a imagem na nota de cem pesos, em processo de revisão da história oficial, levando em conta que os crimes de lesa-humanidade não devem ser esquecidos.

No Brasil houve variada legislação, regulamentos e cartas régias, gerando um verdadeiro caos legislativo, mas que em síntese atestavam a “evidente” ascendência europeia portuguesa sobre os povos indígenas, onde se afirmava que os conquistadores eram povos mais desenvolvidos e que, por outro lado, os povos nativos eram conquistados e dominados por serem rudes e inferiores, povos sem cultura, sem rei e sem lei. Grosso modo, eram divididos em inimigos e aliados. Aos aliados o cativeiro era proibido em favor da sua incorporação nos aldeamentos para serem catequizados e repartidos entre os colonos, religiosos e governo como soldados e trabalhadores remunerados; aos inimigos era destinada a guerra e o cativeiro lícito, se capturados nas guerras ou resgates.

Muito se evoluiu até a constituição da Funai em 1967, em processo contínuo de ampliação da compreensão humanitária, que culmina agora com sua incorporação ao Ministério dos Povos Indígenas. Avançamos em patamar civilizatório, rompendo definitivamente com a negação da autodeterminação, da história sangrenta de chacinas e de escravidão, com o intenso e continuado período secular de negação de direitos humanos.

Agora será preciso plasmar esses avanços humanitários na realidade. É preciso que o Ministério dos Povos Indígenas goze de irrestrito e firme apoio do governo central e do Legislativo federal, além da ação firme do judiciário brasileiro – conjuntos representados nas dimensões da governabilidade política e de governança.

A Índia, que cede seu nome por empréstimo aos índios das Índias Ocidentais, tece, sabiamente, em sua constituição: “Será dever de todo cidadão da Índia proteger e melhorar o ambiente natural, incluindo florestas, lagos, rios e vida selvagem, e ter compaixão pelas criaturas vivas”. Dentro da imensa teia de vida planetária, reconhecer a autodeterminação dos povos originários é, em profundidade, exercer empatia e conceder dignidade e liberdade, sacralizando as mais nobres das condições humanitárias.

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