Colunas

Sendero do Chile e Huella Andina, duas gigantes sul-americanas

Trilhas de longo curso e sistemas de trilhas não são projetos, são processos. Processos que podem levar décadas para se consolidar. Foi esse processo que vi no Chile e na Argentina

10 de março de 2023 · 2 anos atrás

Há três décadas tenho aproveitado minhas férias para visitar trilhas de longo curso e sistemas de trilhas em diferentes lugares do mundo. São viagens prazerosas que também geram muito aprendizado. Algumas dessas visitas foram parte de cooperações técnicas entre a Rede Brasileira de Trilhas e instituições congêneres estrangeiras, como as realizadas à Lebanon Mountain Trail, à Hoerikwaggo Trail, à Pacific Crest Trail, à Rota Vicentina e à Waitukubuli Trail. Cada visita sempre inclui pelo menos uma caminhada com pelo menos um pernoite, precedida ou seguida de conversas com gestores locais, empresários, voluntários, servidores de unidades de conservação, pesquisadores e trilheiros, entre outros atores relevantes.

Neste verão, incentivado pelos contatos feitos no âmbito da recém-criada Rede Pan-Americana de Trilhas, decidi pegar meu carro e voltar ao Sendero de Chile. Já tinha visitado vários trechos do Sendero de Chile, no sul da Patagônia, nos Parques Nacionais Torres de Paine e nas Reservas Nacionais Laguna Parrillar e Magallanes, onde me encantei com o projeto. 

Dessa vez, com os inestimáveis apoios de Sebastián Infante e Felipe Fuentes Diretores da Fundação Sendero de Chile, montei um roteiro que me permitiu conhecer pessoas chave do projeto em duas dezenas de unidades de conservação e palmilhar cerca de 250 km em diferentes trechos dessa mega trilha.

O Sendero tem origens grandiosas, com farto apoio governamental mas, com o passar do tempo, teve descontinuidade no suporte financeiro e desceu na escala de prioridades institucionais, o que levou à certa frustração de seus idealizadores e gestores. Analisado com frieza e imparcialidade, entretanto, o Sendero é um case de sucesso em um continente marcado por fragilidades institucionais e falta de continuidade em projetos de longo prazo, como é o caso em tela.

Trilhas de Longo Curso são empreitadas que demoram mais de uma década para amadurecer e vingar. São, portanto, processos de longo prazo e não iniciativas pontuais. O que testemunhei no Chile é uma trilhas que já tem muitos quilômetros implementados, serviços associados a ela e, mais importante que tudo, grupos de aguerridos cidadãos dedicados à sua consecução e sucesso.

O Sendero de Chile teve um nascimento de gala. Sua criação foi anunciada em maio de 2000 por ninguém menos que Ricardo Lagos, então presidente do país. O anúncio veio acompanhado de uma instituição governamental encarregada de sua implantação e do respectivo orçamento, saído dos cofres da Comissão Nacional de Meio Ambiente. Nos primeiros 4 anos, 1.500 km de trilhas foram habilitados em diferentes trechos ao longo de um traçado pensado para ligar o Atacama à Terra do Fogo.

Vale da Lua, no Chile. Foto: Pedro da Cunha e Menezes

Em 2006, após um exigente concurso público, Sebastián Infante foi contratado para gerenciar o projeto em nível nacional. Finalmente, em 2009, o projeto deixou de ser governamental e passou a ser gerido por uma fundação de direito privado, sem fins lucrativos. De lá para cá, apesar de ainda haver aportes do Governo, houve perda substancial de recursos financeiros e redução de apoio institucional. Além disso, o objetivo inicial de conectar os extremos do Chile foi ampliado para a criação e gestão de uma Rede Chilena de Trilhas, em todo o país. 

Se por um lado, houve redução na velocidade e perda de peso político na sua implantação, por outro o projeto deixou de ser uma iniciativa de Governo e, aos poucos está se transformando em um projeto cidadão implantado de baixo para cima, com menos ímpeto e força, mas com raízes mais profundas e maior resiliência.

​O Sendero de Chile, quando ficar pronto, vai ter mais de 8.000 km de extensão e conectará o país por trilhas terrestres e aquáticas desertos, salares, vulcões, montanhas nevadas, praias, florestas de araucárias, lagos andinos e pequenos povoados. Sebastián Infante o imagina como um indutor de geração de emprego e renda, mas também como uma ferramenta de acesso e de divulgação das pequenas vilas e aldeias de seu país. Conectar milhares de quilômetros de deserto  e alto montanha por trilhas bem manejadas, entretanto, é tarefa para muitos anos de trabalho. Assim, a estratégia atual do Sendero de Chile é implementar pequenos trechos onde é possível, muitas vezes em parceria com unidades de conservação.

O resultado, até o momento, é animador. A grande maioria das unidades de conservação chilenas conta com pelo menos 10 km de trilhas estruturadas e bem sinalizadas. As travessias, a exemplo da Travessia Villa Rica que tive o privilégio de caminhar, têm locais delimitados para pernoite e muitos acampamentos estruturados. No total, cerca de 1.500 km do Sendero de Chile estão prontos. Pode parecer pouco para que almeja mais de 8 mil, sobretudo se levamos em consideração que estão espalhados por mais de 50 trilhas diferentes e desconectadas. Afinal o Sendero de Chile é uma trilha de longo curso contínua ou um sonho cheio de buracos?

Em minha conversa com Sebástian Infante, ele demonstra ao mesmo tempo frustração e resiliência. Frustração de quem está à frente de um projeto que teve um início anunciado com pompa e circunstância por nada menos que o Presidente do país e que deslanchou com fundos orçamentários promissores mas, que depois como tantas promessas governamentais, desmilinguiu e hoje anda a passos mais curtos. A redução do apoio governamental também reduziu a capacidade de interlocução com os proprietários privados cujas terras estão no traçado ideal do Sendero, o que dificulta sua viabilização. A equipe do Sendero de Chile, no entanto, é resiliente. O lema é “calma com o andar da carruagem”, uma trilha de oito mil quilômetros não se consolida da noite para o dia. A própria Appalachian Trail, que é a grande referência de todos nós, demorou algumas décadas para estar toda sinalizada e ainda está às voltas, mais de cem anos depois de idealizada, com a consolidação de seu corredor florestado. 

Ainda nos Estados Unidos, a “Análise das lacunas dos corredores de proteção e avaliação da conectividade das Trilhas Nacionais”, elaborada em 2019 pela Partnership for the National Trails System, verificou que em todo o Sistema Americano de Trilhas há mais de 36.000 km de trilhas que não estão abertas ao público ou que, embora apareçam nos mapas, nunca foram de fato implementadas no terreno.

Ou seja, trilhas de longo curso e sistemas de trilhas não são projetos, são processos. Processos que podem levar décadas para se consolidar. Foi esse processo que vi no Chile e que me encantou. Com o manual, “Travesías rutas y senderos para conocer Chile caminhando”, publicado pela Fundação Sendero de Chile, na mão e com o aconselhamento insubstituível de Felipe Fuentes, diretor da instituição para a região da Araucania, escolhi onde pisar e o que conhecer ao longo deste belo país, conhecendo a pé algumas das trilhas implementadas e de carro as lacunas que o Sendero de Chile há de preencher um dia. Enquanto montava meu roteiro, Felipe me contava de suas expedições conectando antigos caminhos de tropeiros e outros moradores antigos, como a trilha de 170 km que, sob sua liderança, o Sendero de Chile recuperou em 2021, ligando os rio Aconcagua e Maipo, ligando 13 pequenas vilas.

Não fiz essa trilha, mas pelas mãos de Felipe e Sebastián, costurei uma das linhas mais bonitas do mundo e vivi uma experiência que me levou a diferentes biomas, culturas, geomorfologias e paisagens. Comecei o périplo binacional pelo deserto do Atacama, que abriga algumas das paletas de cores mais deslumbrantes do planeta. De lá, fui baixando de carro até a Reserva Nacional Futalueufu, na Rota dos Parques, idealizada por Douglas Tompkins, na Patagônia chilena, onde atravessei a fronteira para percorrer trechos da Huella Andina nos Parques Nacionais Los Alerces, Los Arrayanes e Lago Puelo, aprendizado que será objeto de artigo à parte.

A experiência somou-se a uma viagem prévia em que visitei, com outros diretores da Rede Brasileira de Trilhas, os Parques Nacionais Torres del Paine e Pali Aike, as Reservas Nacionais Parrillar e Magallanes e a área do Cabo Froward, atualmente em estudo para ser declarada área protegida.

Nas Unidades de Conservação, do norte ao sul do país, desde San Pedro de Atacama até Punta Arenas, vi uma visitação bem organizada e uma infraestrutura bastante satisfatória. Também vi um empresariado ativo e capaz de suprir a demanda de ecoturismo, que é forte tanto no mercado doméstico quanto no externo. 

Em Torres del Paine esta demanda ficou claríssima. Embora os circuitos W e O seja muito bem organizados, com belos locais de acampamento, abrigos e hotéis a saturação da visitação já extrapola em muito os limites do razoável. Nas conversas que tive com os gestores da CONAF, órgão chileno que faz a gestão das áreas protegidas, percebi que há uma grande consciência da importância do uso público. Falta, ainda, que a maioria dos servidores consigam sair da “caixinha” unidades de conservação para entrar na “caixinha! conservação ecossistêmica e conectividade. Ou seja, o manejo da visitação é excelente, mas ainda falta a capacidade institucional de perceber o uso público como ferramenta de conservação. A consequência é a dificuldade em planejar trilhas como conectores de paisagem e de pensar a ação da atividade em áreas privadas. 

Em conversa que mantive com Sebastián Infante, enquanto visitávamos a belíssima trilha Ruta del Hongo, em pleno Parque Metropolitano de Santiago, ele me confidenciava ser esse, e não o baixo orçamento, o maior desafio: “as pessoas ainda pensam conservação dentro de suas limitações jurisdicionais. Nesses termos, pensar conectividade é um grande desafio. Se bem direcionado, esse excesso de público em Torres del Paine poderia estar caminhando em outras trilhas e ajudando, com seu uso, a consolidar algumas conectividades entre áreas protegidas”.

Foto: Pedro da Cunha e Menezes

Com efeito, essas limitações de pensamento das estratégias de conservação estão claras para quem visita o Sendero de Chile no terreno. Não é, contudo, caso perdido. Quando entrei na Patagônia e visitei o Parque Nacional Pumalin, parte da iniciativa da Fundação Rewilding Chile, fundada há cerca de 30 anos pelo mecenas norte-americano Douglas Thompkins, comecei a ter contato com outra visão de conservação, mais moderna, mais pragmática e complementar à visão do Estado. A Fundação compra terras, as estrutura, monta programas de geração de emprego e renda e as doa ao Chile (e também à Argentina) para que se transformem em Parques Nacionais. Uma de suas pedras basilares é integrar as Unidades de Conservação às economias do entorno. Sob essa visão, está desenvolvendo o projeto Ruta de los Parques. Trata-se de uma iniciativa de valorizar a estrada de 2.800 km entre Puerto Montt e o Cabo Horn e, por meio dela, criar uma rota ecoturística que estimule visitantes e cidadania a pensarem os 17 parques do roteiro não como unidades indissociadas, mas como um grande mosaico de 11,8 milhões de hectares que precisam ser vistos e manejados como um único ecossistema bem conectado.  

A Fundação já entendeu a necessidade da gestão por mosaicos, entendeu também a importância da conectividade entre as Unidades de Conservação. Já, o Chile como um todo, sabe gerir uso público e ecoturismo e tem trilhas de qualidade. Falta pouco para que Sendero de Chile e Rota dos Parques deem as mãos (ou juntem os pés) e comecem a pensar o Sendero de Chile como a ferramenta de conservação que falta na Patagônia Chilena. Uma vez feito isso, um terço do Sendero de Chile estará pronto, o resto tenderá a seguir o exemplo. 

Com paciência e perseverança, não tardará para que tenhamos no Chile a trilha de longo curso mais bonita do mundo.

PS: Tanto Sendero de Chile quanto Huella Andina estão convidadas para apresentar suas experiências no II Congresso Brasileiro de Trilhas que vai acontecer em Niterói entre os dias 20 e 24 de setembro de 2023.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

Leia também

Análises
31 de janeiro de 2023

Trilha Transmantiqueira e suas pegadas na crista da Serra Fina

A implementação da trilha de longo curso que cruza a Serra da Mantiqueira, entre Minas Gerais e São Paulo, em conexão com a Associação dos Proprietários da Serra Fina e as Unidades de Conservação

Análises
9 de junho de 2022

Trilha para Todos: uma estratégia nacional de reconciliação (e revolução!)

Democratizar e universalizar o acesso de brasileiros ao ambiente natural pode ser, mais do que um imperativo moral, a nossa tábua de salvação

Análises
20 de setembro de 2021

Uma aventura na Rota dos Pioneiros, a maior trilha aquática do Brasil

Percorrida de caiaque pelas águas do rio Paraná, na divisa entre Mato Grosso do Sul e Paraná, a Rota dos Pioneiros é uma oportunidade de remar no curso deste gigante e conhecê-lo de forma privilegiada

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Comentários 2

  1. Guilherme diz:

    O importante ficou faltando: quais as normas aplicáveis?


    1. pedro menezes diz:

      prezado Guilherme, pode explicar melhor sua pergunta por favor?