Era final de tarde já e os gritinhos não paravam, mas demoramos a descobrir que eles vinham de nosso próprio pátio. Na Praia do Forte, Bahia, felizmente ainda são muitos os sons da Natureza que povoam os dias dos condomínios e ruas, como são também muitas as espécies que os emitem. Mas esses chamados eram insistentes, pungentes, e ao final descobrimos, escondida atrás do grande vaso de rosa-do-deserto, a autora do que eram na verdade pedidos de socorro.
Nas nossas mãos, gelada e assustada, materializou-se uma gambazinha órfã, de olhos ainda fechados e umas escassas vinte gramas. Uma breve olhada em volta nos convenceu que ela deveria ter caído da bolsa da mãe, provavelmente vivendo sob o telhado do condomínio, dois andares acima. Uma gambá-de-orelhas-brancas, Didelphis albiventris, uma das quatro espécies de gambás, sarigüês, mucuras, timbus ou cassacos, como são conhecidos conforme as regiões do Brasil onde ocorrem. Mas, principalmente, eles ocorrem dentro das cidades, abrigados nas casas, porões, forros de telhados, qualquer lugar em que possam encontrar abrigo. Nós roubamos o habitat das espécies silvestres com nossa urbanização galopante; algumas delas, porém, como os gambás, aprenderam a conviver com nossa espécie gananciosa e exclusivista, que não gosta de dividir seus espaços.
Marsupiais como os cangurus e coalas, ou seja, com filhotes que se desenvolvem por um bom tempo numa bolsa (o marsúpio) antes de poderem sair sozinhos pelo mundo, de hábitos preferencialmente noturnos, vivendo pouco (entre dois a quatro anos em geral) e se reproduzindo muito, percorrem nossos quintais, ruas e mesmo as vias elevadas da fiação urbana, buscando alimento que abrange desde frutas diversas a pequenos animais. Sua dieta inclui uma lista de inimigos da saúde humana, de baratas e carrapatos a escorpiões e mesmo cobras peçonhentas. Mais que inofensivos, são animais úteis, e como toda a fauna silvestre brasileira, são (ou deveriam ser) integralmente protegidos pela legislação federal.
Nossa pequena Júlia (o neto deu logo um nome pra ela) aparentemente foi apenas vítima de uma separação familiar precoce, porém natural; infelizmente não é isso o que se vê muitas vezes. A estupidez humana e a ignorância dos brazilêru médios sobre a Natureza faz com que os gambás estejam entre as espécies mais incompreendidas e perseguidas na fauna nacional. São indizíveis as atrocidades que esses animais sinantrópicos (= que vivem junto ao homem) sofrem nas mãos dos – muitos – sádicos que os encontram pelas nossas cidades. Mortos a pauladas, queimados vivos, desfigurados por cachorros atiçados por seus donos, ou atropelados não raro propositadamente, os gambás provavelmente são vítimas da maior quantidade de crimes perpetrados diariamente contra a fauna silvestre no Brasil – e, sabe-se bem, impunemente.
Levando nossa pequena órfã para dentro e tratando de esquentá-la, fomos atrás de entender como poderíamos ajudá-la a sobreviver. Percorrendo os labirintos da internet, felizmente demos de cara com um grupo de Facebook de resgatistas de gambás, onde encontramos instruções detalhadas sobre o socorro e cuidados com esses animais mais frágeis do que pensamos. Receitas para nutrição, acompanhamento de peso e tamanho, e conselhos dos resgatistas mais experientes nos surpreenderam e, para nossa alegria, salvaram a vida da Júlia. Nos descobrimos como parte de uma imensa rede de gente do bem, voluntários espalhados por todo o Brasil, alguns deles com projetos de resgate atendendo centenas de bebês de gambás ao longo do tempo. Das muitas mortes violentas de fêmeas nas áreas urbanas surgem ninhadas inteiras de bebês, que são resgatados por esses voluntários e criados da melhor forma possível. Os centros “oficiais” de resgate de fauna, sempre sobrecarregados de ocorrências, como vive sendo noticiado, não dariam conta de cuidar dos gambás na quantidade que esses cidadãos e cidadãs abnegados fazem, espalhados por todo o país.
Ora pois, ao estudar o tema para bem cuidar de nossa orfãzinha, nos demos conta de que nós resgatistas de gambás do Brasil, pela fria letra da lei – a mesma lei que não alcança os tarados ordinários que os torturam e matam – somos todos, em tese, criminosos ambientais. Sim, porque a normatização federal sobre fauna não reconhece a figura do resgatista voluntário. E embora se entenda a precaução legítima de se deixar o resgate e cuidado da maioria das espécies de fauna silvestre para veterinários em centros especializados, é por demais evidente que a necessidade de se proteger as espécies sinantrópicas abundantes e diuturnamente necessitadas de atendimento transcende o que podem fazer tais profissionais e centros. É mais: afirmo sem medo de errar que os voluntários particulares, com vontade e recursos materiais próprios, estão mais bem equipados para tal. Quem mais senão gente abnegada se levantará à noite de duas em duas horas para alimentar um bebê gambá e estimulá-lo para defecar com uma prolongada massagem abdominal? Quantos centros estatais país afora podem hoje investir nesse tipo de cuidado?
Ademais, muitos dos gambás resgatados não conseguem ser reintroduzidos, já seja pela dependência de uma dieta assistida ou pela familiaridade com o convívio humano direto. Ficam bem cuidados em casas de resgatistas, mas em situação sempre irregular e precária à luz da lei. Nem todos os voluntários conseguem dedicar-se às estratégias de evitar o “imprinting” dos bebês. Mesmo assim, esses animais mantidos em condição de semi-liberdade, e que estariam mortos se não resgatados, são preciosos para a conservação. Poderiam estar sendo utilizados para conscientizar e educar o público sobre esses animais, levados a escolas e mostrados à comunidade para desfazer os mitos e medos, não fosse o receio de serem apreendidos e “reintroduzidos” em situação que muito provavelmente os levará à morte por inadaptação.
Pensando na necessidade de se resolver essa questão legal sem afrontar a – muito necessária – legislação contra o tráfico de fauna é que propusemos, o Instituto Brasileiro de Conservação da Natureza – IBRACON e a Comissão de Proteção e Defesa dos Animais da OAB Nacional, uma Instrução Normativa específica ao IBAMA para reconhecer e regularizar o resgate e os cuidados de gambás por voluntários privados, permitindo o registro dos animais resgatados no SisFauna, dando aos resgatistas segurança jurídica, e à autoridade ambiental controle sobre a atividade e uma ferramenta para monitorar o tema de forma direta, gerando dados regulares sobre distribuição e natureza dos eventos de resgate e da presença de gambás no meio urbano.
São muitos os animais sinantrópicos que caem vítimas da nossa ignorância generalizada. Além dos gambás, os morcegos insetívoros, nectarívoros e frugívoros prestam serviços ecossistêmicos essenciais em nossas cidades e áreas rurais. Pequenos anfíbios e répteis igualmente úteis e importantes, as rãs, sapos, calangos e lagartixas, tentam sobreviver sem serem esmagados ou expulsos. O que dizer, então, das pequenas aranhas inofensivas que habitam nossos jardins ou beirais de janela como as papa-moscas. Tento, em meu livro recentemente reeditado A Natureza no Jardim, alertar para a necessidade de sua proteção e acolhimento em nossas cidades e arredores.
Júlia dorme tranquila em sua caixinha enquanto escrevo esse texto. Tornou-se celebridade local na vizinhança, e em um lugar onde matar a pauladas os sariguês sempre foi lugar-comum, agora nos perguntam pela saúde dela e nos chamam para vê-los quando aparecem à noite, e para contarmos sobre suas vidas. Ela está crescendo e ganhando mais espaços para explorar, mas ficará pronta para uma vida em segurança nas alamedas do entorno? Só saberemos com o tempo. Enquanto isso, ela é mais uma de milhares de bebês gambás salvos da morte certa e que talvez nos ajudem a falar com o público sobre a importância dos animais sinantrópicos, se sua existência bem cuidada puder sair da “clandestinidade” que paira qual sombra sobre todos os que, ao invés de massacrar, salvam esses animais tão especiais.
Ah, e quem concordar pode escrever à Diretoria de Biodiversidade e Florestas do IBAMA, e-mail [email protected], onde tramita o Processo 02001.020733/2021-19, e pedir que seu apoio à proposta de Instrução Normativa (leia ela no link!) seja levado em conta e anexado ao processo. À análise técnica – legítima e necessária – precisa se somar a opinião do público, que, afinal, é o grande beneficiário da existência da fauna silvestre, das normas que a protegem, e dos voluntários que dedicam seu tempo e recursos a contribuir com sua proteção.
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
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É preciso permitir que o cidadão possa tbm proteger estes animais ,sem receber punição ,pois esta protegendo nossa fauna
Belo artigo, bela história. Parabéns, Truda. Estamos juntos, nossa causa é a mesma. É muito bom ver que ainda há gente que se importa de coração com esses outros seres que dividem este planeta conosco.
Adorei este artigo. É realmente muito importante que resgatistas civis sejam reconhecidos. Nos Estados Unidos é até uma profissão regulamentada. Imagino a quantidade de biólogos que poderiam trabalhar nesta área. E por falar em resgate, vejam que legal esta postagem http://www.portal.zoo.bio.br/media350
Muito boa matéria, além de essencial. Cont com meu apoio!