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Surucucu Solteira Procura

Os casamenteiros do Museu Biológico buscam um noivo que possa ser enviado por algum criadouro para ser match da Surucucu do Butantan

10 de dezembro de 2024
  • Silvia Regina Travaglia Cardoso

    Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Mackenzie, mestrado e doutorado em Zoologia pela Universidade de São Paulo.

  • Marcelo Stéfano Bellini Lucas

    Biólogo, especialista em manejo de fauna pela PUC-SP, Mestre em Conservação de Fauna pela Universidade Federal de São Carlos.

  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

Jirau e a hidrelétrica-irmã de Santo Antônio são bem conhecidas pela destruição de áreas de florestas do rio Madeira em, Rondônia, inundadas pelo que deveriam ser obras “de baixo impacto” e por interromperem a migração de peixes para a bacia do Alto Madeira, impactando não só o Brasil, mas também rios (e comunidades) no Peru e Bolívia. 

Nossa história começa quando uma adolescente perdeu sua casa com a inundação. Em 2014, uma fêmea de surucucu (Lachesis muta) foi resgatada em local inundado pelo reservatório da Usina Hidrelétrica de Jirau, na margem direita do Rio Madeira, no Distrito de Nova Mutum Paraná. A bela e muito estressada serpente foi transportada de avião para o Instituto Butantan, em São Paulo, onde chegou em abril de 2014. 

Pode-se imaginar que a experiência de ser abduzida nesta situação não deve ter sido das mais relaxantes. Serpentes capturadas em resgates de fauna comumente passam longos períodos mantidas em caixas, nem sempre individuais, aguardando ações burocráticas e a liberação da documentação para poderem ser encaminhadas para seu novo destino. Afinal, a burocracia sempre fala mais alto que o bem-estar animal, e não é comum que as pessoas se importem com animais que não são pets fofinhos. 

Estas serpentes com frequência chegam debilitadas e desidratadas, e muitas vezes com lesões provocadas no momento da captura, o que pode ser terminal para espécies mais sensíveis. Felizmente, a Surucucu da nossa história superou esta provação. 

Após a chegada no Instituto Butantan, ela foi encaminhada para o Setor Veterinário do Museu Biológico para triagem e período de quarentena. No dia de sua chegada a moça media 1,21 m (comprimento do corpo) + 11 cm (comprimento da cauda), pesando só 409 g. Estava magrinha…. 

Os veterinários fizeram uma avaliação completa, ministraram hidratação, coletaram material biológico para exames bioquímicos e colocaram um microchip embaixo de sua pele, para identificação individual. Ela ganhou seu CPF. Como é comum em animais silvestres, durante a quarentena foram detectados ovos de vermes parasitas nas suas fezes. Como estes podem ser prejudiciais a animais debilitados, o tratamento antiparasitário foi iniciado imediatamente. E, muito importante, a alimentação foi introduzida de forma gradual, sendo monitorada de perto pela equipe do Museu Biológico. 

Após receber alta do Setor Veterinário, a Surucucu foi transferida para o biotério do Museu Biológico, onde foi alojada na mesma sala que outros viperídeos (jararacas e cascavéis), e ficou até maio de 2019, quando foi transferida para a Exposição do Museu Biológico. Na exposição nossa Surucucu ganhou casa nova e hoje vive em um amplo recinto (12 m3), especialmente projetado para abrigar a espécie. O espaço foi elaborado com paisagismo que simula seu hábitat natural, incluindo barrancos, troncos ocos e vegetação nativa. Tocas estão disponíveis para que possa se abrigar e tenha privacidade. 

A temperatura e a umidade são controladas e seguem um ciclo sazonal, para replicar as condições ambientais de seu habitat original. A irrigação é automática e simula as chuvas, com aumento da frequência ou do tempo de acionamento, e a iluminação respeita as variações naturais ao longo do ano. Se ela sente falta das florestas hoje afogadas de Rondônia, não sabemos. 

Após um breve período de adaptação, nossa Surucucu passou a explorar sua casa nova. Atualmente, vivendo ali há mais de 6 anos, ela cresceu satisfatoriamente, medindo 2,15 m de corpo + 19,5 cm de cauda e pesando saudáveis 5,5 quilos. Ela mostra o comportamento típico da espécie, caracterizado como “senta-e-espera”, com baixa atividade locomotora, passando a maior parte dos dias em sua toca, ou abrigada atrás de uma bromélia. Talvez dormindo, talvez meditando. 

No final da tarde, exatamente quando o Museu está se despedindo dos últimos visitantes, e muitas vezes durante a noite, se torna mais ativa e sai da toca para explorar o recinto, inclusive o estrato superior. É bem impressionante vê-la esticando quase todo seu comprimento contra uma das paredes enquanto verifica se alguma saída foi deixada aberta…

Para evitar problemas de obesidade, nossa Surucucu recebe uma dieta controlada. O prato consiste de roedores (o grupo de presas que consome na natureza) criados especialmente para as serpentes do Butantan, e nossa Surucucu faz uma refeição mensal que corresponde a 7% do seu peso corporal. Essa estratégia nutricional é adotada para garantir o bem-estar da serpente, mantendo-a em condições ideais sob cuidados humanos. O acompanhamento contínuo e os cuidados especializados são fundamentais para garantir a saúde e o comportamento adequado da Surucucu em cativeiro. 

A criação de reservas genéticas através da manutenção de espécies em cativeiro (ex situ) é uma das estratégias para enfrentar a perda da biodiversidade e contribuir com a conservação das espécies. Além disso, através de uma cuidadosa manutenção em cativeiro, aliada a recintos grandes, bem estruturados e bem montados, é possível obter importantes informações biológicas e comportamentais, auxiliando no conhecimento de espécies raras ou de difícil observação na natureza. 

Atualmente duas câmeras estão instaladas no recinto da Surucucu, gerando informações para estudos de comportamento e atividade diária da serpente. O conhecimento gerado pode ser trabalhado nas ações de educação não formal e difusão do conhecimento sobre as espécies e populações em diferentes níveis de ameaça. 

Ainda solteira. Tomara que por pouco tempo.

Surucucus são serpentes raras na maior parte de sua área de ocorrência e animais em cativeiro são a única oportunidade para que a vasta maioria da população tem para ver, ao vivo e a cores, uma das serpentes mais belas e impressionantes, e descobrir que este animal é muito diferente do que as lendas de bichos enfurecidos contam. Tendo praticamente duplicado de tamanho e sendo hoje uma jovem senhora, nossa Surucucu agora procura um Surucucu match para começar uma família. 

Reproduzir com sucesso a surucucu em cativeiro é importante sob vários aspectos. Observações do comportamento reprodutivo das surucucus (o que inclui comportamento de corte, de acasalamento e cuidado parental) na natureza são extremamente raros. Além disso, o veneno da surucucu é utilizado na produção do soro antilaquético (específico para picados por Lachesis, as surucucus). Dessa forma, a reprodução em cativeiro traria importantes informações comportamentais da espécie, além de minimizar a dependência de indivíduos retirados da natureza para a obtenção de seu veneno. Tudo isso, consequentemente, contribui com a conservação da espécie. 

Os casamenteiros da equipe do Museu Biológico estão em busca de um macho que possa ser enviado por algum criadouro ou instituição, mas, como ocorre com outros bichos, esse é um processo que depende mais da boa vontade de pessoas do que de normas institucionais. Enquanto isso nossa Surucucu aguarda. 

Para os herpeto geeks curiosos em saber como nossa amiga cresceu ao longo do tempo, segue um gráfico.

Gráfico, Gráfico de linhas

Descrição gerada automaticamente

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