De Ana Maria Pinheiro
Militante em defesa da fauna
Prezada jornalista Silvia Pilz,
Recebi cópia de seu artigo sobre a caça. A caça de subsistência é abrigada pelo nosso Direito em função do estado de necessidade, que exclui o crime. Mesmo assim há o risco de alguém despreparado ter acesso às armas de fogo dessas pessoas que caçam para sua subsistência.
Quanto às outras modalidades de caça, a profissional e a esportiva, os fatos são bem diferentes…
Mas afinal, qual o sentido deste plebiscito sobre venda de armas???
A Lei nr. 10.826, de 22 de dezembro de 2003, Estatuto do Desarmamento, vai ser revogada?
Não.
Isto quer dizer que todas as pessoas autorizadas a possuir ou possuir e portar armas vão continuar as mesmas. A Lei já cumpre o seu papel. Hoje já é difícil comprar uma arma de fogo. Além do mais, é praticamente impossível a uma pessoa comum obter porte de arma. Apenas “compradores novos” é que não terão acesso a armas legais. O plebiscito não tem o menor sentido.
O referendo tem é muita utilidade para desviar a atenção da opinião pública e também para “mostrar serviço” com relação à segurança pública, sobre a qual, aliás, o Governo Federal não tem nenhuma política e para qual não houve nenhum investimento.
Mas, do ponto de vista da proteção animal e também desmascarando mais uma vez o cinismo desse referendo e mostrando que não há nenhuma preocupação séria com o desarmamento, analisem os fatos abaixo.
Por exemplo: O art. 6o., Capítulo III, declara:
“É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos pela legislação própria e para:
….. (grifo meu)
…..
…..
IX – os integrantes das entidades de desporto legalmente constituídas, cujas atividades esportivas demandem o uso de armas de fogo, na forma do regulamento desta Lei, observando-se, no que couber, a legislação ambiental.
(São 10 incisos, fora a legislação própria).
…
Como ficam os praticantes da “caça esportiva”, aquela em que um indivíduo possuído por incontrolável agressividade fuzila uma indefeso animal por esporte? A eles já está garantida a posse de uma arma. Só não ficou claro se como “esportistas” ou como “caçadores”. Tudo indica que seja como esportistas”, já que há menção à observância da “legislação ambiental.”
Por que tanta condescendência em atender aos interesses de um grupo de burguesões urbanóides que se diverte fuzilando animais que estão em paz no seio da natureza, sem saberem que estão participando de uma competição esportiva, na qual, se forem perdedores, pagarão com a própria vida?
A caça esportiva ou recreativa tem esta característica: um dos contendores não sabe que está participando de um esporte, tampouco sabe que vai morrer, tampouco pode defender-se… Como uma vez disse o falecido jornalista Ferreira Neto, se ao menos os animais recebessem umas espingardinhas…
Onde fica a preocupação com o desarmamento?
“Art. 9o. – Compete ao Ministério da Justiça a autorização do porte de arma para os responsáveis pela segurança de cidadãos estrangeiros em visita ou sediados no Brasil e, ao Comando do Exército, nos termos da regulamentação desta Lei, o registro e a concessão de porte de trânsito de arma de fogo para colecionadores, atiradores e caçadores e de representantes estrangeiros em competição internacional oficial de tiro realizada no território nacional “
Se lembrarmos que nos Estados Unidos a maior parte dos fuzilamentos provocados por adolescentes em escolas são efetuados com armas de caça da família, é estranho que a sociedade brasileira diga “Não” para se perder a cabeça e atirar com um revólver, mas aceite que se perca a cabeça e se fuzile alguém com uma arma de caça…
Aí concluo que este plebiscito é inócuo, quando não um mecanismo para desviar a atenção do respeitável público. Quem já pode ter armar, vai continuar podendo, quem já possui porte de arma, vai continuar possuindo. O Estatuto do Desarmamento já supre todas necessidades de controle de armas.
Repetindo : Digamos que o “Não” à venda de armas vença: como ficam as armas de caça? Serão comercializadas do mesmo jeito. Qual é a diferença entre um acidente com uma espingarda ou uma pistola?
Outro aspecto bastante estranho é que a consulta popular seja feita entre as pessoas “normais”, tementes a Deus, mas não se faça a mesma consulta popular nas nossas fronteiras, entre os contrabandistas de armas pesadas, fuzis AK-47, AR-15, Sig Sauer. Mais estranho ainda é que o Governo Federal não se mostre preocupado em ocupar nossas fronteiras, a fim de impedir a entrada dessas armas, que já deram enorme poder de fogo, ipsis litteris, às forças armadas do governo paralelo que se instalaram nas periferias do eixo Rio -São Paulo e que mandam nas nossas vidas. As fronteiras brasileiras parecem queijos suíço, cheias de burados por onde passam drogas, fuzis e boiadas com febre aftosa…
As forças armadas do governo paralelo do narcotráfico promovem guerras e fuzilaria quando bem entendem, fazem blitzes, fecham túneis, formam “bondes” quando querem transportar armamento de um local a outro e impõem um toque de recolher à população de bem. Votarão os traficantes “Sim” ou “Não” ao porte de armas?… Certamente votarão “‘Não” ao porte para os outros… Mas o porte deles ninguém controla…
Por que os órgãos de repressão conhecem todos os nomes de traficantes, os jornalistas publicam seus nomes diariamente e o tráfico continua?
Quantas penitenciárias federais o Governo Federal já construiu? Que verbas repassou para a segurança nos Estados? Quanto foi repassado para a segurança dos pobres cariocas e paulistanos e outros cidadãos indefesos, que vivem atrás de grades, em moradias de segurança máxima? Que política federal de Segurança o Governo Federal adotou? Qual o investimento no combate ao crime incluindo inclusão social e educação? Foi retirado algum percentual do gigantesco superavit primário imposto pelos organismos internacionais para ser investido em alguns desses itens? Houve algum esforço para criarem-se empregos e ocupar pessoas que acabam caindo no crime? Houve algum esforço para facilitar a vida das empresas, com redução da ridícula carga tributária de 40% do PIB? Como pode um empreendedor pagar um salário mais alto a um funcionário, se aquele salário é multiplicado por dois, tantos são os tributos e o altíssimo risco de contingências trabalhistas? Se eles fossem baixos, os salários seriam mais altos. Perde todo o mundo. Um jovem prefere trabalhar para o narcotráfico, ganhando por semana o que recebe de uma empresa por mês e se a empresa lhe pagar mais, quebra. Aí, sem empregos, sem educação, sem perspectivas e sem combate ao crime organizado, como pode haver redução da violência?
Agora vejamos o Decreto , que regulamenta o Estatuto do Desarmamento:
Lá estão os caçadores, belos e fagueiros, com suas armas garantidas…
DECRETO Nº 5.123, DE 1º DE JULHO DE 2004.
Regulamenta a Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – SINARM e define crimes.
Seção II
Dos Atiradores, Caçadores e Colecionadores Subseção I
Da Prática de Tiro Desportivo
Art. 30. As agremiações esportivas e as empresas de instrução de tiro, os colecionadores, atiradores e caçadores serão registrados no Comando do Exército, ao qual caberá estabelecer normas e verificar o cumprimento das condições de segurança dos depósitos das armas de fogo, munições e equipamentos de recarga.
§ 1o As armas pertencentes às entidades mencionadas no caput e seus integrantes terão autorização para porte de trânsito (guia de tráfego) a ser expedida pelo Comando do Exército.
§ 2o A prática de tiro desportivo por menores de dezoito anos deverá ser autorizada judicialmente e deve restringir-se aos locais autorizados pelo Comando do Exército, utilizando arma da agremiação ou do responsável quando por este acompanhado.
§ 3o A prática de tiro desportivo por maiores de dezoito anos e menores de vinte e cinco anos pode ser feita utilizando arma de sua propriedade, registrada com amparo na Lei no 9.437, de 20 de fevereiro de 1997, de agremiação ou arma registrada e cedida por outro desportista.
Outro detalhe: como só pessoas comuns, membros de uma agremiação esportiva, vão poder comprar e transitar com suas armas, vai haver uma corrida para essas agremiações. Agora vem a minha pergunta: a Associação Brasileira de Caça e Conservação certamente vai ser um refúgio para compradores de armas. Logo haverá uma corrida de sócios novos para clubes de caça.
Art. 31. A entrada de arma de fogo e munição no país, como bagagem de atletas, para competições internacionais será autorizada pelo Comando do Exército.
§ 1o O Porte de Trânsito das armas a serem utilizadas por delegações estrangeiras em competição oficial de tiro no país será expedido pelo Comando do Exército.
§ 2o Os responsáveis e os integrantes pelas delegações estrangeiras e brasileiras em competição oficial de tiro no país transportarão suas armas desmuniciadas.
Subseção II
Dos Colecionadores e Caçadores
Art. 32. O Porte de Trânsito das armas de fogo de colecionadores e caçadores será expedido pelo Comando do Exército.
Parágrafo único. Os colecionadores e caçadores transportarão suas armas desmuniciadas.
Como se vê, os caçadores passarão ao largo de qualquer proibição de possuir uma arma. Se nós pensarmos que esses desequilibrados que se divertem fuzilando animais indefesos consideram sua atividade um esporte, insistirão em contar sempre com os benefícios assegurados aos atiradores competitivos e olímpicos. Fica mais hipócrita e absurda ainda a campanha do Governo Federal para desarmar a população. Como sempre, surgem os buracos negros nas leis e os caçadores serão beneficiários dessa incoerência.
Como os caçadores não praticam seu esporte dentro de casa, terão forçosamente que transitar com suas armas. Ora, se um dos argumentos pelo desarmamento é o risco de um possuidor de arma legal perdê-la para um bandido, os caçadores serão presa fácil para ladrões, não só em suas casas mas ainda mais por estarem circulando com suas armas.
Há no Brasil pelo menos três fazendas de caça. São locais em que vivem animais em liberdade, mas que se acostumam à presença humana, visto que são cevados”, recebem sua alimentação sempre num mesmo lugar. Um dia o animal vai comer, despreocupado e “pum”, tomba fuzilado. As pessoas pagam e muito bem por animal morto. Não é “esporte” para pobre. Pafa-se muito bem para cada animal abatido, dependendo da espécie. Esta é a atividade esportiva que se deseja para um país já com valores morais tão corroídos e que vai ser encorajada, sendo um dos poucos meios de se comprar uma arma?
Há também, a caça dita recreativa na mata, na qual um indivíduo passa dias numa floresta, seja no chão, seja no alto de um jirau, seja na água, camuflado, fantasiado de moita , ou de árvore, ou de brejo, aguardando que um animal se aproxime para fuzilá-lo.
Nos Estados Unidos a maior vítima da caça é o veado do rabo branco. Quando um grupo se aproxima, liderado pelo macho mais vigoroso, líder do bando, o caçador na espreita o fuzila sem piedade. Isto significa que o caçador caminha na contramão do predador natural: este abate o indivíduo mais fraco do grupo, o que não consegue se defender ou fugir. O praticante da caça recreativa abate o macho mais vigoroso, o líder, aquele que vai na frente, concorrendo diretamente para o enfraquecimento e desestabilização do grupo. Evidentemente, no caso dos cervídeos, veados, alces, etc. só o macho mais forte interessa ao caçador, porque é o exemplar que possui a galhada mais bonita, que o caçador vai pendurar na parede de sua sala ou no salão da agremiação esportiva”.
E por trás da caça recreativa, como sempre, estão grandes interesses econômicos, de uma indústria que nos Estados Unidos vende até o papel higiênico camuflado, para que o caçador possa fazer sua higiene na mata com tranqüilidade, não correndo o risco de que o branco do papel seja confundido com o rabo do veado do mesmo nome.
Isto sem falar nos frascos de essência de fêmeas no cio, com que o caçador pode lambuzar seu calçado, ou qualquer outro ponto de sua anatomia, ad libitum, para ser seguido pelos machos, que ao invés de encontrar uma companheira, encontram a mira de uma espingarda com mira telescópica e visor noturno.
Além da caça recreativa em fazendas de caça e em reservas públicas, há também a caça dita enlatada. Nesta modalidade, o caçador paga uma soma em dinheiro, e isto significa até alguns milhares de dólares, para ter o privilégio de fuzilar um leão, um tigre, qualquer animal que um jardim zoológico ou um circo queira vender, geralmente pela idade avançada, animal esse que está numa jaula ou num cercado, onde o caçador, por pior pontaria que tenha, conseguirá abatê-lo. Se for muito ruim de tiro, um empregado do rancho poderá abatê-lo, para que o caçador possa tirar a clássica foto para a posteridade, com o pé em cima do bicho, espingarda em riste, com aquele sorriso entre orgulhoso e sádico. Se abater um cervídeo, ganhará um par de chifres e irá embora, todo satisfeito. Nos Estados Unidos esta modalidade é comum e zoológicos famosos lucram com esse negócio sujo de vender animais velhos. O animal é tirado de seu ambiente salvagem, passa a vida inteira sendo observado por um monte de gente e quando fica velho, recebe, como aposentadoria, sua transformação em alvo vivo para um burguesão sádico.
Com tamanha preocupação pelo desarmamento, faz sentido dar privilégios justamente aos praticantes de um suposto esporte que tem como instrumento essencial uma arma e como animus o sadismo?
Não nos esqueçamos: a arma está para a caça assim como a raquete está para o tênis….
Tudo isto nos mostra um cenário bastante incoerente e inquietante.
Ana Maria Pinheiro
Militante pela proteção animal
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