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A palmeira que não morreu

Moradores da Chapada Diamantina insistem que o Paty, uma palmeira que há muito é considerada extinta, ainda tem alguns poucos exemplares sobrevivendo naquela região.

Marcelo Netto ·
18 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

No dia seguinte liguei a moto bem cedo e mirei sua proa para mais ainda o norte de Minas Gerais, para a cidade de Montes Claros. Era porque queria subir a Chapada Diamantina pelo alto sertão da Bahia. Mas era também porque minha mãe nasceu ali. E tinha prometido um dia levá-la para conhecer sua cidade. Fui, mas sozinho.

Valeu a pena. As estradas não ajudam muito embora estejam melhorando, mas viajar com liberdade numa moto é especial. Às vezes sinto falta de um cinto de segurança. Mas o que sinto mais é vontade de abrir as pernas, os braços, e deixá-la voar por conta própria.

Nunca fui um aluno aplicado de geografia e, por isto não me lembrava, mas o cerrado é imenso. Tudo isto que falei até agora é cercado de cerrado. O pessoal do sudeste e do sul não acha muito bonito mas ele é lindo e suas veredas, aquelas de Guimarães Rosa, são deslumbrantes. E viajando no meio do cerrado cheguei a Montes Claros.

Foi uma passagem curta e grossa. Cheguei e pesquisei meus antepassados. Não existe sombra de nada deles. Desconfio que nunca existiu. Acho que minha mãe quando falava que nasceu em Montes Claros, queria dizer que foi registrada em Montes Claros. Nunca soube em meus 56 anos de existência de qualquer parente ou afim, em Montes Claros. Conversei, procurei nomes de ruas, praças, li e reli a lista telefônica. Não encontrei um Amorim, ou qualquer Drumond. Ninguém ouviu falar deles.

Não visitei o cemitério, mas tenho certeza que nenhum de nós foi enterrado por lá. E decretei: minha mãe não nasceu em Montes Claros. Foi registrada e isto é coerente com as peripécias da família mineira. Meu avô e sua mulher ciumenta, por sinal minha avó, viajavam e viajavam, tiveram a menina e a registraram no cartório mais perto. Ponto.

Abri a cortina do hotel ao amanhecer de um domingo, olhei para a maior cidade do norte de Minas, como várias outras crescendo para cima das paredes de uma depressão, um vale, me despedi, conversei com minha mãe em pensamento, disse que cumpri pela metade a promessa e peguei a estrada, agora com proa para o alto sertão da Bahia, para o pé da Chapada Diamantina.

Outra terra

E de uma hora para outra, distraído com o pilotar naquela manhã, começo a perceber que a luz mudou, era diferente, e que não havia mais cerrado e sim um tipo de vegetação que mais parecia uma caatinga. E que alguns cactos apareciam aqui e ali, e que os povoados eram diferentes, que as cidades eram diferentes, que o povo era diferente e que eu estava na Bahia. No alto sertão da Bahia como eles chamam. E que também é lindo do seu jeito de ser.

Fazendas, serras, colinas, baixadas, todas lindas e entrei numa encantadora cidade do interior da Bahia, talvez Caetité, talvez Barra da Estiva, acho que esta, e o povo estava nas ruas, muita gente, e havia uma feira, e alto-falantes com música alta. E tudo era alegria e luz, e a moto, claro, fazia todos eles virarem a cabeça. E de dentro da armadura de motociclista via seus olhos se perguntando: o que este cara está fazendo por aqui?

Atravessei a cidade, atravessei a sua periferia, pois saibam que cidades pequenas do interior também têm periferia, e dei de cara com algo diferente, não sabia bem o quê, mas achava que estava começando a subir. Havia chegado ao pé da Chapada Diamantina?

E continuei em frente, com a natureza tentando se misturar, às vezes voltando às vezes indo, e parei para abastecer e me informar e o rapaz do posto me disse com orgulho enquanto olhava as paredes do chapadão: “aqui começa a Chapada Diamantina”.

E comecei a subir por estradas e cidadezinhas maravilhosas, que me lembraram algumas estradas do interior da Europa, não sei se já foram visitar alguma vila nas montanhas da Galícia, ou subiram os Alpes ou Pirineus, ou aquela serra do interior de Portugal que agora esqueci o nome. Nós temos interior bonito, também.

E aumentei a concentração para não abrir as pernas e braços e voar. Como as crianças e as bicicletas de Spielberg comandadas por E.T. ao fugir da polícia e dos cientistas.

E cheguei a Lençóis, a capital da Chapada Diamantina. Nunca foi? Então vá. Ali tem felicidade para todo tipo de renda. Charme, conforto, boa comida e beleza. Natureza em estado bruto. Não vou falar disto porque tudo sobre eco-turismo e lazer na região já foi escrito e filmado. Até abertura de novela da TV Globo foi. E lá todo dia você tromba com uma equipe de TV. Ou uma produtora de imagens ou filmes.

Paraíso terrestre

Lençóis é mais uma confirmação de que os pioneiros sabiam escolher a terra prometida aos seus liderados. Suas charmosas casas, prédios e ruas são rachadas ao meio por corredeiras.

E conversando, me interessei pelo Vale do Paty. Dizem por aí que o trekking do Vale do Paty é um dos três mais bonitos do mundo, junto com Santiago de Compostela e Machu Picchu. Conheci estes dois, fiz os dois, na verdade. Posso afirmar que de maneira diferente a Chapada é tão ou mais bonito que os dois. E a Chapada é nossa.

Fiz caminhadas belíssimas, visitei grutas onde andei no escuro total por uma hora, e tem maiores por lá. Vi o pôr do sol no morro do Pai Inácio junto com um bando de estrangeiros, onde segurei a Lua e tenho foto para provar. Tomei banhos de cachoeira e rio, que nem na minha feliz infância e adolescência consegui fazer. E conheci gente diferente e de valor.

Vamos começar pelo Alcino. É dono de uma estalagem deliciosa, artista plástico, ceramista, e uma figura. Um dia, conversa vai e conversa vem, num jantar com inúmeras outras pessoas, hóspedes, donos de hotel e pensão, moradores e funcionários, ele sai com esta: “as pessoas comem uma melancia no meu café da manhã e dizem que é o mais gostoso café da manhã do mundo”.

Orlando Bloon, Légolas, o elfo de Senhor dos Anéis que o diga. Quando conto esta história para as mulheres elas não acreditam. Soltam a franga e a galinhagem. Ele é o sonho de consumo sexual de 10 entre 10 mulheres da humanidade. Não sei o que elas vêem nele, mas ele chegou lá humildemente na Chapada e queria porque queria tomar o café da manhã do Alcino. E tomou claro. Nada impede que se tome o café da manhã do Alcino.

Bancos costumam fechar a estalagem só para eles, privilegiados, claro! Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppelin fixou uma de suas residências – além de conhecer a mulher atual, dizem, uma argentina – por lá, em torno do tal café da manhã. The Guardian, influente jornal Londrino, fez matéria especial sobre… Alcino e seu café.

Descobri que café da manhã é uma obsessiva e boa idéia fixa local. Como sempre demoro a entender as coisas. Depois do primeiro dia de caminhada caiu a ficha. Você come que nem um louco aquelas delícias, e depois caminha, e caminha, nada, e mergulha, e volta a caminhar, subir, descer, escalar, e não se sabe quando de novo vai comer, se é que vai haver vontade de comer.

E no fim do dia você descobre depois de um bom banho que a natureza alimenta o espírito, mas é preciso urgente um jantar, de preferência com um bom vinho, coisa fácil de arrumar por lá, muitas vezes com qualidade que deixa para trás grandes cidades brasileiras. E os jantares com esta turma são de arromba.

Promessa para o futuro

Quero lhes apresentar a Belinda – também dona de pousada e outra figura. Agitadora das mulheres locais, tentou eleger 3 vereadoras mas conseguiu só uma na última eleição e reclama por isto. Anda o dia todo atrás de motivo de briga em favor da Chapada. Sua biblioteca alternativa não deixa visitante sem assunto nos momentos de recolhimento, descanso e distração.

Everaldo é secretário de turismo de um dos municípios da Chapada e guia, uma conversa inevitável para quem quer conhecer a região mais profundamente. Qualquer um percebe que o Partido Verde vai elegê-lo brevemente. Faz política o tempo todo, nas caminhadas, ns conversas, parando no meio das trilhas e caatinga para saber do filho de alguém, da família de outro, ajudando guias mais novos, aconselhando. Cara sério.

Erasmo trabalha na secretaria de Turismo de Lençóis e é o guia que quero seguir na caminhada de 4 dias que pretendo fazer até o final do ano no Vale do Paty. Mais maduro, sabe tudo sobre a região e, também é dono de pousada.

Estes caras me apresentaram a questão do Paty que quero levar para vocês. Na contra-mão do jornalismo diário, deixei o lead para o final. O Pati é uma palmeira. Esta palmeira deu o nome ao Vale do Paty. Aliás, de tanto pesquisar na Internet, lá mesmo, nos café.com, descobri que Paty dos Alferes, cidade histórica do Rio de Janeiro também deve metade do seu nome a esta palmeira. A outra metade se deve a dois alferes que dominavam a ferro e fogo a região também lá no antigamente.

A palmeira foi extinta me disseram. Na época do garimpo do diamante o vale foi explorado demais. O palmito e o plantio de café para abastecer o garimpo acabaram com o pati. Nas conversas dos enormes jantares não aceitei esta constatação e nas manhãs antes das caminhadas e das obrigações matinais dos companheiros de aventura ia para a Internet pesquisar.

Mandei e-mails para a secretaria de agricultura de Paty dos Alferes e para o Jardim Botânico do Rio de Janeiro para tentar provar que a palmeirinha não morreu. Alcino, numa manhã de visita a seu atelier me chamou no canto e abriu um livro e mostrou o pati, a foto, claro. É preciso tomar cuidado porque só ali descobrimos que há 3 ou 4 espécies.

Precisamos de especialistas com coragem para a luta de uma vida, urgente! Quando disse isto para Belinda, os olhinhos dela ficaram cheios de lágrima. Disse para o Erasmo, numa conversa: “O Alcino tem uma foto do pati”. O Erasmo olhou para mim ansioso: “Como é ela? Assim?” E fez com os dedos das mãos uma espécie de cocar de índio com as penas para cima. “Como um cocar?”.

O mesmo filme

A foto do pati do Alcino era exatamente assim. Uma palmeira com as palmas espetadas para cima, um cocar de índio. Erasmo se arrepiou: “acho que ainda têm uma ou duas por lá”, disse. “Sei onde estão, uma perto de onde era uma igrejinha”. E saiu resmungando que ia visitar o Alcino para ver a foto.

Já vi este filme da tradição oral uma vez e sempre é emocionante. Quase 30 anos atrás fui com a Funai oficializar a redescoberta dos índios Tupiniquim no litoral do Espírito Santo. Era uma pequena comunidade decadente, mas legítima dos últimos Tupiniquim. E tudo que comprova sua legitimidade era a tradição oral, uma delas a dança de roda que os maltrapilhos Tupiniquim apresentaram.

Um velho índio começou a contar a história do marco de terra fixado com a coroa imperial de Dom Pedro, não sei qual deles, que passou pela região. Seus pais contavam que ouviram de seus pais, aquela coisa. Pura tradição oral. Resolvemos ir lá e pegamos umas canoas para subir o estuário do rio que estava se encontrando com o mar.

Sorte minha ter conseguido lugar na canoa pioneira, onde na ponta liderando a expedição mambembe o velho índio apontava. E apontava para o manguezal. É difícil andar num manguezal e quem já pegou caranguejos sabe muito bem disto. O velho foi ficando excitado porque na medida que se aproximava do lugar do marco imperial ele ficava inseguro sobre a pedra, qual delas no meio de várias.

E ele em determinado momento mergulhou no mangue e nós atrás. E ele foi procurando as pedras, estas pedras que são fáceis de marcar e ficava limpando a areia do tempo que cobria as marcas e num crescente de excitação, achou. E lá estava a marca da coroa imperial. Eu vi. Aquele Dom Pedro deu mesmo as terras para eles, e dizem alguns historiadores que eles nem mereciam. Ajudaram os invasores.

Erasmo com sua tradição oral pode ajudar a repovoar o Vale do Paty. Aquilo é um patrimônio da humanidade. Uma pesquisa rápida de especialista vai determinar se a palmeirinha morreu ou não morreu. Eu acho que não.

Patis no caminho?

Tempo de retornar para casa. Logo cedo como sempre ligo a máquina e aponto a proa para Brasília. Tinha 3 opções de roteiro, todos voltando a atravessar o rio São Francisco, sabendo que ia ver a caatinga virar cerrado na hora que o cruzasse. Mas, agora, sem voltas, sem muita conversa. Tinha 2 dias somente para chegar. 1.300 Kms.

E aí atravesso o coração geográfico da Bahia, a cidade de Seabra. Saudei quem saudava a moto e depois dos quebra-molas tradicionais que me batem na coluna já que a sinalização das estradas está um horror, acelero nuns 10 quilômetros, não mais, e numa baixada linda, à minha direita, vejo um bando de cocar de índio. E quase caio da moto.

Elas estavam lá longe, a uns 50 metros do asfalto, exuberantes. Algumas palmeiras novinhas, que até dá para serem transportadas. Lindas. Tomara que sejam os tais patis.

Como disse, é preciso especialista. É preciso expertise para lidar com o Ibama que certamente vai criar um mundo de caso, mas acho que os patis não morreram. E se alguém tiver coragem, não vão morrer.

Tenho esperança nos olhinhos brilhantes da Belinda. No potencial de alavancagem internacional do café da manhã do Alcino. Vamos convidar Angelina Jolie para o café do Alcino e cooptar ela. Enfim, isto é a tal luta de uma vida. Repovoar o Vale do Paty é mais importante do que ser ministro do Meio Ambiente.

Quem entrar nesta briga e ela for possível e vitoriosa vai virar notícia internacional. Sem falar de ser personagem daqueles especiais, emotivos, sensíveis textos de fechamento do Jornal Nacional.

*Marcelo Netto é jornalista.

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Comentários 1

  1. carica diz:

    sou guia na chapada e nunca achei o pati, mas continuo procurando, o cafe da manha do alcino ganahou por anos segugidos o premio de melhor cafe do brasil, everaldo foi eleito, o pati como deve saber esta cheio ate demais.