A Rua Natingui, onde o administrador Vitor Gurman, de 24 anos, foi morto na noite de sábado (23), é uma ruazinha apertada, com calçadas estreitas, árvores, uma padaria, velhinhos que jogam dominó e… um fluxo cada vez mais intenso de carros. O trecho em que ele foi atingido por um carro blindado em velocidade absurda era especialmente acanhado; mal dá para mão dupla. Há outros mais largos, em que passam ônibus, mas, em linhas gerais, é uma rua de bairro, em que é difícil imaginar carros circulando a mais de 30 km/h com segurança. Ir mais rápido que que isso é uma temeridade que coloca em risco quem dirige e, principalmente, quem transita sem a proteção de uma casca blindada, à pé, de bicicleta ou bengala.
É rotina ver carros voando em velocidades absurdas no local, especialmente de madrugada.
A rua é vizinha da Vila Madalena, bairro de origem boêmia que, aos poucos se transforma, tal qual a Vila Olímpia, em um estranho espaço habitado por manobristas, playboys alcoolizados e carrões gigantes. É rotina ver homens e mulheres saírem dos bares que servem um chopp atrás do outro com a chave do carro na mão. Duvida? Fique uns vinte minutos em qualquer noite da semana na esquina das ruas Mourato e Aspicuelta e fique observando a movimentação. Das mãos de manobristas agitados com o volume de automóveis estacionados, tentando sem sucesso administrar o fluxo do trânsito entre buzinadas e aceleradas, os carros vão parar nas mãos de gente que mal consegue caminhar reto, tanto álcool na cabeça. É rotina. Situação rotineira tão fácil de flagrar quanto encontrar gente vendendo crack na Luz.
Neste sábado à noite, a família de Gurman, amigos e vizinhos fizeram uma caminhada na Vila. De branco, em silêncio, com velas nas mãos, passaram pelos bares e valets.
Responsabilidades
É fácil resumir a morte do Gurman nesta imagem: a da patricinha que encheu a cara e acelerando de maneira inconsequente um carrão de luxo matou um pedestre. Ela tem culpa, foi irresponsável e deve ser punida por isso. Não tem discussão. Quem enche a cara e dirige assume, previamente, o aumento do risco de matar alguém. Mesmo que não tenha nenhuma intenção. Dirigir por si só já é manusear uma arma capaz de tirar vidas – o que explica porque é necessário cuidado e responsabilidade. Combinar velocidade com álcool aumenta de tal maneira as chances de uma tragédia que existe uma discussão jurídica bem fundamentada sobre entender este tipo de homicídio como doloso (em que há dolo, ou seja, intenção) e não culposo (em que não há intenção). Os familiares e amigos de Gurman esperam que seu homicídio seja entendido como doloso.
Entender o atropelamento violentíssimo como fato isolado, porém, e resumir o problema a um bode expiatório é limitar a discussão – e permitir que outras pessoas jovens como Vitor, com a sensibilidade do Vitor e a disposição de caminhar para casa em um sábado à noite, continuem sendo mortas de maneira tão banal. A morte não foi fato isolado. Toda madrugada de sexta-feira e sábado à noite os informes de acidentes de trânsito do Corpo de Bombeiros aumentam de maneira absurda. É surreal a rotina de atropelamentos e colisões com a qual nos acostumamos. As vítimas costumam ser jovens alcoolizados em carros velozes, de luxo ou não.
E a solução para tal problema não se resume a aumento do sistema repressivo/punitivo no trânsito, também necessário, pelo menos por hora, frente à gravidade do que ocorre. A Lei Seca, apesar de desfigurada e fragilizada juridicamente desde o início (quem bebe pode se recusar a fazer o teste no bafômetro), ajudou a conter a explosão constante de sangue nas calçadas e ruas da cidade. Isso é indiscutível. Diminuir a velocidade das vias e instalar equipamentos de vigilância eletrônica para monitorar pilotos de corrida descontrolados em vias residências é necessário. Punir quem comete barbaridades também.
Mas fazer isso sem discutir mecanismos de prevenção e sem perceber a responsabilidade de quem lucra com tal situação absurda é fortalecer a construção de uma sociedade infantilizada e hipócrita, que só funciona na base da bronca e do controle. O que é perigoso, pois broncas e controles são facilmente burlados – vide os radares antirradar e as redes sociais amplamente utilizadas para troca de informações sobre a localização de cada uma das blitz de controle de álcool. Todos condenam o atropelamento como barbárie, até encher a cara e dirigir na próxima festa de casamento ou na cerveja no boteco com os amigos.
Tem culpa quem acelera de maneira homicida em uma rua residencial – tenha ingerido álcool ou não. Tem culpa quem enche a cara e dirige. Assim como têm culpa as indústrias de automóvel, que fabricam veículos cada vez mais rápidos e com cada vez mais capacidade de aceleração; que glamourizam a velocidade, a pressa, a desigualdade no trânsito, com campanhas de marketing agressivas baseadas em técnicas sofisticas de psicologia. Têm culpa as indústrias de cerveja, com a associação covarde de sucesso ao consumo desenfreado de álcool, com peças publicitárias claramente voltadas para gente cada vez mais jovem. Têm culpa aqueles que se aproveitam da dor e do desespero para fazer campanhas de medo, cobrando penas mais duras pura e simplesmente, sem contextualizar o que acontece, sem lembrar que velocidade hoje na sociedade em que vivemos é quase um valor que se passa de pai para filho. Sensacionalismo barato para vender notícias.
A morte do rapaz na Vila Madalena está longe de ser um evento isolado nos sábados à noite de São Paulo.
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