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Aquecimento global e ondas de calor desafiam as áreas urbanas

As metrópoles brasileiras vão necessitar de urgente adaptação, com medidas que possam proporcionar maior conforto térmico para salvaguardar os mais vulneráveis do risco do calor extremo

29 de janeiro de 2024
  • Carlos Bocuhy

    Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

Alguns desafios civilizatórios ficaram mais claros a partir dos anos 2020. No início de janeiro deste ano, o Instituto Europeu Copernicus atestou que a temperatura média global em 2023 superou em + 1,45°C o índice pré-industrial. Outra informação importante é que expectativa de um aquecimento de apenas + 1,5ºC não será possível. Vamos enfrentar um desafio de maiores proporções.

“As atividades humanas estão incendiando nosso planeta; 2023 foi apenas um vislumbre dos desastres que temos pela frente se não agirmos agora”, comentou o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Antonio Guterres, acompanhado pela secretária-geral da OMM, Celeste Saulo: “Precisamos fazer mais, e precisamos fazer rápido. Temos de reduzir drasticamente as emissões de gases com efeito de estufa e acelerar a transição para fontes de energia renováveis. »2023, o ano mais quente já registrado: temperaturas extraordinárias que prenunciam o futuro (lemonde.fr)

A situação é crítica. Não devemos cair na armadilha de subestimar o desafio. Devemos olhar os prognósticos futuros com precaução. Os franceses estão preparando um forte plano de combate e adaptação às mudanças climáticas. O objetivo é desenvolver capacidade para enfrentar o aquecimento global estimado em + 4ºC até 2100.

A escolha do índice de + 4ºC, que irá modelar o modelo francês de adaptação, considera alertas científicos e se baseia na atual insuficiência das ações globais, em contraposição a um crescente uso de combustíveis fósseis protagonizado por petroestados e grandes petroleiras, cuja ambição desmedida revela um quadro difícil de reverter.

Neste cenário faz todo o sentido se preparar para o pior, o que não significa ceder ao que poderia ser evitado, como pensam alguns pouco pragmáticos. É preciso recrudescer com relação às medidas e metas, com respostas mais firmes e necessárias para responder ao desafio climático na real proporção em se este se apresenta.

James Hansen, ex-pesquisador da Nasa, considerado o pai das mudanças climáticas, bradou, de forma incisiva, os primeiros alertas na década de 80. Em artigo recente na revista Oxford Open Climate Change, Hansen e outros cientistas usaram uma combinação de dados paleoclimáticos, informações de núcleos de gelo polares, anéis de árvores, modelos climáticos e dados observacionais, concluindo que a Terra é muito mais sensível do que se pensava às alterações climáticas e que ultrapassará 2ºC antes de 2050.  

O estudo World Weather Attribution revela que o El Niño reduziu as chuvas em 2023, mas a queima de combustíveis fósseis tornou a falta de chuvas 10 vezes mais provável do que em um mundo sem alterações climáticas. “À medida que as emissões globais de efeito estufa continuam a aumentar, o mundo verá secas mais extremas”, disse Ben Clarke, autor do estudo produzido pelo Instituto de Pesquisa Grantham sobre Mudanças Climáticas e Meio Ambiente do Imperial College London.

Subestimamos a velocidade e os efeitos das mudanças climáticas. Lá se vão oito anos quando nos bastidores do Acordo de Paris a apreensão dos especialistas era imensa para manter a meta de 1,5 ºC e não 2ºC. Era preciso manter o patamar mais seguro possível, mas passados apenas oito anos quase atingimos o patamar desejado para o ano 2000. Como se nada estivesse ocorrendo, continua a farra ambiciosa dos combustíveis fósseis, dos interesses imediatistas para os quais não há limites.  

Um dos maiores problemas da acentuada velocidade do aquecimento global é a exposição ao calor de pessoas mais vulneráveis, como idosos e crianças, especialmente dos grupos sem recursos econômicos para custear meios de adaptação.

Estudo recente da UFRJ aponta que morreram mais pessoas devido às ondas de calor do que em outros eventos, como deslizamentos de terra. Segundo dados do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), de 1988 a 2022 ocorreram cerca de 4,1 mil mortes de brasileiros por deslizamentos e inundações em 269 municípios de 16 Estados. Já o calor provocou 48 mil mortes nas duas últimas décadas, em três a quatro vezes mais eventos do que o período 1970-2000.

Para estabelecer indicadores que pudessem aferir a morbidade decorrente das ondas de calor, aplica-se o padrão conhecido como Fator de Excesso de Calor (EHF, em inglês), “metodologia eficaz para prever resultados de exposição da saúde humana ao calor, em climas de latitude média, desde que a exposição local no verão ao excesso de calor seja impulsionada principalmente por temperaturas extremas do ar, com uma menor contribuição da umidade relativa”. 

Segundo declarou à BBC o físico Monteiro dos Santos, da UFRJ, “situações socioeconômica precárias, que atingem as faixas mais pobres, levam a acesso também precário a condições de moradia, sistema de saúde e meios de prevenção.” 

As atuais pesquisas epidemiológicas apontam que as condições físicas de idosos, principalmente mulheres, em função de fisiologia mais frágil, são mais vulneráveis às ondas de calor. As principais razões da morbidade têm sido problemas circulatórios, doenças respiratórias e condições crônicas agravadas pela alta temperatura.

“Em comparação a deslizamentos e enchentes, que apresentam grande impacto visual, o aumento de temperatura pode ser tido como invisível”, afirma Renata Libonati, da UFRJ. As ondas de calor criam um universo de vítimas onde as causas e possíveis soluções têm sido negligenciadas.

Como promover a adaptação climática para enfrentar preventivamente as ondas de calor? Essa é a grande questão que a constatação do estudo da UFRJ traz, especialmente ao revelar o imenso número de pessoas expostas aos episódios de calor extremo nas metrópoles brasileiras, como Manaus, Belém, Fortaleza, Salvador, Recife, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Goiânia, Cuiabá e DF. Essas áreas urbanas pesquisadas concentram 75 milhões de habitantes, mais de 1/3 da população do Brasil.  

As regiões metropolitanas concentram grandes ilhas de calor, fenômeno decorrente da excessiva impermeabilização do solo por concreto e materiais que retêm o calor do sol. Esses espaços, aquecidos durante o dia, acabam por reter calor no período noturno, impedindo o resfriamento.

A exposição prolongada a temperaturas maiores do que os 36% é um dos principais elementos da falência dos organismos humanos. “No verão, isso leva a problemas de saúde, o corpo não esfria e, portanto, não se recupera”, afirma Sandra Garrigou, gerente de projetos de planejamento climático e adaptação do Instituto da Região de Paris, onde as diferenças de temperatura entre áreas centrais muito impermeabilizadas e as periféricas, mais verdes, apresentam diferenças de até 8ºC. 

Em metrópoles como São Paulo ocorre o mesmo, com diferenças na periferia metropolitana, especialmente nas áreas mais florestadas, de até 10ºC.

As metrópoles brasileiras vão necessitar de urgente adaptação, com medidas que possam proporcionar maior conforto térmico para salvaguardar os mais vulneráveis do risco do calor extremo.

Algumas medidas estruturais partem de ideias simples, mas bastante eficientes, pouco utilizadas no Brasil. Em Paris, está sendo ampliado um sistema de refrigeração urbana para edifícios, utilizando água do rio Sena, resfriada em tubulações subterrâneas. Os planos são desenvolver o sistema na zona sul da cidade e estendê-lo a hospitais, creches e lares de idosos, com o objetivo de triplicar a rede para cerca de 250 km até 2042. Paris teve verões extremamente quentes nos últimos anos, com as temperaturas subindo até 43 ºC em julho do ano passado. 

Um dos pontos apontados para a reestruturação climática de Paris é evitar a verticalização da cidade, para que altura e densidade dos edifícios não tirem conforto térmico: quanto mais altos e apertados os edifícios, mais bloqueiam a passagem do vento e refletem os raios solares, criando um “efeito cânion”.

São Paulo. Foto: Nelson Almeida/AFP.

A cidade de São Paulo tem sido um péssimo exemplo neste aspecto, já que a verticalização da cidade vem sendo orientada não por quesitos ambientais, mas por conceito equivocado de uso e ocupação do solo, induzido pela especulação imobiliária. O sistema de transporte paulistano está determinando maior verticalização, permitida a partir da proximidade com o metrô, sem considerar a necessidade de maiores estudos ambientais.

É essencial compreender a metodologia aplicada ao mapeamento que vem sendo realizado pelo Instituto da Região de Paris, em uma escala muito fina para cada “ilha morfológica”: blocos, praças, parques etc.

Diferentes bases de dados e levantamentos geográficos foram cruzados para definir o tipo de uso do solo, a densidade e a altura dos edifícios, e para definir se essas ilhas, de acordo com suas características (grandes conjuntos habitacionais, pavilhões, edifícios terciários, etc.), são suscetíveis de gerar calor.

Para medir os riscos associados às ilhas de calor, as abordagens foram enriquecidas com indicadores sobre a vulnerabilidade da população, como idade (proporção de pessoas com mais de 65 anos ou menos de 5 anos), presença de asilos, acesso a cuidados (clínico geral, emergências hospitalares) ou a parcela de famílias de baixa renda.

As metrópoles brasileiras precisam de iniciativas semelhantes. Será preciso mapear vulnerabilidades e nível de exposição das populações, em busca de medidas de adaptação estruturais.

Se já percebemos que a elevação da temperatura média global não se limitará ao almejado índice de + 1,5ºC do Acordo de Paris, é preciso combater com precaução e clareza os efeitos climáticos que estão se instalando. Dados atuais da OMS apontam que, a cada décimo de grau celsius de acréscimo, o nível de exposição global passará a incluir nada menos do que mais 120 milhões de pessoas.

Temos milhões de razões para agir.

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