Em decisão histórica, a Corte Internacional de Justiça decidiu que a caça “científica” de baleias praticada pelo Japão no Santuário de Baleias do Oceano Austral não tem nada de científica, e ordenou sua imediata paralisação. A decisão da Corte é inapelável e sua obediência é compulsória. O veredito do caso Austrália x Japão saiu às 6 da manhã (hora do Brasil) da segunda-feira, 31 de março de 2014.
Foi a notícia perfeita para começar o blog “Ambiente Austral” em ((o))eco, que explorará os temas ambientais australianos com implicações para o planeta e para nós mesmos.
Para entender como o Japão foi derrotado e quais as implicações disso tudo é preciso dar uma olhada no histórico do assunto e sua relevância para a Austrália, o país que levou o Japão à lona na Corte Internacional enquanto os demais membros da Comissão Internacional da Baleia, inclusive o Brasil, fugiam dessa briga.
Assim como o Brasil, a Austrália também foi um país baleeiro até a segunda metade do século XX, muito embora tenha operado estações baleeiras próprias e não japonesas, como ocorria aqui na Paraíba até 1985. Lá, entretanto, a caça acabou muito antes, em 1978, como resultado de uma mobilização popular que levou o governo a instalar uma comissão de inquérito para avaliar a atividade. Naquele ano, a Frost Inquiry, conduzida por Sir Sydney Frost, recomendou a proibição total da caça à baleia em águas australianas, o que foi efetivado naquele mesmo ano.
Daí em frente, a Austrália não apenas deixou de matar baleias, mas tornou-se a mais importante força governamental pela proibição global da caça a esses animais. Foi fundamental a sua atuação para lograr a moratória da matança comercial de baleias em 1982 (vigente desde 1986), a criação do Santuário de Baleias do Oceano Austral em 1994, ao redor da Antártida, e o fortalecimento dos usos não-letais das baleias como argumento para a sua conservação e contra a caça. Hoje, a Austrália possui uma indústria de turismo de observação de baleias consolidada, trazendo benefícios econômicos às suas comunidades costeiras na ordem de milhões de dólares/ano, e que vai desde a avistagem de baleias francas a partir de mirantes na Great Australian Bight até nadar com as minkes na Grande Barreira de Coral – as mesmas minkes que o Japão, até agora, massacrava impunemente.
Como é que, então, a caça comercial de baleias estando proibida efetivamente desde 1986 e a Antártida estando sob a proteção de um Santuário, foi preciso levar o Japão à Corte Internacional para fazer cessar a matança sistemática de baleias no Hemisfério Sul?
Acontece que a regulamentação internacional da caça à baleia é baseada num tratado escrito, literalmente, em outro planeta. Sim, porque uma convenção redigida e aprovada em 1946, sem qualquer adaptação ou emenda significativa desde então, atende às realidades de uma Terra que não existe mais, tamanha a evolução tanto das sociedades como do conhecimento humano, inclusive dos limites ecológicos de nosso avanço sobre os ambientes e demais espécies vivas. A Convenção Internacional para a Regulamentação da Caça à Baleia deu origem à Comissão Internacional da Baleia até hoje a cargo do “manejo” global dos cetáceos. Essa convenção é um dos textos mais anacrônicos e caquéticos a ainda assombrar o Direito Ambiental Internacional. Deste texto consta o hoje famigerado Artigo VIII, que permite aos países-membros, independentemente de outras decisões da Comissão outorgarem-se licenças para captura científica de baleias. Imagina-se que os negociadores do tratado de 1946 pensavam em alguma pesquisa científica que envolvesse aspectos fisiológicos ou anatômicos das baleias, ou então a obtenção de espécimes para museus, lembrando que àquela época as metodologias de pesquisa não-letal de cetáceos, hoje a norma, ainda não haviam sido desenvolvidas.
Grupos de interesse no Japão
“O Japão na verdade não tem um mercado doméstico que absorva essa quantidade de subprodutos de baleias. (…) A única razão efetiva para a continuidade desse massacre em larga escala é outra: corrupção e subsídios estatais”
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Para burlar tanto a moratória global da caça comercial de baleias como a criação do santuário Antártico, logo após a efetivação da moratória, o Japão iniciou um “programa científico” de caça à baleia, que resultou até hoje em nada menos do que 14.000 baleias mortas pelas frotas pelágicas japonesas, a maioria dentro do Santuário. Seria alguma surpresa constatar que a produção científica dessa matança é inversamente proporcional ao volume de carne de baleia colocado no mercado pelo “Institute of Cetacean Research” criado pela poderosíssima Agência de Pesca japonesa para administrar a caça e a venda de carne e gordura de baleia?
Mesmo tendo se beneficiado desse expediente espúrio, o Japão na verdade não tem um mercado doméstico que absorva essa quantidade de subprodutos de baleias. Os estoques congelados de carne de baleias no Japão chegam a milhares de toneladas, reflexo da falta de demanda no Japão contemporâneo por esse tipo de produto. A única razão efetiva para a continuidade desse massacre em larga escala é outra: corrupção e subsídios estatais, da ordem de dezenas de milhões de dólares, concedidos anualmente em regime de compadrio entre a agência estatal de pesca e o tal instituto de pesquisas fajuto. Até doações para as vítimas do tsunami de 2011 chegaram a ser desviadas para subsidiar a indústria baleeira e manter empregados com gordos salários diversos personagens do esquema.
Para manter essa vigarice minimamente aceita pela Comissão Internacional da Baleia, o Japão também “investiu” milhões na compra explícita de votos de pequenos países pobres para que firmassem o tratado e participassem da Comissão com a exclusiva missão de votar com o Japão e ler em plenário scripts pré-escritos pelos delegados japoneses, esquema comprovado e denunciado pela imprensa internacional em 2010, mas vigente até hoje naquele organismo internacional.
Durante anos, Resoluções sem efeito vinculante foram aprovadas pela Comissão, solenemente ignoradas pelo Japão. Países do hemisfério sul como o Brasil e os demais latinos na Comissão Internacional da Baleia faziam barulho, mas apenas isso – nenhuma atitude mais concreta, por mais absoluto medo de desagradar o poderoso Japão. Nesse meio tempo, o Greenpeace, que fez seu nome na luta direta contra a caça à baleia, mudou de direção e de rumo, abandonando as baleias antárticas à própria sorte, ainda que siga fazendo propaganda usando baleias como fachada. Apenas a Sea Shepherd, fortalecida pelo apoio da opinião pública mundial, continuou a combater os baleeiros japoneses diretamente no Santuário Antártico.
Contra-ataque legal australiano
“Nenhum país que se diz conservacionista na Comissão Internacional da Baleia acompanhou a Austrália em seu litígio contra o Japão em defesa das baleias.”
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Ora, a Austrália não se conformou com essa situação. Com matizes diversos, as forças políticas nacionais sempre tiveram as baleias na sua prioridade de política ambiental. Em 1997, o governo australiano publicou o documento Whales: an Universal Metaphor, no qual consolidava sua política pró-conservação de baleias e apontava rumos para sua atuação política nesse sentido. Além disso, em 2009 o país lançou (e bancou financeiramente) uma parceria internacional de pesquisa não-letal de baleias, a SORP, que vem gerando resultados científicos significativos e provando que não se necessita matar uma só baleia para avançar nos conhecimentos sobre esses animais e seu ambiente.
Ao ver frustradas todas as possibilidades de negociação no âmbito da inerte e vendida Comissão Internacional da Baleia, a Austrália recorreu à Corte Internacional de Justiça em 31 de maio de 2010, contestando a legitimidade da caça “científica” japonesa e pedindo sua suspensão. A decisão da corte emitida neste 31 de março deu razão à Austrália, determinando que a caça “científica” japonesa não tem fundamento científico e ordenando sua paralisação. Além da decisão final da Corte vale uma leitura do voto em separado do Juiz brasileiro, Cançado Trindade, que examina em mais detalhe as questões levantadas pelos australianos e joga luz sobre diversos aspectos da controversa história da Comissão Internacional da Baleia e suas implicações contemporâneas.
Nenhum país que se diz conservacionista na Comissão Internacional da Baleia acompanhou a Austrália em seu litígio contra o Japão em defesa das baleias. Apenas a Nova Zelândia se apresentou como país interveniente na lide. O Brasil, cuja diplomacia para as baleias continua a ser largamente ornamental – ou seja, o tema aparece na mídia, ministros fazem salamaleques, mas compromisso que é bom segue faltando – se fez de morto e recusou-se a acompanhar a demanda jurídica australiana, assim como os demais países latinos que fazem parte da comissão. Veremos a todos estes em breve tentando deitar-se sobre os louros alheios, sem ter encarado o ônus de enfrentar o Japão formalmente.
Em relação ao Brasil, há que se dizer que o atual Comissário do país na Comissão Internacional da Baleia, o Embaixador Marcus Vinícius Pinta Gama, está fazendo das tripas coração para elevar as gestões efetivas que o país deveria estar fazendo para avançar na conservação das baleias no plano internacional. O recente Workshop Internacional sobre a proposta brasileira de um Santuário de Baleias do Atlântico Sul, organizado pelo Instituto Baleia Jubarte na Bahia e que reuniu diversos países para dialogar, inclusive muitos da esfera de influência do Japão, foi um firme passo nessa direção, mas que ainda carece de efetivo engajamento diplomático no mais alto nível. Em Setembro, na Eslovênia, a proposta do santuário, co-patrocinada por Brasil, Uruguai, Argentina e África do Sul, e apoiada fortemente pela Austrália, estará novamente em pauta. Até lá descobriremos se o Brasil finalmente vai seguir o exemplo australiano ou se, outra vez, morreremos na praia, vítimas de nossa espalhafatosa, porém até hoje pouco efetiva, diplomacia para a conservação das baleias.
*José Truda Palazzo Jr. é vice-presidente do Instituto Augusto Carneiro, Membro Vitalício da Fundação Australiana de Conservação – ACF, e consultor privado em meio ambiente. E-mail: [email protected] |
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