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Austrália: retrocessos pontuais e progressos sólidos

O atual primeiro-ministro, Tony Abbott, quer fazer o país andar para trás, mas é só olhar direito para ver o quão estão à frente do Brasil.

José Truda Palazzo, Jr. ·
27 de maio de 2014 · 10 anos atrás

Tony Abbot não é de nada comparado ao aparato legal australiano e a força da sociedade civil. Foto: governo australiano
Tony Abbot não é de nada comparado ao aparato legal australiano e a força da sociedade civil. Foto: governo australiano

Uma das vantagens de se ter uma filha morando na Austrália, e uma infinidade de amigos por lá, é a gente poder se animar com o fato de que existem ganhos de conservação da Natureza acontecendo, para além das fronteiras-peneira de nossa heterodoxa terra natal. Uma das desvantagens, porém, é ter de aturar os comentários de conhecidos que leem notícias pontuais sobre o que acontece por lá e, do alto de seu pedestal xenofóbico, proclamam que “lá também é ruim”. Por trás do pano, há um país com cidadãos mobilizados pelo meio ambiente e enorme número de áreas protegidas que geral bilhões por ano.

Caso em tela recente tem sido proporcionado pelo novo Primeiro-Ministro australiano, Tony Abbott, um dos expoentes da direita por lá e que sabidamente abomina qualquer coisa que se pareça à sustentabilidade. Qualquer semelhança com um certo caudilho barbudo e sua discípula presidenta não será mera coincidência, senão o endosso de minha tese de que os políticos anti-conservação não têm ideologia; antes têm filiações a lobbies que lucram com a devastação.

O Sr. Abbott tem proporcionado amplo material aos que buscam convencer-me de que Austrália e Brasil compartilham defeitos na área ambiental. Com efeito, o Primeiro-Ministro está empenhado em remover um dos maiores avanços no combate às mudanças climáticas já adotado por um país, a Taxa de Emissões de Carbono instituída pelo governo anterior, trabalhista, por acordo com os Verdes australianos que, lá, felizmente, são sérios e muitas vezes o fiel da balança no parlamento. Abbott está fechando a agência estatal de estímulo às energias renováveis e cortando do orçamento as pesquisas sobre mudanças climáticas das agências estatais como a CSIRO (do inglês, Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation), bem como eliminando todo incentivo governamental às energias solar e eólica. Além disso, em discurso para uma agremiação de madeireiros, disse que a Austrália já tem parques nacionais demais e que a verdadeira conservação se faz… com a atividade madeireira.

Podemos estar atualmente com governantes parecidos em sua diatribe e determinações contrárias à conservação (e ao bom senso). Mas estamos há anos-luz de distância entre nossos países quando avaliamos a estrutura de gestão ambiental de que o Estado dispõe, e que a cidadania lá defende com unhas e dentes enquanto a daqui sequer sabe que existe. E talvez em nenhum outro aspecto isso seja mais patente do que nas áreas naturais protegidas.

Números invejáveis

Casuares: no Corredor Garrett, a própria sociedade se mobilizou e comprou terras para proteção. Foto: Mission Beach Cassowaries
Casuares: no Corredor Garrett, a própria sociedade se mobilizou e comprou terras para proteção. Foto: Mission Beach Cassowaries
“Sua capacidade [de Abbott] de destruir é limitada por um extenso arcabouço legal preexistente, e encontra uma vigorosa oposição da cidadania”

A Austrália conta atualmente, com algo em torno de 10.400 (é isso mesmo, dez mil e quatrocentas) áreas naturais protegidas (das quais mais de 500 são Parques Nacionais), administradas por distintos níveis de governo, e mais de 2.600 áreas privadas. São mais de 118 milhões de hectares em áreas terrestres (mais de 25 milhões em Parques Nacionais), e mais 230 milhões de hectares em 145 áreas marinhas protegidas. Se por um lado é fato que diversas dessas áreas, inclusive parques nacionais, são áreas em que múltiplos usos humanos são admitidos, por outro a sua designação impede que as características naturais essenciais desse vasto território sejam alteradas substancialmente, assegurando a efetiva conservação do conjunto da biodiversidade neles protegido. Um governo mais voltado ao pseudo-desenvolvimentismo como o de Abbott pode retardar medidas adicionais de proteção, esticar a corda a favor de mais usos diretos de recursos (como a pesca em determinados setores das reservas marinhas), mas no cômputo geral sua capacidade de destruir é limitada por um extenso arcabouço legal preexistente, e encontra uma vigorosa oposição da cidadania, como está acontecendo, por exemplo, com sua tentativa de desafetar áreas declaradas como Patrimônio Mundial nas florestas austrais da Tasmânia.

Como em tantos outros países, a vigorosa defesa dos parques e reservas na Austrália não vem apenas de ONGs, mas também de empresas e comunidades que ganham milhões com a conservação dessas áreas e suas riquezas biológicas e cênicas. Os parques australianos geram com sua visitação nada menos que cerca de 19 bilhões de dólares anualmente – apenas o Parque da Grande Barreira de Coral gera 6 bilhões de dólares anuais, e sustenta cerca de 63.000 empregos. Essa relação entre proteção da Natureza e geração de emprego e renda é tão forte que os operadores de turismo de Queensland ameaçam ir à justiça contra um projeto de dragagem no entorno do Parque, que o atual governo quer ver realizado.

Dueto que funciona

Mapa do Corredor Garrett. Foto: Divulgação
Mapa do Corredor Garrett. Foto: Divulgação
“Moral da história: na Austrália a estrutura de Estado funciona a favor dos parques e reservas e resiste mesmo a eventuais governos contrários, e a sociedade civil se mobiliza para impedir retrocessos”

Onde o Estado deixa de atuar, a cidadania atua, e fortemente. Há poucos dias, fui convidado para o evento de inauguração do “Corredor Garrett” em Mission Beach, Queensland, que acontecerá em breve. O Corredor é uma área de floresta tropical que interliga áreas contíguas de parques nacionais e reservas onde vivem, inter alia, diversos exemplares dos ameaçadíssimos casuares. Em 2008, o então Ministro de Meio Ambiente australiano, Peter Garrett, negou licença para o projeto imobiliário que destruiria essa última área de ligação natural capaz de permitir o fluxo gênico e o uso de habitat pelas espécies nativas de maneira a aumentar seu horizonte de conservação. Pois bem, a comunidade de Mission Beach não esperou pelo governo: levantaram mais de 260.000 dólares para adquirir a propriedade inteira, que será agora preservada em perpetuidade, mantendo os casuares e a floresta – atrativos essenciais desse resort costeiro australiano – a gerar benefícios econômicos e ambientais para todos.

Moral da história: na Austrália a estrutura de Estado funciona a favor dos parques e reservas e resiste mesmo a eventuais governos contrários, e a sociedade civil se mobiliza para impedir retrocessos e para conservar áreas privadas para além do imenso sistema de parques e reservas públicos.

Em terras tupiniquins, diz a propaganda oficial que contamos com 150 milhões de hectares de áreas naturais protegidas, incluindo nelas as 173 áreas de uso múltiplo e 137 de suposta proteção integral. Seria de se comemorar, não é mesmo? Acontece, entretanto, que a vastíssima maioria das áreas é das fajutas Áreas de Proteção Ambiental – APAs e Áreas de Relevante Interesse Ecológico – ARIEs, que em sua maioria não protegem absolutamente nada da biodiversidade em seu território, dada a confusa superposição de jurisdições, a paupérrima situação dos gestores e o avanço impune de todo tipo de ocupação física dos territórios e usos extrativos sem controle, como a pesca, que por aqui não sofre absolutamente qualquer tipo de fiscalização ou controle digno de nota.

É nisso que reside a grande diferença, talvez, entre Brasil e Austrália no que tange a áreas naturais protegidas: lá, os usos múltiplos permitidos são objeto de rigoroso zoneamento, fiscalização e controle permanente da sociedade, ou seja, não se transgride a lei em áreas protegidas com medo só do fiscal de governo, mas também da reação de qualquer pessoa que testemunhe a transgressão. Aqui, tudo é uma bagunça; APAs englobam zonas urbanas inteiras sem qualquer planejamento, a fiscalização é inexistente, e a maioria das pessoas sequer sabe que existem áreas protegidas, para que servem ou quais são suas normas, quanto mais contribuir para sua adequada gestão.

Isso tudo nos leva a uma conclusão meio desoladora: o problema aqui no Brasil é essencialmente cultural. Não existe uma cultura de que o Estado seja superior aos planos de governo, e este, quando vendido a interesses da devastação ambiental, causa estragos tão grandes à estrutura de gestão ambiental e ao sistema de áreas protegidas que tornam remota a possbilidade se recuperar dos retrocessos. Tampouco existe uma cultura empresarial de reconhecimento dos valores econômicos diretos da Natureza preservada e de aproveitamento desses valores para a geração de emprego e renda. Por fim, não temos uma cultura de envolvimento da sociedade civil em defesa do patrimônio natural, nem coletiva, nem individualmente. O grande, grave dilema é que a mudança desse padrão cultural leva gerações, e simplesmente não temos esse tempo todo para gastar dado o grau de devastação dos nossos ecossistemas e de abandono do nosso sistema nacional de áreas protegidas. O que fazer? A palavra – e a iniciativa – com nossos leitores.

 

*José Truda Palazzo Jr. é vice-presidente do Instituto Augusto Carneiro, Membro Vitalício da Fundação Australiana de Conservação – ACF, e consultor privado em meio ambiente. E-mail: [email protected]

 

 

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  • José Truda Palazzo, Jr.

    José Truda é jardineiro, escritor, consultor em meio ambiente especializado em conservação marinha e tratados internacionais, e indignado.

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