“A trilha é tranquila”, me garante Peterson de Almeida, o guia que comandou uma equipe formada por 11 pessoas para percorrer a trilha que começou na rua Amado Nervo, no Alto da Boa Vista, seguiu pelo Morro da Freira até o Morro do Queimado e de lá descer até a Mesa do Imperador. Nunca, em hipótese alguma, acredite na opinião de alguém que é do ramo sobre a dificuldade de uma trilha. É o mesmo que acreditar na palavra da enfermeira ao dizer que aquela injeção de benzetacil “dói só um pouquinho”.
Durante 5 dias, o Mosaico Carioca de Áreas Protegidas, que reúne as Unidades de Conservação localizadas no município do Rio de Janeiro, a ONG Conservação Internacional (CI-Brasil) e o Instituto Moleque Mateiro de Educação Ambiental promoveram uma caminhada por parte da trilha da Transcarioca.
Entre quarta (25/2) e domingo (01/3) a empreitada levou grupos de jornalistas, montanhistas e gestores de unidades de conservação a percorrerem trechos que foram do circuito histórico do Parque Nacional da Tijuca ao Morro da Urca. O Eco esteve presente em duas caminhadas: entre o Parque Nacional da Tijuca e a Vista Chinesa, na quinta, e a outra, no sábado, onde percorreu a trilha do Parque Municipal da Catacumba, na Lagoa, e de Botafogo ao morro da Babilônia, no Leme.
Ao todo, foram oito horas e meia de trilha. Percorremos paisagens de tirar o fôlego (literalmente) pouco conhecidas dos cariocas e reunimos, em fotos, histórias de um Rio visto pelo filtro da sua beleza natural.
Da Freira ao Queimado
Era manhã de quinta-feira e parecia que seria um dia de pouco sol quando saí de casa, às 6h da manhã. Para quem costuma ir dormir às 3h, esse é o tipo do horário propício a se cometer todo tipo de equívoco. O primeiro foi achar uma boa ideia ir de calça jeans numa caminhada de 4h. Outra foi levar ao pé da letra a recomendação de carregar 6 litros d’água na viagem: um exagero que tornou a mochila um fardo.
O encontro aconteceu na praça Afonso Viseu, no Alto da Boa Vista e seguiu a pontualidade brasileira. Estava marcado para 8h30, mas a caravana só saiu para a trilha uma hora depois. Confesso que ajudei a atrasar a trupe, mas ponho a culpa no motorista do ônibus 345, um lento falastrão.
O grupo foi dividido em duas partes. A nossa equipe foi comandada pelo guia Peterson de Almeida, que trabalha no Parque Nacional da Tijuca, e contou com a presença de 11 pessoas: dois guardas municipais; a assessora de imprensa do ICMBio, Julia Barroso; Maurício Bianco, assessor da ONG Conservação Internacional (CI-Brasil); Lívio Bruno Peixoto, Secretário Executivo do Mosaico Carioca; Maurício Joel Adriano, um geógrafo que foi selecionado via Facebook para participar da caminhada; e dois jornalistas de O Globo, além de dois gestores de unidades de conservação.
Fomos de carona no veículo do Inea da Praça Afonso Viseu à rua Amado Nervo, um trecho curto de cerca de 300 metros. De lá, entramos na trilha.
Os primeiros 30 minutos são tranquilos e a pista está bem sinalizada. O que pesou foi a massa de ar quente pairando na floresta e, literalmente, a mochila com 6 litros d’água. Nos primeiros minutos de subida do Morro da Freira, eu já estava nas últimas.
O guarda municipal Gerson se ofereceu para a levar a mochila. Disse que após 7 anos no Exército carregar coisas não fazia muita diferença, estava acostumado. Ele não apenas a carregou durante quase todo o trecho como me auxiliou em subidas e descidas mais íngremes. Foi o (meu) herói do dia.
O cume do Morro da Freira permite ver de cima grande parte do Parque Nacional da Tijuca. Emoldurada pela vegetação, a paisagem fica ainda mais bonita. A subida não é fácil, mas também não é impossível. A dica é que, se eu completei o ciclo, a sua avó também consegue :).
Na chegada ao Morro do Queimado, mais subida. As pegadas da Transcarioca aparecem no trecho inteiro. O ponto alto do trajeto é o abismo da Pedra da Proa, onde os visitantes costumam parar e tirar fotos. Esse foi o momento que consegui recuperar o fôlego detonando 2 garrafinhas d’água enquanto o pessoal aproveitava pra tirar selfies.
O Morro do Queimado tem esse nome em alusão às queimadas frequentes que eram feitas no local para limpar o terreno para a cultura de café e cana. Hoje está devidamente reflorestado e não faz mais jus ao nome do passado.
De lá, descemos de olho nas rochas soltas que deixavam a trilha escorregadia até a Mesa do Imperador e, com mais uns 20 minutos de caminhada, terminei a minha participação na Vista Chinesa, onde um carro do INEA esperava.
O grupo continuou pela trilha da Cachoeira do Solar da Imperatriz até o Horto. Eu tinha um compromisso inadiável com a burocracia estatal, mas se não tivesse, arrumaria uma desculpa. Três horas e meia de subidas e descidas já tinham sido suficientes.
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Catacumba
No sábado, acompanhada da fotógrafa Nanda Melonio e, não satisfeita por ainda estar com as pernas doloridas, encarei a subida de duas trilhas: a do Parque Municipal da Catacumba, na Lagoa, e o Morro da Babilônia, no Leme.
Dessa vez, a equipe era bem numerosa. Grande parte do meu grupo de 5a feira estava lá. Pelo tamanho, o grupo se dividiu em 3. Ficamos na terceira divisão, a dos mais lerdos.
Na turma da trilha da Catacumba estavam membros do Centro Excursionista Brasileiro (C.E.B), uma documentarista acompanhada de dois fotógrafos e representantes das associações de moradores próximas dessas áreas protegidas.
O Parque Municipal da Catacumba já começa com subida de escadaria bem feita e sinalizada, mas nada convidativa para sedentários. A recompensa é a vista da Lagoa Rodrigo de Freitas, uma boa pedida para assistir, de longe, as provas de remo das Olimpíadas de 2016. Eu fiz o contrário da trilha do Freira x Vista Chinesa: trouxe pouca água, com medo de não ter ninguém para me ajudar a subir.
A mochila ficou mais leve, mas em compensação fiquei sem água quando cheguei no topo da Catacumba. Ainda bem que em passeios coletivos a gente pode contar com a solidariedade alheia, principalmente a masculina. De sede não morri.
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Só nessa trilha gastamos três horas. A equipe era maior e as paradas também foram mais longas do que as do outro dia. Um grupo menor teria sido mais ligeiro.
A trilha aproveita construções da favela removida nos anos 1970, durante a gestão Negrão de Lima. O governo da época achou que era uma boa ideia desestimular a ocupação da encosta mandando 10 mil moradores para conjuntos habitacionais na Zona Norte e Oeste da cidade. Os habitantes do Catacumba foram transferidos compulsoriamente para conjuntos como o Guaporé-Quitungo, na Penha, na Vila Kennedy, em Bangu, e na Cidade de Deus, em Jacarepaguá.
Das construções ficaram escadarias e caminhos traçados por eles, onde agora passa a trilha Transcarioca. Alguns trechos são difíceis. Um é uma descida bem íngreme. O outro é uma subida de terra fofa, com poucos pontos para se agarrar. Os mais hábeis subiram e ajudaram o resto com uma corda. Quase todos saíram bem sujinhos da experiência.
O nível de dificuldade da trilha varia ao longo do percurso. Vai de leve a pesado. A trilha da Catacumba fica próxima a prédios e desemboca na entrada do Morro do Cantagalo. Enquanto parte do grupo reclamava entre si de dor nas pernas, uma moradora do local, com sacola de mercado na mão subia tranquilamente a escadaria e um trecho de barro.
Pergunto como ela faz para passar pelo caminho em dia de chuva. Ela diz que dá a volta, porque por ali fica inviável.
Um filhote de gato nos recepcionou na descida do morro, chorando por comida. Após três horas de caminhada, eu também queria chorar de fome.
Babilônia
Em comparação à Catacumba, a trilha do Morro da Babilônia, na divisa entre Botafogo e Leme, é mamão com açúcar. Leve, fácil de subir até com crianças (três delas nos acompanharam até o mirante do Telégrafo, no topo da trilha) e idosos. Só o calor do sol de verão causou desconforto.
O começo da trilha foi feito pela Vila Militar, e só foi possível graças à autorização do Exército. De lá de baixo, na Vila, seguimos por uma estrada asfaltada que acaba um pouco antes do primeiro mirante. De cima, vista para a praia do Leme.
A trilha de terra segue por caminhos históricos. Duas guaritas para armazenar explosivos estão preservadas na pista, guardando a história da construção do metrô do Rio na Zona Sul da cidade. A munição foi usada para abrir um túnel que liga as estações Arcoverde e Botafogo.
A história do Morro da Babilônia e dos vizinhos Urubu e São João é de reflorestamento recente. Há quase 30 anos o local está sendo reflorestado, embora a iniciativa só tenha tomado forma mesmo em 2001, com o patrocínio do Shopping Rio Sul.
Então, de vegetação, o que se vê na Babilônia são poucas árvores frondosas e muitas árvores com troncos pequenos e vegetação recente. Isso não tira a beleza da paisagem, um achado numa das regiões mais urbanizadas da cidade. Ao contrário, torna o trabalho feito pela Cooperativa de Reflorestadores da Babilônia um exemplo a ser seguido. Foi pela mão desses homens que o morro voltou a ser verde.
Numa cidade mutável por natureza, nada mais carioca que participar de um evento de celebração dos 450 anos do Rio de Janeiro percorrendo um morro ainda em processo de reflorestamento. Afinal, se até a maior jóia ambiental local, o Parque Nacional da Tijuca, foi quase totalmente destruído e depois reflorestado, ainda no século 19, por que outros locais e outros morros não podem ser recuperados com o mesmo sucesso?
*É jornalista e sedentária.
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