Engana-se quem pensa que estimular a visitação a um parque é contribuir para a sua degradação. Acreditamos fortemente no princípio de que quanto mais pessoas conhecerem nossos parques estaduais, respeitando- se as normas ambientais vigentes, mais ganharemos defensores de sua fauna, flora, ecossistemas e paisagens notáveis. Além disso, a prática tem mostrado que extensas áreas naturais fechadas à visitação facilitam a entrada clandestina dos verdadeiros destruidores do meio ambiente – caçadores, palmiteiros, desmatadores – cuja atuação é naturalmente inibida nos locais onde há um trânsito regular de visitantes, pelo receio de serem flagrados e denunciados. André Ilha (do livro Trilhas – Parque Estadual do Desengano, pag. 336) |
É notável como o Mito da Caverna de Platão ilustra de forma muito clara o nosso eterno medo do desconhecido. As sombras projetadas na parede da caverna, que são apenas uma ínfima parcela da realidade, tratam de nos enclausurar em uma alienação profunda. E há quem diga que ignorância alimenta ignorância. Mas, ao mesmo tempo, como ninguém nasce sabendo das coisas, é preciso viver para aprender, dar tempo ao tempo.
Para quem nasceu e foi batizado no Marumbi dos anos 90, o ar que se respirava trazia um pouco de uma história gloriosa misturada a uma ética de montanha, uma paisagem majestosamente bela e desafiadora, regida por normas de acesso pouco flexíveis. Quem quisesse se deslumbrar com as montanhas deveria antes pedir a benção de uma administração totalitária e nada compreensível. A ameaça velada pairava no ar como neblina. Quem pisasse fora da trilha, quem ousasse desafiar as regras teria de lidar com as consequências. O crime ambiental estava tão próximo, que às vezes, por ocasião de um escorregão, poder-se-ia cair com o lado esquerdo do peito sobre o chão de uma zona intangível.
Com o passar dos anos a neblina virou nuvem, e ela cada vez mais espessa engoliu a montanha, impediu a visão. Não só isso, escondeu tudo, da beleza natural ao passado glorioso. O legado deixado à geração dos anos noventa se resumiu a sombras projetadas nas paredes sujas do antigo prédio da estação ferroviária. A realidade que aprendemos afirmava com toda a convicção que nós, novos montanhistas, não éramos bem vindos ali. Então, muitos se afastaram levando consigo a ideia de que a natureza primitiva não suporta o contato humano, que bons parques são aqueles ocultos sobre a densa nuvem ideológica da conservação pela conservação. Então, o parque esvaziado entrou em decadência profunda.
Mas, esse não era o fim, afinal de contas. Da opressão nasce a revolução. Não sabemos quem foi o primeiro a sair da caverna, o que se sabe é que a Serra do Mar além das fronteiras do Marumbi reservava desafios inéditos à geração que ainda não tinha perdido a virgindade montanheira. O que ninguém fez ainda? Essa foi a pergunta que os impulsionou para a descoberta de roteiros inéditos.
Entre os anos de 1995 e 2015 a nova geração buscou incessantemente paisagens e trilhas cada vez mais desafiadoras, de tal forma que hoje não existe mais um pedaço da Serra paranaense que seja desconhecido. Uma geração que eu acredito ser capaz de enfrentar qualquer montanha tropical no mundo. No fim, a administração totalitária que buscava se auto glorificar acabou forjando uma nova geração mais forte, rica em suas próprias ambições e conquistas.
O Engano
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Desiludido com os rumos da conservação da natureza no Brasil, eu pensei que nunca encontraria um parque que me respeitasse como bom visitante – creio que é nessa classe que me enquadro. Um parque que aceite que o lugar de um montanhista é nas montanhas, assim como o lugar de um carrapato é na barriga de uma anta. Eliminar um ou outro é tarefa impossível, aprender a conviver com eles é a única alternativa viável. Enfim, um parque que saiba proteger tudo o que possui de natural, águas, rochas, solo, fauna, flora, montanhas, montanhistas…
Por anos a fio eu procurei um parque que me valorizasse, até que no ano de 2014 encontrei na internet o Guia de Trilhas do Parque Estadual do Desengano. Para minha surpresa, essa publicação afirma claramente apoiar a boa visitação, além disso, traz informações completas sobre as trilhas. Na prática, disponibilizar essas informações é confiar no visitante, algo com o qual eu não fui acostumado, muito pelo contrário, na minha terra montanhista é tratado como uma ameaça em potencial.
Pois bem, em março eu sairia de férias e um conjunto de montanhas nesse país teria o privilégio de receber a minha visita. Não é preciso dizer para onde eu fui.
Na trilha, livre
O Parque Estadual do Desengano está situado no nordeste do Estado fluminense, protegendo cerca de 30 picos (ou montanhas) que representam o final (ou começo) da Serra do Mar brasileira, ou segundo o paranaense Vitamina, a verdadeira “Cordilheira do Mar”, já que é um acidente orográfico que se estende do norte do Rio de Janeiro ao norte de Santa Catarina. Seu ponto culminante é o Pico do Desengano, montanha com 1.761 metros de altitude.
Minha primeira parada foi na sede do parque, na cidadezinha de Santa Maria Madalena. Lá fui recebido por dois funcionários, que um tanto surpresos com minha chegada numa manhã de sexta-feira, mas, principalmente, com minhas ambições montanheiras, trataram de me recomendar a contratação de um guia, insistindo que eu deveria escolher primeiro as trilhas de cachoeiras, mais fáceis, é lógico! Pediram para eu deixar a subida do Pico do Desengano para o dia seguinte, mas a promessa da chegada de uma frente fria me fez querer iniciar o quanto antes, com ou sem guia. Depois de rodar a cidade em busca de um companheiro de caminhada, me vi sozinho nessa empreitada. Então os guardas-parque gentilmente me levaram até a estradinha de terra que dá início a subida. Antes de me desejarem boa sorte, me pediram para avisá-los sobre qualquer sinal de atividade ilícita que encontrasse pelo caminho.
Dali em diante, enfrentei o sol do Rio de Janeiro por cerca de duas horas e meia até início da trilha propriamente dita. A caminhada prosseguiu na sombra de um belo remanescente de Floresta Atlântica repleto de palmeiras Jussara e pequenos riachos. Então, a trilha aumenta de inclinação e ganha uma crista onde há um local próprio para acampar. Todos esses detalhes estavam precisamente descritos no guia de trilhas, assim como os obstáculos que estavam por vir. Com a barraca montada, juntei na mochila um anorak, água e câmera fotográfica, então parti para o cume por volta das 16h20min. É nesse ponto que a trilha muda de ambiente e passa a subir vertiginosamente sobre uma encosta de rocha nua rodeada por grandes bromélias. A vista passa a ser ampla, com todas as outras montanhas nas costas de quem sobe. O caminho passa da rocha para o campo, faz uma virada à direita através de um campo inclinado, seguindo a esquerda, passando junto ao precipício, a direita de quem sobe. Depois, mais uma rampa inclinada e longa, onde não se pode escorregar, caso isso aconteça o infortunado irá passar o dia inteiro caindo!
Ao longo da rampa surgem pequenas ilhas de vegetação herbácea, com flores raras e belas. Olhando à direita e abaixo é possível avistar o topo da Pedra Verde, outro pico imponente. À medida que me aproximava do cume o tempo só piorava. As nuvens se aglutinavam e pouco acima já impediam minha visão do horizonte. Enfim, após cruzar mais um campo e já no meio da nuvem cheguei a um pequeno totem de pedras que marca o ponto culminante do Pico do Desengano. Dentro do totem encontrei um caderno de cume, onde descrevi minha felicidade por ter chegado a um lugar que tanto despertou minha curiosidade, bem como minha frustração por estar envolto em nuvem de chuva sem ter a chance de descobrir uma paisagem totalmente nova para mim. Por fim, com a escuridão da noite se aproximando, tratei de descer a encosta com o resquício de claridade daquela sexta-feira.
Eu havia chegado ao cume por volta das 17 horas, resultado de seis a sete horas de subida para vencer um desnível de 1.300 metros. A trilha propriamente dita correspondeu a 700 metros de desnível, enquanto que a estradinha representou 600 metros. Para mim, o mais cansativo foi vencer a estrada devido à exposição ao sol. Quando entrei na trilha tive que adotar um ritmo de caminhada que me fizesse “descansar caminhando”. Uma etapa de sol, calor e secura de um ambiente aberto em sua maior parte, e outra, sob a sombra, frescor e umidade do ar serrano.
Um itinerário que certamente não agradaria muitos gestores de parques: um forasteiro que não conhecia o lugar, andando sozinho, querendo acampar dentro da Unidade de Conservação, se dizendo montanhista experiente, ousando alcançar o cume sob o resquício da luz do dia e, portando um mapa da trilha. Para muitos, um cenário de pesadelo! Enquanto que, para outros, apenas mais um mamífero em seu habitat ideal. De errado mesmo, apenas a vista encoberta pela densa nuvem de chuva.
Reflexão
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Todo mundo experimenta uma sensação de liberdade quando sobe a primeira montanha e vê sua terra até onde a visão puder alcançar. O que se aprendeu nos mapas e na escola adquire uma nova escala, a escala da realidade. Uma sensação que invade a consciência e o corpo, como quando se sai de dentro da caverna. Isso leva a pensar que montanha é sinônimo de liberdade, fazer como quiser a hora que quiser. Um engano! Nem a montanha e nem os parques permitem que seja assim.
Para mim, aceitar a primeira opinião sempre foi algo incômodo. De todo modo, aceitei por certo tempo que o montanhismo no Brasil seria exterminado de dentro para fora. A história, as vias e trilhas conquistadas, a ética que foi sendo moldada por mais de um século e tudo mais seriam jogados no lixo em nome da conservação pela conservação. Pensava que apenas as regras definiriam quando, como e onde eu deveria ir. Só faltava a tornozeleira eletrônica. O que mais eu poderia esperar de um discurso que considera os montanhistas como uma ameaça para as montanhas? Pensei – dentro de parques elas estavam perdidas para sempre! Então, o desengano.
Com a consciência do problema crescente de acesso e conservação das montanhas, começou a surgir nesse meio pessoas que apostam na conservação através do uso. Parques com aliados são mais fortes. Por que não atrair quem mais se identifica com o lugar? No II Congresso Brasileiro de Montanhismo e Escalada foram discutidos e publicados os Princípios e Valores do Montanhismo Brasileiro. Nada mais do que colocar no papel a ética e aspirações desse seleto grupo de visitantes de parques. Restava saber se os parques absorveriam essas ideias.
Para minha surpresa, antes do congresso em 2011, o Parque Estadual do Desengano publicava seu guia de trilhas. Tornava livre para o público as informações sobre sua riqueza natural, talvez, julgando que se tratasse com respeito seus possíveis visitantes teria respeito recíproco. Só o tempo dirá se isso vai funcionar, e com quem vai funcionar. O fato é que, me senti absolutamente livre para caminhar como há muito tempo não experimentava, tranquilo para enfrentar apenas os obstáculos naturais ao longo do caminho. Mais do que a vista panorâmica que não tive do cume, a oportunidade de caminhar sem limitações estúpidas havia sido o ponto alto dessa aventura até então.
Estratégia
Muitos parques ditam horários rígidos para início e término da caminhada, como se subir montanha fosse como uma sessão de cinema, ou então proíbem o pernoite, obrigando por vezes o visitante a apressar o passo no período mais quente do dia. Nada disso ajuda quando se precisa montar uma estratégia em virtude das condições de tempo. Foi precisamente o que eu fiz. E por isso, quando acordei no dia seguinte sob um céu azul já estava a apenas uma hora do cume. Foi só o tempo de coar o café e trocar de roupa, retornei ao cume e fui recompensado com a mais bela vista do nordeste do Rio de Janeiro.
Enfim, mudei a minha estratégia. Se o berço do montanhismo não faz questão de me ter por perto, então vou atrás de quem faz – e isso significa que nas minhas próximas férias voltarei a rodar mais de mil quilômetros, mesmo morando a apenas oito quilômetros do Marumbi.
Saiba Mais
Brasil, Instituto Terra. Trilhas – Parque Estadual do Desengano – Rio de Janeiro (RJ): Instituto Terra Brasil, 2011. 336p.
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