A divulgação da nova lista de aves brasileiras, feita na semana passada pelo Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos (CBRO), reacendeu o debate sobre a ausência de mulheres no comitê. A nova lista tem 20 autores, todos homens. Para iniciar a transição do comitê, duas ornitólogas farão parte da composição do CBRO, que está em reestruturação.
A nova lista registrou a ocorrência de 1.971 espécies no país, das quais 293 são endêmicas, ou seja, só ocorrem em território brasileiro. O levantamento reforça a posição do Brasil como terceiro país com maior endemismo de espécies.
Uma questão de gênero
Não é apenas na composição da CBRO que a disparidade da composição de gênero salta aos olhos. A disparidade também está evidenciada nas referências bibliográficas que subsidiaram a formulação da lista. “Se você olhar para os 80 primeiros trabalhos científicos referenciados na lista de espécies, apenas 10 deles (aproximadamente 10%) têm uma mulher como primeira autora. (…) duas mulheres em um comitê de 20 pessoas, são os mesmos 10% de representação que mencionei anteriormente. Não reflete a participação e contribuição atual das ornitólogas”, explica a ornitóloga e doutoranda pela Universidade de Brasília (UnB) Lia Kajiki, em entrevista ao ((o))eco por e-mail.
A ornitóloga Clarissa Santos, também por e-mail, ressaltou que o machismo existente na sociedade dificulta a atuação profissional das mulheres. “Portanto, na ciência, e por sua vez na ornitologia, não seria diferente, a falta de paridade no CBRO e em outros espaços é apenas uma evidência dessa situação”, diz a pesquisadora, que é bióloga e mestre pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Clarissa citou artigo científico, podcast e perfis em redes sociais que evidenciam “o crescente debate sobre as relações de gênero na ciência”, tais como o artigo “Why we shouldn’t blame women for gender disparity in academia: perspectives of women in zoology” e “iniciativas como o grupo Passariminas (@passariminas), a rede OrnitoMulheres (@ornitomulheres) e o episódio sobre mulheres na observação de aves do podcast BateBico”.
Ao tratar da reestruturação do CBRO, na live de lançamento da lista, o primeiro assunto abordado pelo coordenador do comitê, Vítor Piacentini, foi o da ausência de mulheres em sua composição. “Desde 2018, vem sendo discutido o inegável viés de gênero que tem o CBRO. São 20 autores da lista, e calhou, por várias questões, que as mulheres tinham saído, não entraram novas mulheres, e esse ciclo de trabalho teve só homens. Quase que os mesmos autores do ciclo anterior”.
Piacentini argumentou que, em 2018, o comitê estava no meio de um ciclo avaliativo e que a diretriz é manter um mesmo grupo trabalhando ao longo de todo um ciclo, para manter uma coerência na sua atuação e uma coesão em suas decisões. “Em 2019 ou 2020, começamos a tentar rever isso, depois que várias pessoas chamaram a atenção para essa falha. Conversamos com a Gláucia [Del Rio] e atualmente com a Ana Catalano”.
Lia Kajiki ponderou que não deve ser fácil encontrar colaboradores para um trabalho árduo, que demanda tempo e é voluntário. “Porém, me parece surreal que não tenham conseguido encontrar UMA ornitóloga que aceitasse participar da empreitada nesse último ciclo”, argumentou. “Iniciativas como o ‘Ornito Mulheres’, ‘Passariminas’ e ‘Aves Pretas’ são extremamente importantes para que nossas vozes tenham espaço e potência”.
Piacentini informou que o coletivo de Mulheres apresentará um trabalho sobre vieses de gênero na ornitologia brasileira no XXVII Congresso Brasileiro de Ornitologia, que será realizado online de 1 a 5 de agosto. “Estamos tendo o apoio do coletivo de Mulheres da Ornitologia, a quem agradeço, Clarissa Oliveira, Daniela França, Keila, Daniela Maia. São muitas, é um grupo organizado, exemplar, são mais de 100 mulheres, é um grupo que rivaliza em números com a própria Sociedade Brasileira de Ornitologia (SBO), se pensarmos nos sócios ativos da sociedade. O coletivo Aves Pretas está ajudando, a Clarissa o representa também”.
Clarissa Santos esclareceu que o coletivo OrnitoMulheres – Rede de Mulheres na Ornitologia e Observação de Aves – é uma iniciativa da professora Shirliane Araújo. “O coletivo tem como objetivo produzir uma revisão geral sobre a representatividade feminina na ornitologia brasileira e na comunidade nacional de observadores de aves”. Ela informou que apresentará, no Congresso Brasileiro de Ornitologia, “um levantamento prévio sobre a presença de mulheres na ornitologia e na observação de aves”.
Sobre o coletivo Aves Pretas, Clarissa contou que formou o grupo para a organização do evento homônimo, em 2020. “Idealizado em parceria com a Bianca Ribeiro, do Bem-te-ouvi, e apoio do Avistar. Inspirado na BlackBirderWeek, dos EUA, foi o primeiro evento que discutiu a questão de raça na ornitologia no Brasil”.
O coordenador do comitê, Vítor Piacentini, ponderou que não se chegará, em curto prazo, à composição ideal, com representação paritária de mulheres e homens no comitê. “O plano que temos encaminhado, que vamos tentar formalizar no congresso, é criar uma composição de transição do CBRO. A Gláucia [Del Rio] já aceitou, a Ana Catalano já aceitou, teve outras mulheres que não aceitaram, porque estão com outras prioridades, por divergências de ideias”, explica.
Clarissa Santos afirmou que “a Glaucia Del Rio e a Ana Luiza Catalano são ornitólogas excepcionais com contribuições importantes na ornitologia brasileira. A entrada de duas ornitólogas é o mínimo para resolver a falta total de representatividade de gênero (…). As ações devem ser contínuas, para que o CBRO atinja um cenário de proporcionalidade, não só representatividade”.
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