O Ministério Público Federal (MPF) reabriu inquérito civil para investigar se ribeirinhos, indígenas e outras comunidades tradicionais de Mato Grosso estão tendo o seu direito à consulta livre, prévia e informada respeitado pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT), no que se refere à tramitação do projeto de lei que quer proibir a pesca com fim comercial por cinco anos.
De autoria do governo de Mato Grosso, o PL nº 1.363/2023 teve regime de urgência aprovado na ALMT no final do mês passado. Com parecer favorável da Comissão de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Recursos Minerais, a proposta foi aprovada em primeira votação no dia 2 deste mês, e pode ir à última votação nesta quarta-feira (28).
Segundo o procurador da República Ricardo Pael Ardenghi, que é titular do 1º Ofício de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais de Mato Grosso, o inquérito civil data de 2019, quando o governo de Mato Grosso enviou à ALMT o PL nº 668/2019, cujo objetivo também era proibir o transporte, armazenamento ou comércio de qualquer peixe dos rios do estado.
“O PL foi arquivado e daí o inquérito perdeu seu objeto, por isso foi arquivado também. Como voltou a tramitar PL sobre o mesmo tema, muito embora com número diferente, o MPF recebeu novas representações de comunidades tradicionais que vivem da pesca, por isso o inquérito foi desarquivado e a investigação foi retomada”, explica Ardenghi a ((o))eco.
O inquérito quer investigar se o direito à consulta livre, prévia e informada, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), está sendo respeitado pela ALMT. “Comunidades tradicionais como indígenas, quilombolas, ribeirinhos, devem ser consultados sobre medidas legislativas que os afetem”, afirma o procurador.
Por este motivo, a Casa de Leis mato-grossense foi notificada a informar se está observando o dever de realizar o procedimento no trâmite do PL nº 1.363/2023. “Estamos aguardando informações da ALMT sobre a observância do direito de consulta, que não se confunde com audiências públicas”, diz Ardenghi.
Ainda segundo o Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad), as audiências públicas que estão sendo conduzidas pela ALMT não atendem ao modelo de consulta pública.
À reportagem, o MPF informou que tão somente após este diagnóstico deve avaliar as próximas providências sobre o tema. “Esse inquérito civil não trata da proibição [da pesca] em si, se é boa ou não, pois isso é uma questão ambiental. O objeto do inquérito civil é a observância do direito de consulta das comunidades tradicionais”, esclareceu o procurador da República.
O projeto de lei
Para acrescentar e alterar dispositivos da Política Estadual de Pesca, a justificativa apresentada pelo governador Mauro Mendes (União Brasil-MT) foi a “notória redução dos estoques pesqueiros em rios do Estado de Mato Grosso e estados vizinhos, tendo como principal razão a pesca predatória, que acaba por colocar em risco várias espécies nativas”, disse na mensagem encaminhada à ALMT.
Com a proibição, a proposta permitirá, entre 2024 e 2029, a pesca somente nas modalidades pesque e solte, captura de peixes às margens dos rios para consumo no local e a captura para consumo próprio, ficando expressamente proibido o transporte, o armazenamento e a venda de peixes de rios do estado.
Para mitigar o impacto econômico, o projeto prevê um auxílio aos pescadores artesanais do estado. Este apoio seria concedido por um período de três anos, a partir de 2023. No primeiro ano, os pescadores receberiam um salário mínimo, no segundo, meio salário e, no último, um quarto de um salário.
Um substitutivo apresentado por deputados quer manter o salário mínimo integral durante os três anos. “Pode até chamar a atenção a proposta de 1 salário mínimo por três anos, mas não podemos nos esquecer que a renda dos pescadores, conforme relatam, oscila entre R$ 2.500 e R$ 3.000 em média”, adverteu Edilene Fernandes do Amaral, consultora jurídica e de articulação do Observatório Socioambiental de Mato Grosso (Observa-MT).
Para a organização, que publicou uma análise sobre o substituto e as emendas que o projeto recebeu desde que foi aprovado em primeira votação, as proposições dos parlamentares querem alterar apenas pontos secundários do PL sem prejudicar o seu objetivo final, que é proibir a pesca com fim comercial por cinco anos.
“Uma maneira de responder às críticas de suas bases eleitorais”, avaliou Amaral sobre as emendas propostas pelos deputados.
Manifestações contrárias
Como mostrou ((o))eco, mais de 20 pesquisadores, ambientalistas e representantes da sociedade civil denunciaram, em nota técnica, que o PL ameaça o modo de vida tradicional e cultural de pescadores artesanais, que de forma legal pescam e vendem peixes para sustentar suas famílias.
Na segunda-feira (26), o Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) emitiu nota técnica na qual apontou impactos éticos e socioeconômicos na aprovação do projeto.
“Os barramentos causados pelas usinas hidrelétricas em conjunto com os altos níveis de poluição e degradação ambiental causados por empreendimentos agrícolas, representam verdadeiramente uma ameaça aos estoques pesqueiros do Estado, diferente da atividade pesqueira artesanal”, defendeu o documento.
A Sociedade Brasileira de Ictiologia (SBI) também se manifestou de forma contrária ao projeto. “O PL 1.363/2023 não apresenta fundamentação técnica para que seja apreciado e votado em regime de urgência, e teria pouco, se algum, impacto positivo sobre o estoque pesqueiro caso aprovado”, afirmou a SBI em nota.
Quem também repudiou a proposta foi o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). “Desrespeitou a OIT 169, não realizando a consulta prévia, livre e informada, e a Lei de Segurança Alimentar e Nutricional, ao não garantir o direito fundamental de alimentação adequada e segurança alimentar”, disse em moção o presidente do CNPCT, Carlos Alberto Pinto dos Santos.
Bloqueio de rodovia
Ao longo do mês, Mato Grosso tem sido palco de manifestações contra o projeto do governo do estado. Nesta terça-feira (27), pescadores de Santo Antônio de Leverger (MT), e de outros municípios do estado, fecharam parcialmente a MT-040.
Uma das faixas carregadas pelos manifestantes pedia que os deputados do estado não deixassem as famílias “mais carentes sentirem a fome em sua mesa”. “Não colaborem para as cidades ribeirinhas serem dizimadas”, disse o letreiro.
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