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Bichos, plantas e histórias que não contaram para você | Episódio 3 | O furto do Ubirajara

19 de junho de 2023 · 1 anos atrás

BICHOS, PLANTAS E HISTÓRIAS QUE NÃO CONTARAM PARA VOCÊ

Episódio 3 | O furto do Ubirajara

Sinopse

A história não é nova: países europeus invadem países em desenvolvimento e levam seus “tesouros”. Esse roubo não está restrito a metais preciosos e madeiras nobres, nem limitado ao período de colonização. A ciência também é palco dessa lógica colonialista, como bem ilustra o caso Ubirajara, o fóssil único de um dinossauro brasileiro que foi levado ilegalmente pra um museu alemão. A luta para trazê-lo de volta é apenas uma batalha para derrotar de vez o colonialismo científico.

Ficha Técnica

Este podcast teve o apoio do programa Acelerando a Transformação Digital 2022, do Meta Journalism Project, em parceria com o Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ) e a Associação de Jornalismo Digital (Ajor).

“Bichos, plantas e histórias que não contaram para você” tem produção da Todavós e ((o))eco.

Pesquisa, roteiro e apresentação: Duda Menegassi e do Rafael Ferreira.
Consultoria em roteiro e revisão final: de Geórgia Santos
Edição: Geórgia Santos e Douglas Weber.
Montagem, sonorização e finalização: Douglas Weber.
Música original: Gustavo Finkler.
Estratégia de distribuição: Milena Giacomini e da Gabriela Güllich
Identidade visual: Gabriela Güllich
Idealização, coordenação e execução financeira: Paulo André Vieira

Agradecemos a Arthur Souza Brum, Rafael Costa da Silva, à direção do Museu de Ciências da Terra, Lucy Gomes de Souza, Aline Ghilardi, Thiago Reis, Ale Potaschef, José Orenstein, Felipe Seibel, Rodrigo Alves, Mônica Aquino, Bruna Borjaille, Alison Grausam e Thayane Guimarães, do Centro Internacional para Jornalistas, Maia Fortes, todos os colegas da Ajor, e à toda a equipe de ((o))eco.

Material Extra

Coluna “Um ladrão com velhos hábitos é um ladrão preguiçoso, o caso do fóssil Ubirajara“, por Lucy Souza e Aline Ghilardi

Reportagem “O bom fóssil a casa torna? Alemanha acena retorno de Ubirajara ao Brasil“, por Duda Menegassi

Notícia “Fóssil do Ubirajara pode retornar ao Brasil em junho“, por Duda Menegassi

Fóssil do Ubirajara jubatus. Foto: Cretaceous Research / Reprodução

Notícia “Fóssil do Ubirajara deve retornar ao Ceará, aponta Ministério da Ciência“, por Duda Menegassi

Conheça o Museu de Ciências da Terra, no Rio de Janeiro (RJ).

Conheça o Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, em Santana de Cariri (CE).

Conheça o Museu de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha.

Artigo “Digging deeper into colonial palaeontological practices in modern day Mexico and Brazil” (Investigando práticas paleontológicas coloniais no México e no Brasil modernos), por Juan Carlos Cisneros, Nussaïbah B. Raja, Aline M. Ghilardi, Emma M. Dunne, Felipe L. Pinheiro, Omar Rafael Regalado Fernández, Marcos A. F. Sales, Rubén A. Rodríguez-de la Rosa, Adriana Y. Miranda-Martínez, Sergio González-Mora, Renan A. M. Bantim, Flaviana J. de Lima and Jason D. Pardo.

Fotos e Making of

Transcrição

Bichos, Plantas e Histórias que não contaram para você

Episódio 03 | O furto do Ubirajara

Duda Menegassi: Se a gente fizer uma pesquisa rápida, no Google mesmo, sobre os maiores roubos e furtos da história, os resultados, invariavelmente, envolvem joias, obras de arte ou assaltos a bancos. Por exemplo, o roubo de diamantes na Antuérpia em 2003 que é considerado não só o maior da Bélgica, mas um dos maiores do mundo.


Rafael Ferreira: Antes disso, em 1990, dois homens vestindo uniforme da polícia roubaram 13 obras de arte de um museu em Boston, nos Estados Unidos. Eram quadros de Rembrandt, Vermeer, Degas, Manet…

Duda Menegassi: No Brasil, não ficamos para trás, não. Em uma tarde do carnaval de 2006, enquanto milhares brincavam no Bloco das Carmelitas, no bairro de Santa Teresa, no Rio, quatro homens realizaram o maior roubo a museu da história do Brasil.

Rafael Ferreira: Quatro quadros foram roubados do Museu da Chácara do Céu. Quadros assinados por ninguém menos que Claude Monet, Henri Matisse, Salvador Dalí e Pablo Picasso — de quem também levaram um livro de gravuras. O conjunto tem valor estimado em 50 milhões de dólares e não foi recuperado.

Duda Menegassi: Olhando para estes exemplos, a gente percebe que  sempre que se fala em grandes roubos, a história de pilhagem do patrimônio natural do Brasil é sempre deixada de lado. E assunto não falta, afinal, o país foi saqueado por séculos pela colônia. Especialmente, por causa do ouro e da madeira.

Rafael Ferreira: No episódio passado, a gente mostrou, por exemplo, como a fome dos invasores portugueses pelo pau-brasil foi responsável pelo início da devastação da Mata Atlântica. Não deixe de ouvir, está bem legal. Ali fica evidente a consequência dos primeiros roubos a que o nosso país foi submetido. Mas, foi só o começo de uma longa história de usurpação.

Duda Menegassi: No episódio de hoje, a gente te mostra outro aspecto do colonialismo, o colonialismo científico, que levou a outro roubo de parte da nossa história natural. Vamos te contar sobre “O Furto do Ubirajara.”

Rafael Ferreira: Você está ouvindo “Bichos, plantas e histórias que não contaram para você”, um podcast do site ((o))eco de jornalismo ambiental. 

Nessa temporada, em seis episódios, a gente traz alguns dos principais temas da   conservação da natureza aqui no Brasil. 

Eu sou o Rafael Ferreira.

Duda Menegassi: E eu sou Duda Menegassi.

Mas antes de te contar sobre “O Furto do Ubirajara”, é importante explicar quem ou o quê é o Ubirajara. E para isso, é preciso voltar um pouco no tempo. Coisa pouca. Cerca de 115 milhões de anos.

Na escala de tempo geológico, a gente está falando do período Cretáceo, que vem logo depois do Jurássico. Apesar de este último aparecer em nome de filme, foi no Cretáceo que viveram mais da metade das espécies conhecidas e foi quando os dinossauros alcançaram o ápice na escala evolutiva. E nesse ‘Mundo dos Dinossauros’, um pequeno carnívoro, coberto de penas, vivia no território que hoje é o estado do Ceará. 

E esse cearense pré-histórico era justamente o Ubirajara. Mais específica e cientificamente, Ubirajara jubatus.

Rafael Ferreira: Aqui tem uma questão. O artigo que descreveu a espécie tinha alguns problemas e foi invalidado pela comunidade científica. Então, o nome e sobrenome científicos do dinossauro cearense podem mudar.

Duda Menegassi: Então, para os íntimos, é “Ubirajara”, que é como vamos chamá-lo para facilitar.

Rafael Ferreira: O fóssil deste animal foi encontrado no Cariri, na região da Bacia do Araripe. Clara Nunes cantava que, no Cariri, “quando a chuva não vem, não fica lá ninguém”. Mas a verdade é que ficaram muitas espécies do Cretáceo por lá, transformando o local em uma espécie de oásis para paleontólogos, repleto de fósseis que puderam ser preservados graças às condições geológicas da região. 

Duda Menegassi: Mas essa fartura também faz da Bacia do Araripe um alvo cobiçado por atravessadores que vendem os fósseis no mercado clandestino. Não é difícil encontrar diversas peças em leilões virtuais, frequentados por colecionadores e pesquisadores de todo o mundo.

Rafael Ferreira: Tanto que você não vai encontrar o Ubirajara em nenhum museu do Ceará ou do Brasil. Aliás, até pouco tempo atrás, ninguém no país sequer sabia da existência deste fóssil, que foi encontrado em uma pedreira de giz do Cariri e que tem cerca de 40 centímetros de altura e a aparência de uma rocha entalhada.

Duda Menegassi: Em 1995, os ossos do Ubirajara foram levados para a Alemanha onde, até hoje — pelo menos até a produção deste episódio —, estão guardados no Museu de História Natural de Karlsruhe, à disposição de pesquisadores europeus. Esse transporte intercontinental aconteceu sem que fossem cumpridas as diretrizes da legislação brasileira para importação de bens destinados à pesquisa científica.

Ou seja, furto.

Pois é. E é por isso que eu estou aqui, no Museu de Ciências da Terra, que fica no bairro da Urca, no Rio de Janeiro. Eu vim para conversar com o Arthur Brum, que é paleontólogo do Museu Nacional, e com o curador do museu, o Rafael Costa Silva. A gente vai falar sobre paleontologia e sobre o Ubirajara, e como ele foi parar a mais de 9.000 quilômetros daqui.

Esse barulhinho que vocês estão escutando no fundo, é porque hoje é um dia chuvoso no Rio de Janeiro. E o prédio do Museu é um prédio histórico de 1908, que faz bastante eco. Mas a gente veio aqui para olhar para um primo de… vamos lá, Arthur… quinto, sexto grau… 

Arthur Brum: Por aí. Na verdade, um detalhe é que esse é um Estauricossauro, que é um primo bem distante do Santanaraptor…

Duda Menegassi: Esse é o Arthur Souza Brum, paleontólogo e pesquisador do Museu Nacional.

Arthur Brum: O Santanaraptor, ele é mais próximo: seria um primo de terceiro ou segundo grau. Ele seria mais próximo. 

Duda Menegassi: Então vamos olhar aqui o Santanaraptor. Isso aqui é uma réplica desse que a gente chama de velociraptor?

Arthur Brum: Ele é um celurossauro. A gente pode chamar de celurossauro. Ele tem um um padrão corporal semelhante ao velociraptor. Não é exatamente, mas lembra. 

Duda Menegassi: Esse que a gente está vendo aqui. Bom, a altura dele deve bater na minha cintura. (Ele está inclinado. Ia falar que bate na minha cintura, mas não é muito preciso falar isso porque se ele ficar em pé, ele vai ficar maior.) 

Arthur Brum: É. Mas ele tinha cerca de, um pouco mais de, um metro. Um metro e meio.

Duda Menegassi: E ele é vivia também na região do Ceará. Era outro cearense, outro dinossauro cearense… (É um dinossauro?) 

Arthur Brum: (É um dinossauro. )

Duda Menegassi: (Imagino. É que de vez em quando…) … outro dinossauro cearense que andava sobre as duas patas traseiras, tinha um rabo relativamente comprido e duas patinhas e duas mãos mãozinhas bem naquele padrão Tiranossauro Rex que a gente curte.

E aí, a gente olhando para ele aqui, tentando imaginar um pouquinho o que é o Ubirajara jubatus… Qual é a comparação? Descreve para mim o Ubirajara — a gente está olhando pra ele aqui — para ficar mais fácil de entender.

Arthur Brum: O Ubirajara seria bem menor. Então, acho que ele teria um pouco na metade assim do tamanho do Santanaraptor. O Santanaraptor para o padrão de, entre aspas, raptor, que é o padrão corporal dele, o Ubirajara seria bem menor. Ele teria em relação a essa réplica aqui, ele seria mais emplumado e ele teria duas grandes penas, que é uma das características marcantes do Ubirajara, que são um par de penas bem alongadas e afiladas na lateral, em cima do braço. Então seriam dois filamentos assim.

Duda Menegassi: E quando você fala menor, a gente está falando de qual tamanho?

Arthur Brum: Ele seria… O Ubirajara seria um pouco maior do que um gato.

Duda Menegassi: Então, verdadeiramente uma galinha.

Arthur Brum: Quase uma galinha. 

Duda Menegassi: O caso do dinossauro brasileiro veio à tona em dezembro de 2020, quando um artigo científico sobre a descoberta do Ubirajara foi publicado na revista Cretaceous Research.

Arthur Brum: … A gente tem uma lista de e-mails, onde chegam as novidades e a gente viu. Ué? O que aconteceu? Quem são os autores? Quando a gente vê os autores, a gente já viu que eram pessoas que já estavam acostumadas a fazer esse tipo de coisa. Que é, por exemplo, tem um paleontólogo famoso lá no exterior, David Martill, ele costuma fazer esse tipo de publicações de traficados. 

Duda Menegassi: Lembra que a gente falou lá atrás que o nome científico pode mudar? Pois é. Tem a ver com isso. Como o Arthur acabou de mencionar, essa publicação levantou uma série de problemas sobre a pesquisa. A primeira questão é como esse material saiu daqui do Brasil e foi parar na Europa sem os documentos adequados? E a segunda é por que a pesquisa não teve a participação de nenhum paleontólogo brasileiro?

Rafael Ferreira: Isso vai contra todas as leis que tratam de fósseis no país. O Decreto-lei nº 4.146 de 1942, da era Vargas, diz que fósseis encontrados no Brasil pertencem …

… ao Brasil.

Normas mais recentes, como o Decreto 98.830 e a Portaria 55 do Ministério das Ciências e Tecnologia determinam ainda que qualquer movimentação para o exterior de fósseis brasileiros deve ser validada pelo governo federal e que a pesquisa de materiais coletados por estrangeiros deve ter a participação de pesquisadores brasileiros. Segundo o Arthur nos contou, os alemães reagiram.

Arthur Brum: Eles negaram. Eles disseram que era legal a extração do fóssil e eles apresentaram o documento do DNPM [Departamento Nacional de Produção Mineral] que é um documento forjado. Você tinha casos de tráfico de fósseis, que era inclusive uma questão regional, que foi até uma discussão para depor em relação a um funcionário de lá que estava facilitando esse extravio, esse tráfico de fósseis. Inclusive a datação do documento… o documento era claramente forjado. Eles usaram esse documento como prova na revista e claramente a data era forjada. Tudo era forjado.

Rafael Ferreira: A repercussão entre os paleontólogos brasileiros foi imediata e culminou na hashtag Ubirajara Belongsto BR. Traduzindo: “Ubirajara pertence ao Brasil”. E isso se transformou em uma campanha pela repatriação do fóssil nas redes sociais.

Duda Menegassi: Na época, a Sociedade Brasileira de Paleontologia entrou na briga com um comunicado ao editor-chefe e editores da revista Cretaceous Research, “mostrando surpresa pela publicação de material fossilífero brasileiro sem, aparentemente, a documentação pertinente para a saída de material fóssil do país”. 

Eles afirmam que a autorização apresentada pelos autores possui “notória falta descritiva do material autorizado que, no papel, é referenciado apenas como ‘duas caixas’”. A Sociedade também diz que a documentação não foi respaldada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq.

As contestações sobre a origem ilegal do fóssil fizeram com que o artigo fosse retirado do ar pelo periódico. E conforme as coisas foram acontecendo, segundo o Arthur, passou a ser um problema diplomático.

Arthur Brum: Houve esse levante, principalmente na internet, com a Aline Ghilardi. Porque ela levantou a hashtag UbirajaraBelongstoBR e houve toda uma sensibilidade da comunidade científica, inclusive em aspectos internacionais também, com essa hashtag criada e com o levante dos cientistas questionando a validade dessa espécie. A revista não viu outra opção, senão se retratar. E isso é inédito assim, em termos desse tipo de publicação, e abre um precedente muito importante para a história de publicações desse tipo de material para o Brasil. 

Todo pesquisador, agora, que for publicar material brasileiro, que for estrangeiro com material oriundo de tráfico, vai se perguntar duas vezes se isso procede ou não. Então, é importante reclamar sim. É importante ter esse levante e questionar esses aspectos científicos. 

É uma questão de ética.

Duda Menegassi: E vale ressaltar aqui que esse não é um caso isolado.

Esse daqui é muito legal. A gente tá vendo uma placa. Que tipo de rocha é essa? 

Rafael Costa: Esse é um calcário.

Duda Menegassi: Uma rocha de calcário que conseguiu preservar um pedaço de tecido mole, o que é super raro. Não é? Ele estava comentando que é super raro ter esse tanto de [tecido]. E isso era a barbatana do Tupandactylus, que era um pterodáctilo. 

Arthur Brum: Na verdade era a crista craniana. Então, ele é um réptil voador, um pterossauro, e isso é toda a parte da cabeça dele: a crista.

Duda Menegassi: A gente está falando de uma espécie que viveu a quantos milhões de anos atrás? 

Rafael Costa: Em torno de 110 milhões de anos. Essa formação geológica particular. 

Duda Menegassi: Esse que vocês ouviram junto com o Arthur é o Rafael Costa da Silva, paleontólogo e curador do Museu de Ciências da Terra. Ele acompanhou de perto a saga para trazer de volta esse outro brasileiro “perdido” no estrangeiro.

O fóssil de pterossauro, aquele dinossauro voador que a gente vê nos desenhos e filmes, também foi descoberto na Bacia do Araripe e estava sob a custódia temporária da Bélgica, no Instituto Real de Ciências Naturais. O achado arqueológico também foi exportado ilegalmente para a Europa.

E foi graças a um acordo entre a embaixada do Brasil no país e a instituição científica belga, realizado em 2021, que foi feita a repatriação do crânio incompleto do pterossauro Tupandactylus imperator.

Rafael Costa: Ele chegou no começo de 2022 para a gente. Em janeiro ou fevereiro, se não me engano. Esse fóssil foi identificado na Bélgica e estava emprestado para o Museu de História Natural em Bruxelas. Ele na verdade pertencia a um colecionador particular e estava emprestado para esse museu na época. Um paleontólogo que estava visitando o museu na época reconheceu esse fóssil e iniciou algumas tratativas, meio informais, para saber se seria possível trazer esse fóssil para cá.

O Ministério da Ciência tem uma área de assuntos internacionais, um Departamento de Assuntos Internacionais, que lida com esse tipo de questão. Então esse departamento fez uma conexão direto com o Itamaraty. O Itamaraty negociou, através da embaixada brasileira em Bruxelas, com o Museu de História Natural de lá. Então foi uma negociação que saiu das nossas mãos. Na verdade, ela foi feita por vias diplomáticas e Museus da Terra recebeu esse fóssil que está no Brasil novamente.

Duda Menegassi: Esse final feliz acontece aqui, no Museu de Ciências da Terra, onde eu e você podemos ver esse pedaço da nossa história bem de perto.

Rafael Ferreira: Apesar da recusa do Museu de História Natural de Karlsruhe em devolver o Ubirajara ao Brasil, em julho de 2022, o Conselho de Ministros de Baden-Württemberg, na Alemanha, decidiu que o fóssil do dinossauro brasileiro deveria voltar para este lado do Atlântico. A repatriação foi proposta justamente por causa das condições, no mínimo, duvidosas da importação.

Mas é importante dizer que essa foi uma decisão diplomática entre os dois países. Tanto o Museu quanto o pesquisador alemão que descreveu o Ubirajara ainda sustentam que o fóssil deveria ficar por lá. Um dos motivos  – que aliás é uma afirmação constante em casos como esse – é que o fóssil estaria melhor guardado em um museu europeu que em um brasileiro, supostamente por conta das melhores condições de preservação.

Duda Menegassi: A gente tem visto nos últimos anos um descaso com a área dos museus onde o nosso patrimônio cultural material e imaterial vem sendo perdido, muitas vezes até sem nem ter sido estudado…

Rafael Costa: Exatamente. 

Duda Menegassi: … como foi o caso do Museu Nacional. Quando a gente traz essa discussão, sobre trazer de volta para o Brasil, não é a primeira vez que eu já escutei isso: “Ah! Mas na Europa tá melhor cuidado.” 

Arthur Brum: Você tinha essa discussão que argumentava, da parte da Alemanha, dos pesquisadores de lá, é que “Ah, está melhor aqui. Viu, o Museu Nacional pegou fogo. Está melhor aqui.” Então, esse era o argumento deles, mas eles se esquecem que os dinossauros que a gente viu ali na outra sala, os holótipos estão perdidos, por causa da Segunda Guerra Mundial.

Rafael Costa: Eu acho que é uma série de condições. A gente viu desastres acontecendo em vários museus brasileiros. Na última década, em especial, a gente teve Butantã, o Museu da Língua Portuguesa, o Museu Nacional — assim, para gente, foi o mais emblemático — , mas eu acho que existem outros desastres que não são tão visíveis. A falta de financiamento, ela pode destruir um museu tanto quanto o incêndio, só que devagar: é um fogo lento. E isso é uma situação que a gente vê na maioria dos museus brasileiros. 

Então, eu acho que faltam políticas públicas que incentivem mais os museus. A gente passou agora um período de praticamente 10 anos sem ter um edital sequer, público, para financiamento de qualquer coisa que fosse em museus. Então é necessário que a gente tenha isso. É um ciclo, é um processo, que se retroalimenta: se você manda todas as coisas importantes lá para fora, as pessoas não vão ver os museus aqui; se as pessoas não vão ver os museus aqui, os museus não conseguem recursos, não conseguem trazer recursos. 

Então, por isso, é importante que os fósseis importantes brasileiros estejam no Brasil. Isso ajuda a gente a trazer recursos para cá. Isso traz visibilidade pro Museu. E é com isso que a gente consegue cuidar dos acervos. Cuidar de acervo é uma coisa barata. O que acontece é que, como se passa muito tempo sem investir, você acumula. É como uma casa: se você cuida da casa diariamente, a tua casa está sempre bonitinha e você vai gastar pouco; se você deixa ela quebrar você vai ter que fazer uma reforma completa e vai sair muito mais caro. É mais ou menos a mesma lógica.

Rafael Ferreira: A paleontóloga Lucy Gomes de Souza, pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas, diz que o retorno do Ubirajara é um marco histórico mundial na luta contra o colonialismo científico.

Lucy Gomes: A nossa Constituição, a nossa lei, considera que os fósseis, são não só bens científicos, como bens culturais, e que eles pertencem à União. Então assim qualquer pessoa que encontra um fóssil, ela deveria destinar esse fóssil a uma instituição a que coubesse ou que tivesse a responsabilidade de armazenar, cuidar e torná-lo acessível ao povo brasileiro, por meio de disposições, por meio de acesso por parte dos pesquisadores, e assim por diante.

Então, nas nossas leis, não é só proibido, por exemplo, a gente ter fósseis em casa, como uma coleção privada, como também é proibido o comércio de fósseis. Só que a lei e algumas diretrizes relacionadas ao estudo de fósseis permite, por exemplo, a gente fazer parcerias com instituições estrangeiras e que uma parte desse acervo realmente possa ser, por meio dessas contribuições, doada, destinada a instituições internacionais. Só que em nenhum desses contextos, aquilo que a gente chama de holótipo — que é o espécime que a gente se baseia para descrever a espécie, para dar o nome à espécie  — ele nunca pode estar depositado fora do Brasil. Ele pode estar emprestado, mas ele tem que pertencer a uma instituição brasileira.

Rafael Ferreira: A Lucy é uma paleontóloga não binária e transfeminina que também é pesquisadora da Faculdade Estácio do Amazonas. Segundo ela, o mais importante da volta do Ubirajara talvez seja o precedente que ele abre.

Lucy Gomes: A ministra da Alemanha solicitou que o museu que está com o Ubirajara não só devolva o Ubirajara, como prove que todos os outros materiais brasileiros que estão lá, estão lá de forma legal. E aí entra a parte interessante: nenhum desses materiais que estão lá tem como ser provados que estão lá de forma legal. Então eles não vão ter que devolver só o Ubirajara, eles vão ter que devolver todos os materiais que estão lá porque eles estão lá de forma irregular. Então a gente não tá ganhando só o Ubirajara. O Ubirajara está voltando para casa com todos os seus parentes no bolso. Talvez não no mesmo período, mas vai abrir um precedente para que esses e outros materiais possam enfim ser resgatados. 

Porque nesse museu específico, e em alguns outros museus da Alemanha, existe um monte holótipo, que é esse material importante para a gente saber a qual espécie o organismo pertence. 

Rafael Ferreira: Eu só vou interromper rapidinho a Lucy para explicar o que é um holótipo. Na classificação de espécies biológicas, o holótipo é o espécime no qual o autor da classificação se baseou para definir uma espécie ou gênero. Ou seja, o holótipo é basicamente o exemplar único a partir do qual foi descrita uma espécie ou subespécie.

Lucy Gomes: Lá na Alemanha tem vários holótipos brasileiros, de espécies brasileiras. Então isso vai permitir — esse precedente que está sendo aberto com o Ubirajara — vai permitir que a gente continue nossa luta contra o colonialismo científico, contra essas ações de tráfico e repatriar mais de uma centena de materiais fósseis que estão há décadas abduzidos, roubadas de nossa de nossa pátria. Então, talvez esse seja o ponto mais importante da repatriação do Ubirajara. Não só pelo retorno do Bira, propriamente dito, mas também pelos precedentes então que estão sendo abertos agora. E que isso vai ser eventualmente expandido para outros países e outras instituições que também tem materiais brasileiros de forma irregular. 

A Alemanha não é a única. Isso é uma coisa bem importante de se deixar claro, talvez aí na reportagem que está se demonizando muito a Alemanha e tal, e isso é errado. Não é culpa da Alemanha. É culpa de algumas pessoas específicas que fizeram ações erradas. E que a Alemanha não é o único país que tem material brasileiro de forma irregular: os Estados Unidos tem; o Reino Unido tem; a França tem; e por aí vai. Então ainda existe uma luta muito muito grande e o Ubirajara, ele tá sendo nosso bastião, nosso guarda-chuva que vai permitir que a gente reaveja todos esses outros materiais. 

Só uma coisa: que antes mesmo do Ubirajara ser repatriado, igual está acontecendo agora. Foi toda essa discussão gerada na internet que possibilitou que algumas instituições que não sabiam que estavam cometendo um crime, devolvessem de imediato materiais brasileiros que eles tinham do Araripe. Então vieram reportagens relativamente recentes: devolveram um pterossauro, devolveram umas aranhas, devolveram vários materiais que estavam irregularmente depositados fora do Brasil. Então, isso aconteceu antes mesmo dele ser repatriado. Imagina o poder que a gente vai ter a partir da repatriação desse material? É definitivamente um marco histórico mundial na luta contra o colonialismo científico.

Rafael Ferreira: Quando gravamos esse episódio, a data do retorno do Bira ainda era uma total incógnita. Bem… isso mudou. O Ubirajara foi devolvido. Isso mesmo, O Ubirajara já está no Brasil!

O fóssil desembarcou em Brasília no início de junho de 2023, trazido por uma delegação de autoridades alemãs que estiveram aqui em uma visita oficial. 

A gente também não sabia qual museu ia receber o Ubirajara. Bem, após meses de indefinição quanto ao destino final, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação indicou que o fóssil vai, de fato, ficar no Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, que pertence à Universidade Regional do Cariri. O Ubirajara, enfim, vai ser devolvido à mesma região onde viveu há cerca de 110 milhões de anos. 

Esse retorno é resultado de um grande esforço diplomático, que envolveu o próprio Ministério, o Instituto Guimarães Rosa, ligado ao Itamaraty, e a Embaixada da Alemanha em Brasília. Mas como a gente contou para vocês, a pressão começou com a iniciativa da comunidade paleontológica brasileira.

Diante dessa novidade, eu fui buscar o ponto de vista de alguém que estava lá no início: uma das idealizadoras da campanha de repatriação do Bira, além de autora de artigos sobre colonialismo científico. É a paleontóloga Aline Ghilardi, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Vamos ouvir o que ela tem a dizer?

Aline Ghilardi: É importante que materiais como esse, sempre que possível, fiquem próximos à região de origem deles, porque isso traz retorno para a região. Então, exemplos: localmente, esse fóssil pode ajudar a formar cientistas locais, ele vai servir de suporte educacional para as escolas, ele vai ajudar a atrair turistas. Vai ajudar a atrair mais cientistas para estudar esse fóssil, lá no seu local de origem, além de atrair investimentos pro Museu. E tudo isso culmina num auxílio ao desenvolvimento da região. 

Outra coisa é que a presença desse fóssil lá, a permanência desse fóssil lá, é muito importante para desenvolver o sentimento de autoestima da população local, e o sentimento, também, de proteção do patrimônio por essas pessoas: que essas pessoas tenham orgulho do seu patrimônio e que elas queiram protegê-lo. 

Duda Menegassi: O caso do furto do Ubirajara é emblemático, mas o colonialismo científico não se aplica apenas aos fósseis ou ao passado. Ele tem relações diretas em como se faz ciência hoje. Isso envolve os estudos da nossa biodiversidade contemporânea, por exemplo, e os “descendentes” do Ubirajara, por assim dizer.

Arthur Brum: A gente tem essa história natural diversa. A gente tem que conhecê-la melhor. E isso é um patrimônio cultural que está ao acesso de todos e que tem que ficar nas nossas instituições. Assim como todos os países têm o direito de exercer a sua soberania nacional, a gente também tem o nosso direito. Isso não deve ser exclusivo deles. Quando você fala de colonialismo, a questão da cooptação, isso é muito forte. Como por exemplo na Inglaterra, você tem templos inteiros egípcios ali, dentro de um museu. Eu acho que é um debate muito forte.

O Ubirajara é um, mas tudo isso que tá junto com Ubirajara é importante de ser debatido. Tão importante quanto ele é justamente fomentar esse debate na própria população. Para atentar que materiais importantes e coisas que são importantes para a gente, para a nossa história e cultura nacional estão sendo devolvidos e que a gente precisa lutar por isso.

Duda Menegassi: Ter uma comunidade científica brasileira fortalecida é fundamental para melhor pesquisar e proteger o patrimônio natural do país. Sem roubos, sem furtos. Afinal de contas, “Brazil belongs to Brazil”.

Rafael Ferreira: Você ouviu “Bichos, plantas e histórias que não contaram para você”, podcast do site ((o))eco de jornalismo ambiental. No próximo episódio, a polêmica importação de 18 girafas da África do Sul pelo Bioparque, o antigo Zoo do Rio, é a prova de que ainda há um longo caminho para a redenção. 

Este podcast teve o apoio do programa Acelerando a Transformação Digital, do Meta Journalism Project, em parceria com o Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ, em inglês) e a Associação de Jornalismo Digital (Ajor). 

“Bichos, plantas e histórias que não contaram para você” tem produção da Todavós e do ((o))eco.

Acesse o nosso site, oeco.org.br e clicando na página ESPECIAIS, tem acesso a todas  as  informações sobre o projeto, com conteúdos adicionais sobre cada um dos episódios. 

O artigo “O bom fóssil a casa torna? Alemanha acena retorno de Ubirajara ao Brasil”, escrito pela Duda Menegassi, e que foi base desse episódio, você também encontra lá.

Este episódio teve  pesquisa, roteiro e apresentação da Duda Menegassi e minha, Rafael Ferreira.

As externas foram gravadas no Museu de Ciências da Terra, no Rio de Janeiro.

A consultoria em roteiro e revisão final são de Geórgia Santos.

A edição, sonorização e finalização é de Douglas Weber.

A música original é de Gustavo Finkler.

A estratégia de promoção, distribuição nas redes e conteúdo digital é de Milena Giacomini e da Gabriela Güllich, que também assina a identidade visual./

A idealização, coordenação e execução  financeira  do  projeto são do Paulo André Vieira./

Agradecemos a Arthur Souza Brum, Rafael Costa da Silva, à direção do Museu de Ciências da Terra, À Lucy Gomes de Souza, Aline Ghilardi, Thiago Reis, Ale Potaschef, José Orenstein, Felipe Seibel, Rodrigo Alves, Mônica Aquino. A gente não pode esquecer da Bruna Borjaille, Alison Grausam e Thayane Guimarães, do Centro Internacional para Jornalistas, Maia Fortes, à todos os colegas da Ajor e, é claro, à toda a equipe de ((o))eco.


Duda Menegassi: Se você gostou deste episódio e está curtindo o nosso trabalho, acesse oeco.org.br e saiba como virar um apoiador do jornalismo ambiental independente.

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