O Ministério da Integração Nacional só não corre o risco de negar seu próprio nome porque vem conseguindo arrebanhar contra si, numa coalizão de entidades da sociedade organizada, de governos e de políticos, uma legião de opositores. A transposição do rio São Francisco entra em uma nova fase, que promete unir Estados, comandados por diferentes colorações partidárias, a reclamarem o pacto federativo. Governadores ameaçam resistir ao megaprojeto lançando mão da autonomia que dispõem sobre os rios que formam a calha principal do São Francisco.
Aécio Neves (PSDB) e Paulo Souto (PFL), que comandam os Estados onde está a maior parte da bacia do São Francisco (36,8% em Minas Gerais e 48,2% na Bahia) não apóiam a transposição. Criticam abertamente o governo federal, que segundo eles não buscou diálogo com os Estados e quer impor a obra rejeitando outras propostas para os municípios da bacia. O governador de Sergipe, João Alves (PFL), também é contra, e o de Alagoas, Ronaldo Lessa (PDT), faz restrições, amparadas na necessária revitalização do rio. A posição do governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos (PMDB), é considerada “delicada”, pois o Estado será beneficiado diretamente pela obra.
O rio São Francisco, com cerca de 2,7 mil quilômetros, nasce em Minas Gerais (na Serra da Canastra), banha Bahia e Pernambuco, e sua foz está entre Alagoas e Sergipe, próxima da alagoana cidade de Piaçabuçu. A bacia hidrográfica, terceira do Brasil e única inteiramente brasileira, inclui ainda Goiás e Distrito Federal. O projeto de transposição quer levar água para o chamado nordeste setentrional, atendendo Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco.
Segundo o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) e secretário de Meio Ambiente de Minas Gerais, José Carlos Carvalho, somente uma mudança drástica na agenda política, com o alto escalão na dianteira, será capaz de alterar os planos de Ciro Gomes de licitar a obra no próximo mês e iniciá-la em maio. A pressa do governo federal tem para Carvalho uma explicação clara: “Se uma obra dessa magnitude não se inicia até o meio do ano, à medida que se aproxima o ano eleitoral isso se torna muito complicado”. O paredão desfavorável à transposição, crescente a cada dia com manifestações e ações jurídicas interpostas por órgãos públicos e entidades civis, já suscitou um atraso no cronograma do Ministério da Integração Nacional. Porém, não dá sinais de ser capaz de demover Ciro Gomes, ou o presidente Lula, de começar rapidamente uma obra orçada em R$ 4,5 bilhões, com enorme impacto ambiental e reflexos em dez Estados da nação.
Para tanto, o ministério está disposto a deflagrar as licitações da obra antes mesmo de ter em mãos o licenciamento ambiental, a ser concedido pelo Ministério do Meio Ambiente. Um decreto autorizando a desapropriação de 350 mil hectares de terra na região afetada pela transposição já foi assinado por Lula. Por isso, acredita Carvalho, o embate político entre União e Estados será inevitável. “As pedras de natureza política estão se mexendo no tabuleiro. Seguramente os governadores da Bahia e de Minas vão se movimentar”.
O secretário de Meio Ambiente da Bahia e vice-presidente do CBHSF, Jorge Koury, se espanta diante dos ouvidos surdos às manifestações que têm como bandeira a não realização da transposição. “Em qualquer regime democrático, quando o governo toma uma decisão como esta, que não foi absorvida de forma pacífica pela sociedade, é natural que se discuta mais. O governo federal não tem o direito de passar por cima de qualquer argumento só para viabilizar o projeto”, afirma. Para ele, os Estados foram relegados a uma posição secundária na discussão. “O esforço enorme que fazemos para tentar sensibilizar o governo federal não está dando certo. Temos até segurado as entidades civis. Pode chegar o momento de uma reação mais forte”, prevê. O secretário baiano lembra que a calha principal do rio é federal, porém os rios que abastecem essa calha são estaduais. “Até que ponto nós, que somos responsáveis por estes rios nos Estados, não podemos tomar posições desrespeitando a posição do governo federal?”, indaga Koury.
Aécio Neves deverá levar o assunto diretamente ao presidente da República, garante José Carlos Carvalho. Para ele, o governo federal está atropelando processos que já se estabeleciam com a união dos seis Estados e do Distrito Federal em torno das questões que atingem à bacia do São Francisco. “Estamos perdendo uma extraordinária oportunidade de ampliar o exercício da gestão colegiada, participativa e do pacto federativo, sem o quê, ao invés de um modelo sistêmico, vamos acabar implantando no Brasil um modelo caótico de gestão das águas”, assinala Carvalho.
Principal aposta do governo Lula no semi-árido nordestino, o projeto é em grande parte uma cópia da proposta apresentada no segundo governo Fernando Henrique Cardoso e coleciona veredictos contrários do Banco Mundial, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de diferentes unidades da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Central Única dos Trabalhadores (CUT), de inúmeras ONGs, de representações dos Ministérios Públicos Federal e Estaduais e, quem diria, até do PT, numa lista que engrossa a cada passo do governo em direção à execução da obra.
A posição dos governadores pode até ser alimentada por divergências políticas e intenções eleitorais, mas o discurso é todo calcado em críticas técnicas. A determinação do Ministério da Integração Nacional é iniciar a obra simultaneamente nos eixos Leste (com 220 km de canal, 5 estações de bombeamento, 5 aquedutos, 2 túneis e 9 reservatórios de pequeno porte) e Norte (402 km de canal, 4 estações de bombeamento, 22 aquedutos, 6 túneis, 26 reservatórios de pequeno porte e 2 centrais hidrelétricas). Jorge Koury considera a estratégia indefensável. “Em qualquer lugar do mundo, um projeto desse tamanho teria um piloto. Começar de uma vez só uma obra de R$ 4,5 bilhões, num país que tem graves restrições de orçamento e que precisa de um programa para acabar com a fome, é inconcebível”, afirma ele.
Tanto Aécio Neves quanto Paulo Souto contrapõem à transposição principalmente o estado de degradação do São Francisco na sua bacia hidrográfica. Eles acolhem o mais importante argumento das forças avessas ao projeto, que lembram que o rio, antes de qualquer tipo de interferência em seu leito, precisa passar por um processo de revitalização que a iniciativa federal prevê numa escala mínima e sem garantias de recursos. No orçamento deste ano, estão destinados à revitalização do rio cerca de R$ 100 milhões. Além disso, os governos estaduais e o Comitê da Bacia não admitem a utilização das águas em grandes empreendimentos comerciais, como a irrigação de pomares para exportação e a criação de camarão. O Comitê decidiu, depois de dezenas audiências públicas, que o uso externo das águas do São Francisco deve se restringir ao consumo humano e para matar a sede de animais (dessedentação).
Os anti-transposição lembram que milhares de pessoas que vivem a poucos quilômetros da calha do São Francisco sofrem com a falta d’água, sem falar nos inúmeros programas de irrigação que atendem à bacia e estão em ritmo lento, paralisados ou nem foram iniciados por falta de recursos. “Na bacia, existe um potencial de área para irrigação de cerca de 1 milhão de hectares, mas hoje essa área não passa de 200 mil hectares”, destaca o secretário de Meio Ambiente da Bahia.
O governo baiano elaborou um relatório em que avalia o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (Eia-Rima) que sustentam o projeto. Em 100 páginas, o documento destrincha e destroça tais estudos. Minas Gerais segue o mesmo caminho: está pleiteando junto ao Ibama que o Eia-Rima seja refeito, com a participação de técnicos dos órgãos ambientais dos Estados da bacia.
José Carlos Carvalho diz ter “grande confiança” na ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. “Ela já declarou que este empreendimento não será licenciado a toque de caixa. Então, temos uma expectativa de que o Ibama fará uma avaliação isenta do projeto”, afirma. O secretário relativiza o desprestígio de Marina no embate com outras instâncias do governo federal, como no caso da liberação dos transgênicos, alegando que são assuntos de naturezas diferentes. “Não podemos comparar o licenciamento ambiental de um empreendimento com a decisão de uma política pública que passa pelo crivo do Congresso Nacional”. Carvalho confia também na ação do Ministério Público, que segundo ele MP “não é cooptável” e não será influenciado pelo Ministério da Integração Nacional, que articula uma reunião com seus representantes para tratar da transposição.
* Roselena Nicolau é mineira de Belo Horizonte e jornalista. Foi repórter do Jornal do Brasil por 12 anos é correspondente da Agência Sebrae de Notícias.
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