Reportagens

Cadê o rio que estava aqui?

Uma hidrelétrica vai roubar de Aimorés o rio Doce, que sempre banhou a cidade mineira. Além de perder parte de sua história, os moradores temem por sua saúde.

Matheus Leitão ·
17 de março de 2005 · 19 anos atrás


Apenas 10% de toda água do rio continuará a passar em frente à cidade. O resto vai dar a volta por trás de uma montanha e cair direto na casa de força da hidrelétrica, para gerar 330 megawatts e depois voltar ao curso natural. A energia é suficiente para abastecer uma cidade com 1 milhão de pessoas. O mesmo serviço pode ser feito por pouco mais de meia turbina de Itaipu.

Com a casa de força quase em funcionamento, a população de Aimorés sofre a expectativa da mudança da paisagem pelo desvio do leito do rio. Uma comissão formada por moradores reclama da forma como a obra está sendo executada. “Não somos contra a hidrelétrica, mas sim contra a execução sem uma compensação honesta”, explica Rogério Rocha, dentista da cidade e coordenador do grupo. “Nunca houve no Brasil um empreendimento que diminuísse a vazão de água de um rio em área urbana com tanta violência”, completa.

O desvio fará o rio Doce em frente a Aimorés ficar com uma vazão mínima de 16 metros cúbicos por segundo e máxima de 39 metros cúbicos por segundo. “É um filete de água se comparado com o rio durante a cheia, quando ultrapassa 1.000 metros cúbicos por segundo”, diz Rogério. Não é o que pensam os responsáveis pelo projeto. “Será a mesma vazão da época da seca que, nessa região, dura oito meses”, argumenta Ricardo Martins Alves, gerente ambiental do consórcio.


Mesmo com aprovação total do Ibama, a construção da hidrelétrica traz ainda outras preocupações para os moradores. Entre elas, a proliferação dos mosquitos vetores de doenças como dengue e febre amarela, como conseqüência do lançamento de esgoto da cidade num rio 90% menor. “Nosso medo é que a porta da nossa casa se torne um depósito para insetos transmissores de doenças e pegue uma população totalmente despreparada”, explica o médico Luiz Carlos Bello. “Nenhum hidrólogo pode prever o que vai acontecer quando o rio for desviado”, completa.

O consórcio garante que a qualidade da água não vai mudar depois que a hidrelétrica estiver em funcionamento. Hoje a água do rio Doce é qualificada como de classe 2, o que significa que precisa apenas de um processo de filtragem e uso de cloro para abastecer os seres humanos, irrigar as plantações e matar a sede do gado.

Para manter o rio Doce com essa qualidade em frente a Aimorés, o consórcio promete ampliar o tratamento de esgoto da cidade, que hoje alcança 80% das casas. Também promete, uma vez por semana, “dar um banho” na calha seca do rio, abrindo um pouco as comportas. Um estudo preliminar garante que as doenças causadas por mosquitos não vão aumentar.

O controle da qualidade da água passa também pela manutenção mínima e satisfatória da vida dos peixes no rio Doce. O consórcio assinou um convênio com os pescadores artesanais da região. Eles terão de mudar os pontos de pesca e até mesmo a forma de capturar os animais, por conta da diminuição do nível do rio. Pelo convênio, a associação vai ganhar uma sede e cada pescador um crédito 11.500 reais.

Promessas de lado, o projeto é único no Brasil. Para gerar energia, a hidrelétrica vai desviar 10 quilômetros do leito do rio Doce, o equivalente a 1,17% de sua extensão total, na área urbana de Aimorés. “Passei a vida com o rio Doce na porta da minha casa. O consórcio vai pagar para eu apagar minha memória?”, pergunta Jaeder Vieira, gerente do Instituto Terra, ONG ambiental do fotógrafo Sebastião Salgado, com sede em Aimorés.


Mesmo assim, como é regra no Brasil, o rio é mal cuidado. Ao longo dos anos, com o desmatamento das florestas e a conseqüente destruição de nascentes, a profundidade média do rio Doce diminuiu drasticamente. Nos anos 60 e 70, a média era de 2,5 metros. Hoje, está em 70 a 80 centímetros. À história da redução do rio Doce, soma-se agora uma mudança significativa: pelo menos por 10 quilômetros, ele não seguirá mais o caminho aberto pelas águas em milhares de anos.

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