Com a ajuda das Forças Armadas, o foguetório da guerra publicitária entre a Prefeitura do Rio e o Ministério da Saúde começa a chamuscar quem nada tem a ver com a crise nos hospitais do Rio de Janeiro. Uma bala perdida caiu esta semana no Campo de Santana, um jardim histórico, desenhado no século XIX pelo botânico Auguste Glaziou, que é o último território verde no cinzento formigueiro da Avenida Presidente Vargas, no Centro da cidade.
No meio do traçado paisagístico arquitetado pelo francês Glaziou no Segundo Reinado, entre figueiras e baobás centenários, os interventores querem plantar 11 tendas da Marinha para servir de hospital de campanha a serviço do Ministério da Saúde. Isto se o Ibama acatar a decisão da Justiça que na noite de terça-feira, 22 de março, liberou a área para servir de cenário à coreografia da crise, atropelando a resistência do prefeito César Maia.
A idéia é desafogar a demanda pelo hospital Souza Aguiar, que fica em frente ao Campo de Santana e passou às mãos dos delegados do Ministério da Saúde, mandados ao Rio de Janeiro para acabar com as filas do atendimento e, de quebra, tirar da fila de demissionários o ministro Humberto Costa. Será o segundo “hospital de campanha” da intervenção na cidade. A expressão refere-se às unidades móveis de saúde utilizadas em tempos de guerra. É bem o caso. A questão é saber o porquê da escolha do Campo de Santana para virar praça dos aflitos e desamparados da saúde pública nacional.
Foi tudo muito rápido. Até sexta-feira à noite, alega a Prefeitura, não se tinha notícia das intenções do Ministério da Saúde. Ao que tudo indica, na segunda, dia 21, o ofício amanheceu sobre a mesa do prefeito e em seguida foi divulgada a nota oficial em que César Maia classifica o pedido como “um crime contra a Cidade” e lembra que o Campo de Santana é tombado como patrimônio histórico-cultural do Rio de Janeiro. No dia seguinte, a pinimba já estava na Justiça.
Por que não em outro lugar?, pergunta o prefeito na nota, citando como alternativas próximas o pátio do Comando Militar do Leste, a área interditada do Hospital dos Servidores, o pátio do Arquivo Nacional e o do próprio Souza Aguiar. Ele mesmo responde, jogando para o inimigo a pecha que sempre lhe coube bem: “Isso é que é factóide. Em outro lugar apareceria menos”.
Por meio de sua assessoria, o coordenador da intervenção federal, Sérgio Cortes, disse contar com “um laudo técnico” da Marinha atestando que o Parque tem as melhores condições de infra-estrutura para receber o movimento excedente do hospital. Mas a Fundação Parques e Jardins, que não só administra o Campo de Santana como está sediada dentro dele, diz não ter visto nem sombra de técnicos analisando a área. A bem da verdade, houve sim uma visita ao Parque, mas na segunda-feira, portanto depois de deflagrada a guerra, e mesmo assim se tratou de uma inspeção “extra-oficial”. Uma comissão composta por uma tenente e sete fuzileiros navais ficou cerca de meia hora por lá, conversou sobre o formato em U da disposição das tendas bem no meio do Parque, confabulou sobre a necessidade de instalar um gerador de energia e foi-se embora. Deixou para trás a dúvida sobre de onde virá a água que vão usar, se para a jardinagem cotidiana a administração precisa bombeá-la dos lagos.
Antes que seja tarde, é bom que o carioca saiba o que está entregando aos militares. Outrora Campo da Cidade, região de brejos e pântanos afastada da urbanização e ocupada apenas por negros e mulatos, no século XVIII virou Campo de São Domingos, nome de uma das várias igrejas que começaram a ser erguidas na redondeza. Junto com elas vieram as ruas e, com a chegada da Família Real ao Brasil, em 1808, a escolha daquele belo campo, já drenado e aterrado, como palco de solenidades importantes. Tornado Campo de Santana (em homenagem à irmandade que passou a controlar as construções no lugar), o vasto espaço virou cenário da História do Brasil. Foram lá a Aclamação de D. João VI como Rei de Portugal, Brasil e Algarves (1818), o Dia do Fico e a Aclamação de D. Pedro I como Imperador (1822), o Juramento de D. Pedro II (1840). Já com suas formas atuais – produzidas em sete anos de trabalho paisagístico, entre 1873 e 1880 – o Campo de Santana abrigou a Proclamação da República (1889), a Revolução de 1930, a deposição de Vargas em 1945 e as agitações do golpe de 1964.
Tão notória quanto a história do Parque é a obra de seu idealizador. Glaziou chegou ao Brasil em 1858 para coordenar a Diretoria de Parques e Jardins da Casa Imperial. Sua primeira missão foi desenhar o Passeio Público, em 1862. Em seguida dedicou-se a uma série de lugares que moldaram as feições da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Glaziou assinou, entre outros projetos, o da Praça Tiradentes, do Largo de São Francisco, dos Jardins do Palácio do Catete, dos Jardim da Casa da Marquesa de Santos, do jardim do Palácio Imperial de Petrópolis, do Parque São Clemente em Nova Friburgo, da Praça D. Pedro II (atual Praça XV) e do jardim da Quinta da Boa Vista.
Não à toa, a Fundação Parques e Jardins classifica o Campo de Santana como “parque de contemplação”. São 155 mil metros quadrados de jardim urbano, com estátuas, monumentos, fontes e chafarizes históricos entre composições de espécies de flora exóticas e nativas, habitado por uma fauna pacata. Nos lagos há peixes, tartarugas, patos, gansos e marrecos. Em volta deles, pavões, cotias e micos, além das aves visitantes, como garças, irerês e sabiás. Isso sem falar na profusão de gatos abandonados e cachorros à beira da morte que são deixados lá por seus donos ou quem os encontra na rua. É na companhia desses bichos, e de suas prováveis doenças, que o Ministério da Saúde quer botar sua fila diária de 600 pessoas.
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