Reportagens

O que pode ser feito – com Wanderley Guilherme dos Santos

O sociólogo Wanderley Guilherme dos Santos rejeita o pessimismo quando o assunto é o Brasil. E critica o fundamentalismo de alguns biólogos e ambientalistas.

Talvez esta seja a entrevista que menos falou dos problemas ambientais concretos que o país enfrenta. Mas certamente foi uma das que mais ajudou a compreender suas causas históricas, políticas e conjunturais. Das teorias evolucionistas, que prevêem o desaparecimento da espécie humana para daqui a 64 bilhões de anos, à urgência da presença do estado na Amazônia e em todo o país, o sociólogo Wanderley Guilherme dos Santos liga os pontos da lógica com rigor acadêmico, e rechaça o discurso ambientalista pré-fabricado. Quebra a cara quem tentar dobrá-lo quanto à preponderância dos princípios éticos para justificar a preservação ambiental. Ele diz que, no máximo, o ambientalismo pode se escorar em “preferências estéticas”. Melhor é deixar-se guiar por suas agudas percepções sociológicas, pois elas ensinam muito sobre o que precisa ser feito para aproveitar o momento de caos que o país atravessa na produção de mudanças benéficas. O Estado brasileiro está morto? Sim. Mas isso não é um ponto final. No meio ambiente e em todos os demais desafios da vida nacional, a questão é identificar as oportunidades que existem. “O que pode ser feito?”, é o que pergunta Wanderley para sair de sinucas conceituais e filosóficas, enquanto arma para nós, que acreditamos piamente na preservação ambiental, as sinucas práticas.

Por que o biólogo briga tanto com o sociólogo?

Wanderley: Vamos fazer uma distinção caricatural entre os biólogos fundamentalistas e os experimentalistas. Os biólogos que brigam com os sociólogos são os fundamentalistas. E não brigam apenas com os sociólogos, brigam também com os físicos, porque para eles tudo o que acontece no mundo são superestruturas sobrepostas do que acontece lá nas relações químicas fundamentais do que é vivo. O sociólogo é mais fácil de levar os cascudos, porque a imprecisão de sua área é muito parecida com a do biólogo.

Os biólogos brigam entre eles também, não é?

Wanderley: Brigam muito entre eles. Na biologia, na paleontologia e em todas as disciplinas que tiveram seu impulso a partir da teoria da evolução, o mapa da ignorância é extraordinariamente grande. Considerando os problemas que eles se dedicam a tratar e a resolver, o mapa da ignorância é maior do que o mapa da ignorância da sociologia ou da política. Até se explica, porque é um universo que foi aberto recentemente, em que o período de vigência de hipóteses aceitas pela comunidade é curtíssimo. Na época em que comecei a ler sobre evolução, evolucionismo, DNA, essas coisas, me deparei com uma tese que era aceita pelos biólogos, mas extremamente esquisita. Eles diziam que nas fitas quilométricas do DNA havia pequenos trechos em que era possível decodificar alguma coisa relevante, e o resto era lixo, eles chamavam de lixo. Se é verdade que a natureza é extremamente funcional, não pode botar quilômetros de lixo para dar uma pequena parcela de informação. Agora já chegaram à conclusão de que o restante das fitas do DNA não é lixo coisíssima nenhuma. O que era considerado lixo é na verdade ignorância, como é natural: “Retira tudo aquilo ali que a gente não sabe o que é”.

No evolucionismo há correntes irreconciliáveis?

Wanderley: Há hipóteses que do ponto de vista estritamente conceitual são aceitáveis, mas que não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Em certas questões é difícil antecipar que algum dia você terá, por evidência empírica, a solução do debate. Por exemplo, os evolucionistas do tipo gradualistas, dos diversos elos perdidos, e os evolucionistas paleontólogos, que conservam a teoria digamos dialética, ou seja, que entendem a evolução como algo que se dá a partir de certos momentos-chave de ruptura. Para os dois grupos inexistem provas definitivas que sustentem suas hipóteses. Enquanto não se acha nada que prove que não existe um elo intermediário, e que portanto a cadeia evolutiva vai ficar completa, sem buracos, um grupo continua a procurar os elos perdidos, e outro diz que eles não existem. Isso é uma falha da disciplina e da pesquisa, não é das teses. Quando você encontrava uma coisa que parecia tipicamente de ruptura – e já foram encontradas algumas – os gradualistas diziam: “Parece ruptura, mas é que você não encontrou o elo intermediário que levou a isso”.

Essa discussão parece esotérica, mas tem a ver com o livre arbítrio: não tem nada que possamos fazer porque a evolução está toda pré-programada? Ou as sociedades escolhem entre fracassar ou ter sucesso?

Wanderley: Ao longo do tempo, e agora me refiro ao tempo em profundidade, que é uma coisa vertiginosa, é incontável o número de espécies que desapareceram. O fenômeno de desaparecimento de espécies é corriqueiro, no longuíssimo prazo astronômico e paleológico. E esta é uma pergunta que não sei se algum dia poderá ser respondida: elas desapareceram por impossibilidade de coordenar uma ação conjunta, ou por causa natural, ou por conflito na disputa com outras espécies? Na nossa espécie, certamente não pode faltar coordenação. Não havendo coordenação da ação coletiva, o que eu não faço, o outro vai e faz. Talvez a espécie humana, tanto quanto se sabe dado o nosso egocentrismo e antropocentrismo, seja a única que reflita sobre isso. Eu estava lendo no mês passado na Prospect um artigo interessantíssimo de Michio Kaku, um dos idealizadores da teoria dos strings

Desculpe, mas o que é a teoria dos strings?

Wanderley: Ela afirma que a estrutura última da matéria não é nem quântica, são vibrações apenas. Nada que tenha formato ou matéria. E aparece harmonia nisso, condensações de certos tipos de vibrações. Estarmos todos juntos aqui é uma forma de vibração pública, como a vibração de um violão. Essa teoria também é muito controversa porque supõe um mundo de universos paralelos e, dependendo de certas soluções, o que restaria para a espécie humana daqui a 64 bilhões de anos seria ir para outra dimensão, porque esta aqui está condenada. É total perda de tempo tentar fazer alguma coisa por este universo. Você tem que estudar a teoria de strings, das cordas, para encontrar uma porta para outro universo, porque este aqui, adeus.

Se o mundo vai acabar de qualquer maneira, o esforço de conservar perde o sentido?

Wanderley: Não necessariamente. Tem gente que acha que vai acabar mas que é preciso tomar providências para adiar o fim ao máximo. Em vez de 64 bilhões de anos, 64 bilhões e 3 meses. E eu concordo que se deve fazer isso. Mas colocar a discussão na perspectiva de sobrevivência do universo é pouco produtivo. É um argumento que escapa à escala humana. Se esperarmos chegar aos 64 bilhões de anos para tomar providências, é um jogo perdido de saída. Tem que trazer a idéia de preservação para uma escala administrável.

A solução não é essencialmente ética? Não depende de encarar a pergunta “Em que universo eu prefiro viver”?

Wanderley: Tenho muitas dúvidas. A princípio não queremos viver em um mundo de podridão ou escrotidão. Mas eu não sei se esse mundo da escrotidão depois vai dar em alguma coisa interessante. Ninguém sabe. Em experiências anteriores a porcaria foi indispensável para se chegar aonde não é porcaria. Outro argumento é o de que a porcaria vai num crescendo e contamina o que não é porcaria. Qualquer um desses raciocínios não tem nenhum fundamento. É uma questão de crença. A poluição do ar pode produzir alguma coisa positiva em termos evolucionários? Alguém pode até garantir que vai, mas nós temos argumentos fortes para dizer que isto não deve acontecer. Mas é difícil atribuir ao que existe uma função causal, de que aquilo vai tornar o mundo ainda pior. É difícil provar isso.

Mas há exemplos de ciclos recentes, de curto prazo, em que se tivéssemos cuidado melhor da situação ela não teria afetado a qualidade de vida que temos hoje.

Wanderley: Este argumento procede porque você retira do longuíssimo prazo o problema da sobrevivência em geral e pensa em um caso específico. Uma coisa é discutir o problema do arrasto de camarão para a sociedade, por exemplo. Outra é discutir se daqui a alguns anos a espécie vai desaparecer, o que é muito complicado.

Como termina o ciclo humano: vamos acabar com o planeta ou vamos sumir e deixá-lo em paz?

Wanderley: Não há nenhuma teoria evolucionista que se comprometa em responder isso. Você não sabe durante esses bilhões de anos como é que a evolução vai se dar. Não há nenhum fim transcendente fazendo parte da programação da humanidade. Se a programação da humanidade vai acabar mesmo com o planeta ou se suicidar, não há como fazer essa previsão.

Seu argumento sobre a ignorância é usado pelo novo ambientalismo para dizer o seguinte: “Quando a gente não sabe o que pode acontecer, é melhor não arriscar”. É o caso dos transgênicos.

Wanderley: Olha, não acredite em ninguém que, não sendo ambientalista, defenda isso com firmeza. Porque senão nada nesse mundo seria feito. Teríamos parado antes do fogo, já pensou se eles fossem ecologistas? Como provar que o fogo não vai produzir catástrofes? Ninguém pode provar o não, isso é logicamente um alçapão, uma armadilha. Até dá para levantar dúvidas razoáveis de que pode acontecer tal coisa, mas como provar que não, que não vai acontecer? Eu não aceito isso, começo a ficar sufocado. Sabe o que apareceu outro dia na Austrália? Um celacanto que havia desaparecido há não sei quantos milhões de anos. Questões ambientais localizadas não se tratam de ética, mas de preferência. Qualquer tipo de preferência. A estética, por exemplo.

Então não é possível passar da teoria geral da sobrevivência das espécies para casos específicos?

Wanderley: Há uma tese muito interessante do Richard Lewontin em que ele diz que o problema de sobrevivência da espécie humana em particular e da vida no planeta Terra é complicado porque várias espécies que desapareceram ou que estão prestes a desaparecer não podem ser recuperadas, reflorestadas, refeitas. Os ingredientes que são indispensáveis à produção da vida foram consumidos integralmente ou em grandes quantidades. O que já se tomou de oxigênio, carbono, hidrogênio, torna inviável se repetir o universo. São mudanças que levaram milhões de anos para serem feitas. Isso nos permite trazer para o concreto: vamos reflorestar a Amazônia? Não tem como reflorestar, re-ozonizar ou re-carbonizar coisa nenhuma. Esse é um argumento que eu acho que deveria permanentemente chamar a atenção.

O que acha da disputa entre países ricos e pobres em torno da responsabilidade de reduzir as emissões de carbono?

Wanderley: A posição do Brasil nessa discussão de Kyoto, de não querer reduzir a poluição porque os ricos poluem desde a Revolução Industrial, é um argumento velho e estúpido. Isso só vai antecipar em alguns bilhões de anos o nosso desaparecimento. Mas tem de haver uma coordenação nesse processo. Pelo menos Kyoto saiu, não é? Sem os Estados Unidos, mas o que já se avançou é muita coisa, o pessoal fez realmente uma programação de redução e de compra de carbono.

Kyoto, a expansão da soja, o desmatamento, os transgênicos… Quem acompanha a área ambiental no Brasil tem a clara sensação de que a bagunça está aumentando.

Wanderley: A teoria diz que numa sociedade em rápida transformação aumenta a taxa de caos. Os extremos de causalidades vão mudando e isso dá a oportunidade de aparecer tudo o que há de bom e tudo o que há de ruim. Se considerarmos a informação correta e bem refletida sobre a experiência dos países desenvolvidos, vamos ver que não foi nada dessa maravilha, dessa serenidade, dessa beleza, dessa racionalidade que nós engolimos. Tanto que nos Estados Unidos teve muita corrupção, com fraude eleitoral até na eleição do Kennedy…

Mas isso não é um princípio, não nos dá direito a fazer todo tipo de lambança.

Wanderley: Só acho que nada justifica a gente achar tudo bom nos outros, e que aqui podia ser diferente. Podia ser diferente se provarem que podia ser diferente. Todas as evidências são contra. Nos Estados Unidos, na Inglaterra. Na Itália são 50 anos de esculhambação e o país hoje está em sexto ou sétimo lugar na economia mundial, mas continua a maior esculhambação do mundo. Dependendo do aspecto que você tome como relevante, a Itália não precisou acabar com nenhuma esculhambação e é um dos países de maior sucesso da Segunda Guerra para cá. Isso nos leva de volta ao argumento de que pode acontecer alguma coisa no caos. Qual é o nosso caos, afinal? O que pode ser feito ou não? Sempre existe o caos, em maior ou menor taxa. Tudo depende de onde você focaliza o seu argumento para ver se as coisas estão funcionando racionalmente ou se não vão funcionar. Essa abordagem holística e generalista é pouco produtiva e esconde mais do que revela. Dizer que o Brasil é um caos é totalmente nulo. Essa história de que o país é uma merda desde que foi descoberto é complicada, porque não tinha bonde, não tinha carro, não tinha nada disso. Como pode ser a mesma coisa há 500 anos? Mas falar sobre as possibilidades, sobre o que eu posso fazer amanhã, é que incomoda. Indo para o específico: o que está acontecendo na Amazônia é irreversível? Ou há alguma coisa a ser feita?

Sempre há algo a ser feito. O problema é que, não apenas na área ambiental, a autoridade pública não está presente no território nacional. Você concorda que vivemos um colapso estatal?

Wanderley: O estado brasileiro é um estado em vias de subdesenvolvimento galopante. Na década de 50 a população brasileira aceita como portadora de direitos era muito pequena comparada à população total. E para o grupo dos portadores de direitos, a classe média nas cidades, o Estado conseguia assegurar cidadania. Os rejeitados pelo Estado representavam uma proporção mínima nesse grupo. Me recordo que uma vez, em Santa Tereza, na década de 50, eu tinha marcado com uma namorada e estava lá encostado esperando um bonde quando chegaram dois policiais: “O senhor tem identidade?”. Eu disse que tinha, sim senhor, mostrei minha carteira de estudante e eles me desejaram boa noite. Eles iam mexer com estudante? Claro que não, eu tinha o direito de ir e vir tranqüilamente porque não estava fazendo nada. Acontece que a população legitimamente incluída hoje é a população inteira. A capacidade do Estado de assegurar isso é metade ou menos da metade do que era para assegurar 100% dos direitos daqueles 20% que eram os cidadãos da década de 50. Isto significa um subdesenvolvimento institucional do Estado. Em vários estados, como Rondônia, na região Norte e em parte do Centro-Oeste, o que acontece é um faroeste dos séculos XVIII e XIX americano. Não tem lei, é um estado da natureza, você não pode exercer seu direito constitucional porque o Estado não é capaz de assegurá-lo. Ninguém aceita existir escravo, mas todo mundo sabe que tem. E não é só lá, nas grandes cidades também estamos sendo tolhidos de direitos. Você deixa de sair de casa em várias circunstâncias. Em outras eu chamo um táxi, não vou com meu carro porque sei que depois não vou ter onde estacionar, como todo mundo faz. Como se resolve isso? Não faço idéia, só sei que piora a cada dia, o que significa dizer que o custo de refazer é cada vez maior. Esse retrato me assusta mais do que os 64 bilhões de anos.

Como você analisa a corrupção no Brasil? Ela é um aspecto importante para entender a ineficiência do Estado?

Wanderley: Em primeiro lugar, a ineficiência do Estado diz respeito à sua total incapacidade de se fazer presente. Ele só é eficiente naquilo que é “auto-cumprível”, ou seja, tributação e taxação. O que não é auto-aplicável ele tem cada vez menos capacidade de fazer. Quanto à corrupção, onde existem órgãos públicos e onde existe dinheiro formam-se grupos de interesse, e isso é normal, nada de novo. Isso vem de uma cumplicidade do Estado com os grupos privilegiados da área? Pode ser que em algum caso específico esta seja a razão exclusiva, mas não acredito que em todos os casos seja por isso. Se nós acompanharmos os últimos 20 anos, em muitos casos simplesmente o Estado brasileiro foi desestruturado por completo. Toda vez que você fala em contratar, seja na Polícia Federal ou onde for, aqueles que acham que o Estado não funciona reclamam que isso vai aumentar os gastos públicos. E se você for ver a estrutura do pessoal no Estado brasileiro, ele é inchado de motoristas, assessores, guardas de posto de saúde, e o número de pessoal qualificado para poder garantir a execução de alguma coisa é mínimo. Quando no início do governo Lula eles disseram que iam contratar 50 mil pessoas, foi um Deus nos acuda. Aí começam as comparações com um pedaço pequenininho dos Estados Unidos, “Lá tem não sei quantos funcionários públicos”. O que é mentira, porque só o governo central dos Estados Unidos tem 200 mil cargos de confiança.

E quando muda o partido tem que mudar tudo?

Wanderley: Claro, são cargos de confiança. Obviamente que o presidente não conhece 200 mil pessoas de confiança, portanto vai haver interesses influenciando. Aí não tem jeito. Mas você tem que ter pelo menos um grupo de pessoas em quem possa confiar para reduzir o máximo possível a esculhambação deste treco. No Brasil, você tem que começar a recuperar o pessoal em termos de modus operandi. A Polícia Federal está sendo um espetáculo nisso. Me lembro que, na campanha [de Lula, em 2002], o Zé Dirceu deu uma entrevista dizendo barbaridades da Polícia Federal. Isso é estúpido porque vai ser um aliado importantíssimo de qualquer governo decente. Hoje a Polícia Federal é um agente político cívico fundamental no Brasil. Em outras milhões de coisas, o Estado não está capacitado. Mas ele não tem o desejo de estar? Lula não tem o desejo? Acredito que ele até gostaria, mas não sabe. Esse ou aquele ministro não gostaria que suas coisas funcionassem? Claro que gostaria, mas tem algumas áreas que dependem de competência profissional. Temos que lembrar que há muitos impedimentos criados historicamente. O Estado veio sendo feito do jeito que é, a política brasileira do jeito que é, tudo isso foi precipitado de nossas decisões anteriores. Era inevitável? Não.

Por quê?

Tomando como exemplo a Amazônia. O que vamos fazer hoje em relação à Amazônia? Há três ou quatro coisas possíveis a fazer, fora as impossíveis. Entre essas três ou quatro coisas, vamos poder fazer uma. As outras duas ou três saem fora para nunca mais. Dessa ação que fizemos, abre-se a possibilidade para mais três, uma delas é escolhida e as outras duas saem. Quando chegamos ao final do processo, só vemos as coisas que foram feitas, então parece inevitável. Esquecemos que em cada um daqueles momentos tínhamos outras duas ou três escolhas possíveis, que por razões conjunturais foram descartadas.

Se o Estado enfrenta essa crise, em que esfera social o momento de caos pode estar sendo benéfico para o país?

Wanderley: O caos está sendo positivo na vida política associativa. A sociedade se tornou plural, se tornou de massa, se tornou diversificada, bastante organizada e associativa. E as instituições políticas, no que diz respeito à estrutura federal do poder? Estão do mesmo jeito, não acompanharam a sociedade. O país ficou subdesenvolvido do ponto de vista institucional porque não acompanhou o que a sociedade exige. Mas no nosso processo de mobilização social está faltando uma coisa que é extraordinariamente importante nos Estados Unidos e na Inglaterra: a autonomia da imprensa local. Não temos uma imprensa autônoma, capaz de viver independentemente do Estado. Aqui todos os segmentos são dependentes do Estado. Isto faz a maior diferença em relação aos Estados Unidos. Lá a sociedade é autônoma em relação ao Estado, pode inclusive ter uma participação eleitoral baixíssima porque a maioria dela não está nem aí para o que o governo vai fazer.

Mas no Brasil não temos um problema de cultura cívica?

Wanderley: Temos sim. Acabei de ler um livro assustador de um cara chamado James Bennett: “The Anglosphere Challenge”, com o subtítulo “Por que os países de língua inglesa vão dominar o século XXI”. Formou-se uma sociedade com certa cultura cívica favorável ao pluralismo, à independência, ao progresso e ao avanço tecnológico. Ao longo do tempo viram que a área da “anglo-esfera” adquiriu isso numa velocidade tal, que agora não tem pra mais ninguém. Sobretudo na era da singularidade, da nanotecnologia. Já passou o período em que alguém inventava alguma coisa e daqui a dez anos o outro chegava lá. A velocidade agora é outra, a tecnologia vai ditar os rumos de tudo. No comando está quem controla a tecnologia, quem é a favor da tecnologia, quem se favorece dela. O desafio é esse: o poder tecnológico está na anglo-esfera, mas e o resto do mundo, faz o quê? Nada, que se adapte. É o que eles dizem. Que o resto do mundo tem que se adaptar. Mas não dizem isso de forma agressiva, estão propondo o melhor caminho. O livro vale a pena. Mas esse negócio da cultura cívica sempre foi uma questão que me invocou. Como é que essa coisa se faz ou evolui? Qual é a nossa cultura cívica? Não sabemos. Por conta inclusive dessa bagunça generalizada introduzida nos últimos 30 anos, muita coisa tem mudado, muita coisa tem aparecido. Certas coisas, que eram apenas embriões, têm se desenvolvido também. A cultura cívica brasileira ainda é predominantemente dependente do estado e estritamente predatória, mas está surgindo algo que é utilitário e não é predatório. Eu quero ganhar o meu, mas quero saber onde posso ganhar, quero investir numa boa.

Uma novidade é a proliferação das ongs.

Wanderley: Sabe qual foi o tipo de ong que mais cresceu nos últimos cinco anos? Foi a de direitos humanos. Justamente aquela que não funciona pelo estado, que não quer depender do estado, não quer nada dali. O que ela faz é aporrinhar o estado. É interessante isso.

O que acha desses fenômenos que mobilizam a sociedade, chamam a atenção da mídia, mas não resultam em nada? Coisas do tipo “Abraço à Lagoa”…

Wanderley: As pessoas acham que porque nomes valorosos e famosos de celebridades abraçaram a Lagoa, isso teria o poder causal de através da imprensa resolver o problema, então no dia seguinte vão cuidar da vida. Ninguém quer perder mais de um domingo. Na verdade, o que falta é figura do líder. É gente articulando soluções. Liderar não é fácil. Mesmo que você tenha talento e disposição, as pessoas têm de estar dispostas a pagar o preço de serem lideradas. É preciso deixar de ir ao cinema uma ou duas vezes por semana por causa das reuniões, tem o custo financeiro de fazer uma vaquinha para produzir faixas, tem o custo de oportunidade, porque você poderia estar fazendo outra coisa mais agradável ao seu prazer pessoal. Tem que abrir mão de uma série de coisas por uma causa que não é só sua, mas comum. Aí, chega um dia que eu não vou à reunião porque sei que o outro vai, e estou a fim de ir ao cinema. No outro dia, sei que aquela outra vai estar lá, então vou ao teatro porque ganhei o convite e um amigo meu está dirigindo a peça. Em dois meses não tem mais grupo. E como é uma ação voluntária, não funciona sob coação. Por isso o voluntariado é muito difícil…

Depende também da confiança no líder.

Wanderley: Eu diria que mais importante é a desconfiança da eficácia da ação. Não é desconfiar do líder e sim da instituição, de sua capacidade causal e do impacto que tem. Há uma série enorme de fatores causais que para a sociedade são importantes, o que leva a uma diversidade incrível de instituições querendo fazer diferença. O que é muito bom. Quanto mais a gente achar que é complicado, melhor. Porque aí se abre um montão de gavetinhas onde se pode fazer alguma coisa. Se o presidente não vale nada você tem que fazer com que ele faça alguma coisa. A pior coisa é quando a gente se deixa arrasar pelos problemas.

No meio ambientalista essa fragmentação da atuação coletiva aparece claramente. É comum ver três movimentos sobre o mesmo assunto, um desconfiando do outro, o que diminui o poder da ação.

Wanderley: E isso também tem em sociedades complexas. Tem uma quantidade enorme de associações negras nos EUA que se engalfinham. Esta é uma questão complexa pra burro. O que apareceram de associações na África antes do fim do colonialismo! Todo mundo estava numa só, e uma vez terminado o colonialismo começaram a brigar. Você já tinha ouvido falar dos tutsis e hutus da Nigéria antes do fim da colonização? Depois que a Nigéria ficou independente apareceram os dois grupos que se matam, é um genocídio. Não são só adversários, eles se matam.

Onde é que o setor privado está sendo mais prejudicial à democracia?

Wanderley: Um problema sério atualmente são nossas corporações. A dos advogados, por exemplo. O que eles já conseguiram em matéria de esvaziar todos os mecanismos de democratização, de desconcentração, desburocratização, não é brincadeira. Os Juizados Especiais já estão com dificuldade de funcionar porque os advogados estão exigindo, já tem até projeto de lei para isso, que seja obrigatória a assessoria de um advogado. O que é exatamente o contrário da idéia do Juizado Especial. Os médicos agora estão exigindo que todos os fisioterapeutas tenham diploma de médico. São as nossas profissões imperiais avançando sobre as outras. Fiquei apavorado com esse negócio dos advogados.

Falando em tragédias: agora que o ser humano já é reconhecido como uma das forças naturais capazes de causar catástrofes, estamos diante de um problema ético? Porque os estragos locais são também um problema para o planeta.

Wanderley: O impacto disso é exatamente na liberdade pública. O máximo do pensamento liberal do século XIX, com Stuart Mill, um grande liberal e defensor das liberdades, e que já vinha de Kant, no final do século XVIII, dizia o seguinte: todo mundo é autônomo, é responsável e tem o direito de usar a sua liberdade da maneira que achar conveniente. Ele não pode ser tolhido por ninguém em nome do mal que ele pode se causar, e fim de papo. Ele pode e deve ser tolhido em nome do mal que possa causar a outros, pela conseqüência de sua ação. Naquela circunstância, em meados do século XIX, isso era suficiente. Hoje, qualquer coisa que você faça, vocês aí tirando minhas fotografias, o flash já atingiu os olhos, não se sabe o que essa seqüência de flashes pode me provocar. Se você aceitar que um estado interfira no que você faz considerando conseqüências negativas que possam vir a se abater sobre o outro, não sobra nada. Ou seja, era uma premissa liberal que no contexto do século XIX era uma decisão muito forte sobre a liberdade individual, que permitia dizer que você não podia mexer em costumes, cada um faz o que bem entender. Porque as inovações vêm exatamente das minorias. Qualquer inovação e progresso geral parte de quem é minoria, é o que desvia da norma. Então tem que deixar acontecer para ver se vira maioria. Mas hoje é melhor esquecer a tese do Stuart Mill, não é recomendável seguir com ela.

Tem governos que aderem a ela até hoje…

Wanderley: Fazem pior. Fazem aquilo em nome do que é melhor para você e não deixam você fazer certas coisas porque acham que é ruim para você.

  • Frederico Brandini

    Oceanógrafo e líder Avina que participou de várias expedições do Programa Antártico Brasileiro. Trabalhou como Professor do C...

  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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