A infindável briga entre ambientalistas e a Monsanto foi parar num palco inusitado, o Ministério da Cultura (MinC). E acabou respingando na Educação.
Atendendo à pressão de organizações não-governamentais, o MinC mandou recolher materiais educativos que foram distribuídos a 5.409 escolas públicas em cinco estados. São revistas, cartazes e guias do professor do projeto “Janela para o Mundo”, produzidos pela editora Horizonte Geográfico com patrocínio da Monsanto, que obteve parte dos recursos pela Lei Rouanet, como isenção fiscal.
Monsanto é a gigante americana da soja transgênica, e como tal representa para a maioria dos ambientalistas o demônio em forma de empresa. Quando chegou à internet a denúncia de que ela estava doutrinando crianças nas escolas sobre princípios de “agricultura e meio ambiente”, a polêmica se propagou rapidamente.
A mensagem partiu do gabinete do deputado estadual Frei Sérgio Görgen, do PT gaúcho, há 15 dias. Informado da existência do material em escolas do estado, ele se indignou ao saber que recursos públicos estavam financiando o que chama de “propaganda da Monsanto”. “Se o governo tem dinheiro para pagar uma publicação sobre agricultura, não vai pedir justamente a uma empresa que tem pesadíssimos interesses no ramo para fazer o material. Não é esse o sentido da lei de incentivo à cultura”, critica Frei Sérgio. Bastou se deparar com a logomarca da empresa na capa do material e passar os olhos no texto para o deputado fazer soar o alarme nos campos virtuais do debate ambientalista.
Na lista de discussão da Rede Brasileira de Jornalistas Ambientais (RBJA) o fator MinC foi deixado de lado. Ali, o que se viu foi um acalorado debate sobre o dilema ético de aceitar dinheiro de empresas consideradas inimigas do meio ambiente, mesmo que para causas nobres. Foi o que fez a editora Horizonte Geográfico (HG), conhecida por produzir bons materiais sobre biodiversidade, desenvolvimento sustentável, ecoturismo e educação ambiental. Em 2004, seu principal projeto, “Janela para o mundo”, recebeu o patrocínio da Coinbra, agroindústria especializada na exportação de grãos. Entre os materiais produzidos e distribuídos para as escolas no ano passado, estavam uma reportagem e um cartaz intitulados “Soja: o grão que conquistou o país”.
A parceria com a Monsanto começou agora em março de 2005, traduzida em um financiamento de 480 mil reais (dos quais 30% ganharam isenção fiscal) para a produção de 11 mil kits e sua distribuição para escolas públicas da Bahia, Distrito Federal, Goiás, Rio Grande do Sul e Mato Grosso. O chamado kit Monsanto é composto de 6 exemplares da revista Horizonte Geográfico, 2 exemplares de um pôster sobre “Culturas da Terra no Brasil” e um Guia de Atividades para os professores.
Quase que simultaneamente, o protesto do deputado Frei Sérgio chegou ao MinC, motivou uma carta do Greenpeace com críticas ao projeto, fazer nascer uma campanha na Rede Brasileira de Educação Ambiental (REBEA) que resultou em mais de cem e-mails cobrando uma resposta do Ministério, e explodiu na sede da Horizonte Geográfico, em São Paulo. “Ficamos completamente revoltados com o teor das primeiras denúncias, que não tinham qualquer fundamento. As pessoas nem viram o material”, diz Peter Milko, responsável pelo projeto “Janela para o Mundo”. Ele diz que das 540 páginas de materiais, apenas 8 falam de agricultura, e que não há nos textos nenhuma apologia aos transgênicos.
Para o Greenpeace, isso não é o bastante. Em carta aberta à editora, a ong diz que o tema “Agricultura e Conservação Ambiental”, presente no Guia dos Professores (clique para ver, em pdf), não poderia omitir o fato de que a agricultura industrial é a “principal causa do desmatamento de florestas nativas, perda de biodiversidade, destruição de ecossistemas, assoreamento ou poluição de rios, e a contaminação de alimentos com substâncias químicas tóxicas”.
Já o pôster “Culturas da Terra no Brasil” (clique para ver, em pdf) traz um box reservado à biotecnologia, em que apresenta um exemplo positivo de soja transgênica. Ao lado de ilustrações de cadeias de DNA, o texto diz que a tecnologia permite, por exemplo, introduzir genes de alga na soja, “criando uma variedade de soja enriquecida com Ômega 3 – tipo de gordura polinsaturada que diminui as taxas de triglicérides e colesterol do sangue”. O problema é que esta soja do bem ainda não existe, alerta o Greenpeace. Está em fase de estudos nos laboratórios da Monsanto.
Peter Milko, da Horizonte Geográfico, diz que os materiais não discutem os riscos da monocultura e dos transgênicos para o meio ambiente porque a intenção não é entrar em terreno polêmico. Mas a editora precisou enfrentar esses temas espinhosos dentro de casa antes de aceitar o novo patrocinador. Peter reconhece que houve “uma discussão interna grande” sobre os custos e benefícios de se aliar à Monsanto. Mas a parceria foi fechada sem culpa. “Chegamos à conclusão de que, como não houve nenhuma interferência do patrocinador, o material é uma contribuição isenta para aumentar o acesso à informação sobre vários temas, inclusive agricultura e meio ambiente”, explica. No site da Horizonte Geográfico, a relação não parece tão bem resolvida. Apesar de logo na capa uma chamada anunciar “A Riqueza da Soja”, nas páginas internas a editora omite de sua lista de patrocinadores e parceiros tanto a Monsanto quanto a Coinbra. (Depois de publicada esta reportagem, em 29/04, a referência à soja sumiu da página inicial do site)
Para a empresa de biotecnologia, não tem dilema. O diretor de Comunicação da Monsanto, Lúcio Mocsányi, diz que não houve qualquer ingerência no conteúdo, que não há no texto “nada nem a favor nem contra os transgênicos”, e que a referência à soja com Ômega 3, a que ainda não existe, foi proposital, “para usar um exemplo fora do campo comercial”. Aproveita para citar as outras atividades do projeto apoiadas pela empresa: oficinas de capacitação para 560 professores e distribuição das sementes mais cultivadas (entre elas café, laranja, arroz, algodão, milho e soja) para as escolas fazerem experiências práticas. Lúcio lembra ainda que o “Janela para o mundo” é apenas uma das iniciativas sócio-ambientais da Monsanto. Afinal, seu slogan é “Alimentos em abundância em um meio ambiente saudável”.
E o MinC nessa história? Para se poupar de entrar em fogo cruzado ambientalista, foi buscar critérios técnicos para justificar a proibição dos materiais e cancelar o financiamento. Achou vários. A começar pelo fato de o tema agricultura não ser mencionado na proposta original aprovada. Segundo o Ministério, o projeto se comprometeu a realizar reportagens sobre conteúdos de História, Geografia, Patrimônio Histórico e “Outros”. Mas dos 21 temas acordados (de Iemanjá aos 100 anos de JK, da cerâmica marajoara ao carnaval carioca), só três viraram reportagens nas edições distribuídas para as escolas. Enquanto isso a agricultura, que não estava no script cultural do projeto, ganhou duas reportagens e mais cartazes e guia do professor.
É isso que o MinC alega na carta do dia 25 de abril, em que determina a suspensão da distribuição das revistas que contêm reportagens sobre agricultura – uma de 2003 e outra de 2005 – e dos outros materiais didáticos, além do recolhimento do que já chegou às escolas. Os custos das ações não poderão mais ser pagos com recursos da Lei de Incentivo à Cultura, e o dinheiro já captado terá que voltar para o Fundo. O Ministério também pede que os conteúdos acertados e não produzidos sejam inseridos na próxima fase do projeto, que será na Região Sul. Com esse último adendo, o MinC dá o seu recado: apesar do puxão de orelha, não fechou as portas dos recursos públicos da Cultura para a Monsanto e a Horizonte Geográfico.
Peter Milko informa que a Horizonte Geográfico fará sua defesa na semana que vem, mas adianta que a editora considera “a determinação de recolhimento de qualquer revista um ato contra a livre expressão”. Tanto ele quanto o diretor de Comunicação da Monsanto afirmam não ter recebido nenhum comunicado oficial do Ministério. Os dois souberam da decisão pela internet. Onde tudo começou.
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