Como é que surgiu a idéia do Um Pé de Quê?
Regina – Começou por causa da Benedita, minha filha. Eu fazia o Brasil Legal e o Programa Legal e a gente viajava o tempo todo. Todo mundo diz que o ser humano passa um terço da sua vida dormindo, a gente falava que passava um terço da vida na van. Eram deslocamentos muito grandes e a Benedita era pequena e ficava de saco cheio de ficar no carro. Aí você começa falando “Olha o boi!”, “Olha a vaca!”, mas não varia muito: boi, vaca, no máximo um cavalo. Aí eu comecei a dizer: “Tá vendo aquilo ali? È dali que vem a banana”, “Olha a bananeira”, “Olha a mangueira”. E ela começou a perguntar mais. E eu não tinha certeza. Até conhecia mais ou menos porque morei nos anos 80 e 90 aqui na Gávea, em frente ao Jardim Botânico. Fui ao Jardim Botânico quase todo dia durante 15, 20 anos. Também tinha o hábito de ler, de perguntar, sempre pegava pra conversar alguém que tinha mais paciência, pessoas geniais do Jardim Botânico, todas elas também estão na gênese do Um Pé de Quê?. Como a doutora Graziela Barroso, que era uma botânica que formou muita gente. Mas a Benedita perguntava e às vezes eu falava errado: “Acho que é uma amendoeira”, e ela falava “Não, olha só, a folha não é redonda”, ela ia reparando umas coisas. Eu chegava em casa e olhava, comprei o livro do Harri Lorenzi e depois outros, comecei assim…
Estamos falando de que ano?
Regina – De 1993, 1994. O Um Pé de Quê? é de 2000. Quer dizer, fui me preparando durante os anos 90, fui gostando disso. E envolvi a equipe dos meus programas. Volta e meia você chega numa cidade onde já esteve mil vezes, tipo Belo Horizonte, e que tem umas árvores que não te dizem nada. Mas um dia você chega na época da floração de sibipirunas, e a cidade inteira está amarela. Algumas árvores têm a ver com determinadas cidades. Em Porto Alegre tem uma história que eu acho linda. Todo ano, de setembro para outubro, tem a Feira do Livro, que é um acontecimento importante para os gaúchos, o pessoal lá gosta de se dizer super intelectual. A praça onde acontece a Feira tem muito jacarandá mimoso, que tem aquela florzinha roxa, quase azul, é uma árvore muito bonita. As pessoas se sentam, abrem os livros na praça para ler, e é uma lembrança de todo intelectual gaúcho que o livro fica cheio de florzinha azul e de florzinha roxa, porque coincide com a época do jacarandá mimoso. As histórias das cidades que a gente chegava com o programa também eram muito ligadas às árvores. Virou meio que uma sabatina com a equipe: eu perguntava “Que árvore é essa?”. Uma sibipiruna, por exemplo, que eu já tinha ensinado em outro lugar. Se eles erravam tinham que pagar uma prenda.
No início nem todos deviam se interessar muito…
Regina – A equipe inteira não tinha nenhum interesse. Achavam chato no começo. Mas a partir do momento que você sabe um pouquinho, já fica empolgado quando reconhece uma árvore. È aquele exemplo clássico que a gente usava para explicar o Um Pé de Quê?: se você não conhece nenhuma árvore, olha em volta e é tudo um borrão. Tipo o Miguilim [personagem de Guimarães Rosa]. Você põe os óculos e começa a ver a árvore. Aí você vai acertando os óculos, começa a ver as folhas, depois as pequenas diferenças entre aquelas folhas. Numa mata que você olha assim, qualquer encosta, a primeira coisa que reconhece são as embaúbas, aquela fácil, a copa cinza, subindo para Petrópolis qualquer criança vê. Aí você vai reconhecendo outra, outra, outra, daqui, dali, e vai te dando um foco e parece que a sua vida inteira entrou em foco. Você era míope e não sabia. Aquilo vai dando uma coisa… A equipe toda começou a ter essa sensação. Ainda não existia o programa, ainda era o Brasil legal.
E a Benedita, que idade tinha?
Regina – Ela tinha uns 4 anos. Foi uma idade em que eu cuidei de duas coisas: ela aprender todas as árvores e resolver que ia ser botafoguense. Foram duas coisas que me deram muito trabalho. Ela ia comigo de carrinho, todo dia, para o Jardim Botânico. E isso virou uma brincadeira mesmo, era o tempo todo adivinhar as árvores. As que eu não sabia, tinha que achar em casa. Chegamos a fazer vários álbuns, como se fossem álbuns de figurinha, em que a Benedita colava as folhas e escrevia o nome da planta. Para uma garota de 4 anos, ela conhecia um monte de árvores. E a gente sempre achou linda aquela casa amarela grande, onde foi o Ministério da Agricultura e hoje fica a presidência do Jardim Botânico. Eu sempre imaginava como seria maravilhoso fazer uma festa de criança lá. E não podia, era proibidissímo. Mas aconteceu o seguinte, eu fui lá para resolver uma coisa, porque sempre fui meio prefeita descalça do Jardim Botânico, e na época o presidente era o professor Vanderbilt [Duarte de Barros], que ficou um tempão, era um velhinho. A Benedita entrou na sala dele, aqueles móveis antigões, de jacarandá escuro, e aí olhou em cima da mesa, onde tinha um fruto partido. Ela olhou para mim e falou “Mãe, olha a metade de uma munguba”. A munguba não é um fruto manjado, é aquele que parece um cacau, tem na rua Jardim Botânico toda e em frente ao Fórum Ipanema. Dá uma flor cheirosa que parece uma explosão. É a Pachira aquatica, mas chamam de munguba. Então a Benedita disse “Olha a metade de uma munguba” e o cara né, velhinho, imagina… deu uma biblioteca de Botânica para ela, mandava livros todo dia. E falou: “Você vai fazer o seu aniversário aqui no Jardim Botânico”.
A festa foi naquela casa?
Regina – Foi. Uma festa maravilhosa, a gente fez tudo enfeitado com flores e frutos e folhas. O brinde eram aquelas folhas que caem secas da palmeira e ficam iguais a um cavalinho, sabe? A gente botou uma rédea em cada um e todas as crianças ganharam. Foi daí que nasceu o Um Pé de Quê?, exatamente disso. A Lucia Araújo e o Hugo Barreto me chamaram um dia no Canal Futura para conversar. Queriam que eu fizesse um programa de auditório com adolescentes, bem nos moldes do Serginho Groisman, com temas difíceis de serem abordados, tipo drogas ou sei lá, masturbação, aborto, qualquer coisa assim. Eu não fiquei muito tentada a fazer. Disse não, e assim como todos os programas que fiz na minha vida, Brasil legal, Programa legal, sem nunca ter pensado naquele assunto, eu disse: “Não, mas eu tenho um programa ótimo. A gente podia fazer um programa de identificação de árvores brasileiras”. Porque nessas viagens, quando tinha uma árvore que eu não conhecia, só aqui no Rio eu descobria qual era. Eu perguntava para todo mundo no lugar. E achava que o cara da roça ia saber o nome da árvore, né? Perguntava: “Isso aqui é um pé de quê?”. Ele falava assim: “Ah, isso aí é um… ‘tiririm’”. Mas era tudo caô, entendeu? O cara chutava. E como a gente não sabe, acaba levando a sério. Depois, quando eu ia checar, via que era tudo meio errado. Também tem nomes populares que vão mudando regionalmente. Só dois tipos de pessoa sabiam todos os nomes das árvores. Ou era um madeireiro, que tinha cortado tudo naquela região, ou uma mãe de santo ou um pai de santo.
Por que mãe de santo ou pai de santo?
Regina – Incrível, porque eles mantêm uma roça e precisam das plantas para as oferendas.
Então aquilo tem uma ciência, o cara não coloca a oferenda no pé de qualquer árvore?
Regina – Não só ele coloca no pé de árvores específicas, como rende homenagens às árvores. Existem muitas árvores sagradas que atendem a diferentes tipos de coisas que você precisa. E quase todos os trabalhos são feitos com folha, se não tiver folha não tem orixá. O Pierre Verger tem um livro chamado Ewé [“Ewé: o uso das plantas na sociedade ioruba”. São Paulo: Companhia das Letras, 1995], que eu recomendo enfaticamente ao navegantes. É um livro lindíssimo, onde ele explica todas as plantas do candomblé e o uso de cada planta para cada trabalho. Quando você chega num lugar que ainda tem candomblé, que ainda não tem a Igreja Universal, as pessoas ligadas àquilo andam no mato e quando acham uma folhinha que já não é vista há muito tempo ficam felicíssimas, pra elas é super importante. Então só tinha essas duas opções, o madeireiro e o cara do candomblé, ninguém mais sabia nada.
Foi o que você explicou para a Futura.
Regina – Foi, mas eles se preocuparam de botânica ser um assunto chato. “Poucas pessoas se interessam, é muito específico, não combina com o horário que a gente está precisando” e tal.
Como você convenceu eles?
Regina – Eu disse que não precisava ser só botânica. Cada árvore que me vem à cabeça, só vem porque me lembra de alguma coisa que aconteceu na minha vida, de alguma utilidade que tem para alguém, de uma cidade que eu fui, de uma viagem que eu fiz. Você nunca lembra da árvore sozinha. Não sou uma enciclopédia que fica lembrando árvores com nomes. Tudo vem linkado com alguma coisa. Se a gente abrir esses links… por exemplo: juazeiro. Evidente que você lembra do Luiz Gonzaga. Você pensa no juazeiro e ouve uma sanfona. Cada árvore naturalmente oferece um assunto.
A Futura banca as viagens pelo Brasil?
Regina – Até o ano passado, bancou. Mas as viagens são muito caras e longas, chegou uma hora que a Futura não tinha grana para a equipe ficar um tempão na Amazônia, por exemplo. Eles começaram a procurar parceiros, e no ano passado foi o Banco da Amazônia, por isso fizemos só com árvores da região. Este ano foi a Fundação S.O.S. Mata Atlântica, que estava achando meio fraca a comunicação deles com as pessoas comuns, que não entendem de preservação.
E olha que a Mata Atlântica é a mais popular de todas.
Regina – Exatamente por isso. Eles acham que porque a Mata Atlântica é praticamente urbana hoje em dia, e porque está muito perto da gente, tem uma vantagem porque você está vendo, não é uma coisa abstrata, mas ao mesmo tempo o grau de ameaça é muito maior. E também as pessoas não têm noção. Quando vêem uma restinga, não acham que aquilo é Mata Atlântica. Acabamos de fazer um programa sobre a Eugenia marambaiensis, que ainda nem está estudada. Quem está descrevendo ela é o Marcelo Costa, um menino muito legal do Jardim Botânico. Tem uns 20 e poucos anos, é um gatinho que pega onda na Marambaia e que também é botânico. Fui para a Marambaia com ele, fomos no mato e, claro que o lugar é lindo, mas você olha aquele cacto todo embrulhado com aquele monte de bromélia, orquídea, mas tudo embolado com muito espinho, se o cara vai fazer uma casa na praia, não tem nem dó de passar o facão e tirar tudo, uma pessoa ignorante. Não é como cortar um jequitibá, uma árvore frondosa. Aquilo ali parece já um lixo. Lindíssimo para quem conhece, e vai perceber as orquídeas, as bromélias. Mas olhando de longe é horrível, agressivo…
O programa mudou sua relação com o meio ambiente?
Regina – Ah, mudou. Mudou totalmente. É o problema da ignorância, que se estende a qualquer área. Eu não tinha a menor idéia. Não sabia, por exemplo, da ligação dos bichos com a flora. Agora começamos a estudar árvores dependem diretamente de algum animal. Por exemplo, tem várias figueiras que, se não tiver uma vespa x, não se reproduzem. Não existe outro inseto possível nem outra solução para aquilo. Se não tiver aquela vespa, não tem aquela árvore. Outro exemplo é a cutia. A cutia tem um papel incrível em bilhões de árvores. Aquele bicho que parece idiota é importantíssimo na minha vida. Ela come sementes e precisa enterrar o que não come, e assim vai plantando. Pega aquela semente aqui, leva para outro lugar, enterra um pouquinho mais longe. Eu tô dando o exemplo de dois bichos, mas tem zilhões o tempo todo fazendo isso. Não é só a polinização, é plantando mesmo, e o caminhar dos bichos para chegar no rio, o molhadinho que fica, o cocô que cai, tudo, enfim. Uma floresta saudável, grande, se você tirar todos os animais ela só dura dois anos. Acaba, zruf, acabou. Eu não tinha idéia de que era tão assim.
Quando é que você se deu conta da degradação ambiental que o país enfrenta?
Regina – A primeira impressão errada que eu tinha era de que foram os portugueses, os ingleses, os franceses que ferraram o Brasil em termos de recursos naturais. Mas se você vai, por exemplo, para o sul e vê o que uma madeireira destruiu nos anos 70, nos anos 80, quando eu era grande e a gente já ouvia a palavra ecologia, foram coisas devastadoras, gigantes. O primeiro susto que eu levei foi este. Ver que foi tão recente, que o pior aconteceu tão para cá.
Teve alguma experiência em que isso se concretizou pra você?
Regina – A gente foi fazer o programa da imbuia e uns outros programas no sul, Santa Catarina. O sul para mim é um lugar muito rico. Eu não acreditava que em Santa Catarina tinha um bolsão de miséria, de favela, de pobreza no pior grau possível. E de pobreza recente. Porque o que a gente conhece mesmo de pobreza, a maior injustiça social no Brasil, é o que foi feito com os negros que vieram da África, um problema que dá em tudo, nas favelas e nas pessoas que vieram do Nordeste para trabalhar nas cidades.
Mas pobre branco de olho azul é diferente.
Regina – É, pobre branco de olho azul, e culturalmente recente. Lá você vê uma comunidade que já tinha sido próspera no século XX, que funcionava bem e tinha mil tradições, culturalmente sólida, e está virando miserável. Eles não têm nem know-how de favela, como aqui no Rio. As favelas do Rio são tradicionais, fazem parte da história da cidade. Em Santa Catarina, não. Ali existia uma comunidade, depois eles passaram a viver da madeira, daquela madeireira que fez tudo, milhões de fábricas, transporte. Tudo para cortar a imbuia, uma árvore que tem o crescimento mais lento de todas. Para ser cortada, uma imbuia tem que ter uns mil anos. Os americanos que foram lá para explorar essa madeira ficaram o tempo que durou aquela floresta. Quando a floresta acaba, eles vão embora abruptamente, e deixam para trás, sem nada, as pessoas de lá, que já tinham uma cultura e viviam bem.
É o que acontece na Amazônia. O cara devasta e deixa um rastro de pobreza.
Regina – Mas, sem querer ser boba e otimista demais, também tem uma coisa que me impressiona. É como projetos não muito grandes, nem de uma mega-ong, com um pouquinho de trabalho já repercutem tanto. No Acre, no Amazonas, às vezes eu vejo aquelas pessoinhas naquela imensidão, trabalhando e conseguindo resultados. Eu sempre pensava assim: se eu fizer uma coisa agora, só os meus tataranetos vão usufruir. E não é. A natureza também tem respondido muito bem. É claro que tem outras coisas que são irreversíveis e trágicas. Mas muitos projetos têm uma velocidade que eu não imaginava que era possível. Isso é muito legal e muito animador. Eu acabei de fazer um programa sobre guanandi, uma árvore da mata atlântica que os índios plantaram ao longo de um rio em Corumbau, na Bahia. Ela puxa muita água, e foi trazendo água de tudo que é canto e criando condições para o rio voltar. Um rio que era absolutamente seco voltou ao nível de antes.
Tem alguma coisa em que você seja ambientalmente incorreta?
Regina – Meu maior problema é com água. Atualmente estou fazendo uma educação diária na minha casa. Comigo e com o porteiro. Porque eu sempre brinco, meu porteiro é do Piauí, de uma região muito seca, o Paulo. Eu falo: “Claro, né, Paulo, tu nunca viu água, agora quer ficar vendo o dia inteiro”. Fica com a mangueira aberta e aquilo para ele é um milagre. É igual você ficar vendo deus o dia inteiro. O cara quer ficar ali molhando a calçada. No Brasil as pessoas varrem a rua e a calçada com água. Aí eu vou, converso com cada porteiro, ando a praia inteira. É igual passarinho na gaiola. Passarinho na gaiola com porteiro, eu perdôo. O quarto do porteiro é muito pior do que a gaiola do passarinho. Ele mora dentro da garagem, cheio de monóxido, sem janela, num lugar horrível. Ele morava num lugar lindo e tem uma puta nostalgia, aquele passarinho é importante para ele culturalmente. É por isso que eu falo: passarinho na gaiola pra porteiro eu libero. Mas essa quantidade de água não tem condição. Água não é vassoura. Eu acho que a campanha boa era essa: “Água não é vassoura”. Mas eu tenho dificuldade, eu vejo como as crianças… O Hermano Viana me contou uma história ótima. Ele estava escovando os dentes e uma sobrinha dele entrou e a torneira estava aberta. A menina deu um grito apavorado, “O que é isso?!”. Ele não conseguia entender o que era, se tinha uma barata… “Vai acabar a água toda do mundo!”, deu gritos com ele, brigou, ele levou um puta susto. Eu não tive nenhuma educação ambiental para água. Eu mesma levo susto com o tempo do banho, me pego escovando o dente e vou falar alguma coisa com alguém e a torneira ficou aberta e tal. Então eu acho que o mais grave, não só para mim como também para o mundo, o mais grave é a água. Em termos de educação, se tivesse que escolher um foco seria a água. Junto com a água vem tudo. Pra ter a água tem que ter floresta e para ter floresta tem que ter bicho.
Esse negócio de conversar com o porteiro, você é sempre assim “prefeita”?
Regina – Eu sou… mas isso eu sempre fui. As pessoas perguntam se não é esquisito eu andar na rua e todo mundo me conhecer pelo nome, chamar. Mas era igualzinho quando eu tinha 5 anos, 6 anos. Na feira, em qualquer lugar que eu ia, as pessoas falavam “E aí, Regina”. Porque eu conversava até com poste. E eu acho que esse é o caminho. Você tem que tomar conta de tudo. Você sai do cinema Leblon e vê vários garotos do Teresiano ou da Escola Parque ou do Santo Agostinho. Os pequenininhos, bonitinhos, branquinhos. Se eles estivessem ali na porta do cinema cheirando cola, como tem todo dia garotos na porta, da mesma idade, você ia ter que tomar uma providência imediata. Imagina, mesmo que não fosse seu filho. Você vê o garoto com uniforme do Santo Agostinho cheirando cola, ia chamar alguém, dar um telefonema, qualquer coisa. Mas com aqueles meninos que cheiram cola na porta do cinema Leblon a gente não toma uma providência. Eu falo com Conselho Tutelar a cada coisa dessas. Não que tenha um resultado muito grande, mas tem que ter essa responsabilidade. Não importa se o cara é seu filho ou não, se ali é a sua casa ou já é a do vizinho, se é a rua. Aquilo que está no seu raio de visão é seu, você tem responsabilidade. Não é nem social, você tem responsabilidade humana. Daí vem esse negócio de prefeitinha…
Sua rua deve ser impecável.
Regina – Pois é, em 1986 eu fui morar na Gávea, no final da rua Major Rubens Vaz, ali na entrada do Jardim Botânico. A rua do lado tinha duas caçambas daquelas da Comlurb [Companhia de Limpeza Urbana do Rio], que vai juntando lixo. Não era de entulho, era de lixo mesmo, que antigamente tinha. Aí vinha o caminhão de noite e encaixava a bunda ali, sabe como é que é, né? Eu estava dormindo e o caminhão vinha e, além de fazer Rôôôô, Rôôôô, às 4, como ele era meio velho ele batia de bunda no muro do TRE, tinha um buraco enorme, até encaixar. Dava uma ré e batia, Bou! Até prender aquilo. E a quantidade de rato? Aquilo não tinha calçada, os ônibus entravam na Praça do Jóquei por dentro, loucos, alucinados, tinham afundado o asfalto. Quando fui morar ali eu pensei, o que é que eu vou fazer? Vou ficar todo dia reclamando? Primeiro reclamei normal, fui à Prefeitura, falei ó, aqui tá sem calçamento. Fui na Comlurb e falei ó, isso além de juntar ratos os caras chegam às 4 da manhã e quebram o negócio.
Você não era a atual Regina, não estava em televisão.
Regina – Ótima lembrança, porque todo mundo diz que eu consigo as coisas porque sou conhecida. Não, é porque eu tenho saco de ficar indo lá. Eu estava na televisão bem pouquinho, fazia Sítio do Picapau Amarelo. Aí eu fui na Fundação Parques e Jardins, e o diretor se chamava doutor Primavera. Parecia até coisa do Walt Disney. Era um velhinho e tinha aquela plaquinha escrito assim: “Doutor Primavera”. Fui a cada órgão competente para resolver aqueles problemas. E não aconteceu nada. Demorou um ano, dois anos, nada. Aí eu comecei a fazer as coisas. Primeiro plantei, mas eram árvores que tinham flor e eles falaram que o gabarito não permitia. Tiraram todas. “Aqui tem que ser oiti ou munguba, porque é da cota do Jardim Botânico”. Aí plantei os oitis, que você vai ver como estão enormes. Plantei toda aquela rua e plantei aquelas mungubas da rua Jardim Botânico. Calcei a rua, tirei as duas coisas da Comlurb, consertamos o muro do TRE, fizemos uma ilhota de pedra portuguesa para o ônibus passar por fora.
Como prefeita, o que você gostaria de fazer no Rio?
Regina – Como sonho… a Baía de Guanabara. Eu queria me ver boiando na Baía de Guanabara, sabe? Na água limpa. Água suja pra mim impacta mais do que desmatamento. Quando vou gravar na Ilha Fiscal, por exemplo, e a água fica batendo ali, o cheiro que vem da água, e quando você vê a viscosidade e a quantidade daquela praga de pet, saco plástico. E quando vem uma onda maior joga aquelas coisas de volta. Parece que o mar está vomitando aquele lixo todo, aquela nojeira. Eu fui a vida inteira para a Bahia de carro. Você passava pelo Espírito Santo, sul da Bahia, era lindo, e hoje em dia é um deserto. Cortaram a madeira toda. É horrível. Mas aquilo não me dá um negócio tão… eu não me sinto tão mal quanto com água suja.
Você mora em frente à praia. A praia hoje te choca?
Regina – Muito. Nunca pensei que em uma geração eu ia ter que dizer para a Benedita “Não entra na água”. Isso para mim é inconcebível. Mas isso, como já tem uns 20 anos, a gente vai criando mecanismos. Eu já olho a correnteza, se está jogando do Arpoador para o Leblon, tá ótimo para você cair na água. Se está jogando do Vidigal e pro Leblon, aí tá terrível. Não tem tratamento nenhum, aí tá muito sujo. Vejo vários fatores, há quantos dias não chove, anoto no papel todas essas coisas. Choveu, esquece, não vai nem na areia.
E as crianças se acostumam com isso, naturalizam, perdem a noção de que já foi diferente.
Regina – Isso é um problema. Tem que ter total conscientização de que aquilo não é normal e de que é possível recuperar o que era antes. Porque pode, na praia com certeza pode, então isso tem que ser ensinado. Eu fui adolescente e jovenzinha na época da ditadura. O que eu ouvia o dia inteiro era que não dava pra fazer nada. Se eu tivesse acreditado que não dava pra fazer nada, não teria feito o Asdrúbal, não teria feito nada do que eu fiz. Não teria virado nem uma adulta, quanto mais uma adulta feliz, porque tudo me dizia que eu não podia nada. Me diziam: “Isso é impossível, a censura nunca vai deixar isso passar, não”, “Você tinha que ver antes, a gente saía na rua, cantava qualquer música”, “Você não sabe o que era o Teatro de Arena”, “Você não sabe o que era o Teatro Oficina”… Bom, ou eu me matava, ou entrava pro hinduismo e falava numa outra encarnação, ou eu tinha que tratar da minha vida todo o dia. É o que eu digo para as pessoas mais novas. Você tem que arrumar uma solução para o seu dia fechar legal, entendeu? Conseguir dar um mergulho num dia que dá para dar um mergulho, e saber que você pode melhorar, que não é para ser daquele jeito.
Você já encontrou um madeireiro na sua vida?
Regina – Já encontrei uns dulcíssimos. É impressionante. O cara que corta, não o dono da empresa, mas o cara que corta conhece tudo, e tem uns que são muito legais. É quem conhece madeira mesmo no Brasil. Muitos se arrependem. Quando está no nível de uma pessoa, o madeireiro, em geral o cara não é um filho da puta. Ele está trabalhando para alguém ou não tem a menor noção, acha que aqueles recursos são totalmente inesgotáveis. É ignorante, entendeu? É como a caça. Há pouco tempo, aqui bem perto do Rio, depois de Lumiar, encontrei uns caras que eram uns amores e gostavam da natureza mesmo. Até porque eles caçavam, eles conheciam tudo, sabiam tudo. Agora está indo gente lá e explicando que não pode caçar. É difícil à beça, porque aquilo é atávico, mas ele é legal, ele vai querer. Alguns. Não tô dizendo todo mundo, não posso generalizar. Mas nunca é no nível de uma pessoa. Em geral é por ignorância. Eu tendo a achar que as pessoas são legais.
Qual o lugar mais feio que você viu de natureza no Brasil, do ponto de vista da devastação?
Regina – Não foi por devastação, mas foi o mais chocante porque o aspecto não era como eu imaginava. Eu não conhecia nada do interior de São Paulo, esse lado caipira, Mazzaropi. Sempre achei tão engraçadinho, aquele cara com aquele chapeuzinho de palha, pescando na beira do rio. Aí tem a igrejinha, Pirapora do Bom Jesus, “sou caipira pirapora”, tudo aquilo. Agora tem uma estrada-parque ali, que é uma iniciativa super interessante. As árvores são lindas e o lugar também. Isso é muito apavorante. O lugar parece lindo.
Parece?
Regina – É. A paisagem é totalmente bucólica, as pessoas ainda são assim, tem aquelas velhinhas indo para a igreja, tem o caipira. Aí você vai até o rio. Num dia normal, não é naquele dia que sai no Jornal Nacional. Já viu aquela espuma que sai no Jornal Nacional? Eles estão muito perto de São Paulo, e todo o lixo químico e esgoto de São Paulo está muito perto deles. Eles não fazem sujeira, até pelo tamanho da população, lá não tem indústria nenhuma. E aquela imundice que vem de São Paulo cria, primeiro, ilhas de pet. Então tem aquele mesmo cara, o mesmo Mazaroppi sentado, comendo a pamonha, pescando, e aqui uma ilha de pet. Mas ilha mesmo, de você andar em cima, de todo o tipo de sujeira, de plástico. Todas as árvores e raízes e galhos das árvores da beira do rio, ficam desesperadamente filtrando, que é função da mata ciliar, mas não filtrar saco plástico. Parece que o lugar tem mil garças, mas olhando de perto é saco plástico. Os sacos vão pegando nos galhos, vai ficando grudado de plástico dos dois lados, um monte de pet no meio e a espuma vem de repente. E começa a vir um cheiro, um cheiro, que você vai ficando meio enjoado, meio tonto. Eu estava numa loja que vende santinhos, aí as velhinhas, com aquele talquinho, com aquela roupinha indo para a igreja, falavam assim: “Aí, hoje não tá dá dando, a espuma tá demais, o cheiro, tô fincando tão enjoada, tô passando mal”. Aí você vai na ponte e não dá para atravessar porque está coberta pela espuma. Aquela espuma que você vê no Jornal Nacional uma vez, lá dá quase todo dia.
Que horror.
Regina – É tétrico. Quando é um lugar que sempre foi mata, como na Amazônia, e alguém devasta, é terrível. Mas ali tinha gente morando, uma cultura, a igreja, o pescadorzinho, a musica caipira, o rio lindo até hoje, as árvores. Tudo parece ok, mas quando você vai chegando perto parece um filme de terror: o saco plástico, a garrafa pet, o cheiro e depois a espuma.
E essas pessoas não mostravam nenhum tipo de revolta, de querer mudar a situação?
Regina – Os filhos agora têm alguma noção. Ou pais jovens, pessoas no máximo até 40 anos. Com mais do que isso o cara acha que aquilo dali ou é conjuntural ou que vai passar ou é ignorante e não tem noção do que é aquilo. Os mais velhos ficam arrasados, todos falam que não tem mais pesca. Mas não entendem como aconteceu, por que aconteceu. E tem um grupo de revoltados que em geral é chato…
Os ecochatos.
Regina – Tem um pouco de ecochatos, ou alguém da universidade, outros três ou quatro que ouviram o galo cantar e não sabem onde. Ficam querendo que a pessoa não pise na grama. Eu reclamo muito aqui no Jardim Botânico. Todos os seguranças, se você botar o pé na grama, correm apitando. Aí eu chamo eles e falo que a pessoa deve pisar na grama. Ela não deve fazer o mesmo percurso todo dia porque aí vai matar a grama. Mas ir lá, ler o nome dá árvore, isso é uma coisa ótima.
Na favela eles têm algum grau de conscientização ambiental?
Regina – Não.
Nada?
Regina – Nada, zero. Quando tem uma árvore na favela, ela é muito escondida. Algumas ninguém tem coragem de cortar porque são muito grandes. Nas favelas antigas, por exemplo. Deixaram a árvore lá e as casas vão crescendo aqui, aqui, aqui, aqui. Ela acaba embutida num lugar sem ter pra onde crescer. As pessoas nem vêem ela ali. Não serve nem como ponto de referência, nem como sombra, está totalmente asfixiada pelas casas. A relação da favela com a natureza, com as árvores, é nada.
Nem em termos paisagísticos?
Regina – Não. Tem uma coisa que é um amor, que é linda, em favela mais antiga. Favela que tem vó. O lugar é muito pequeno, mas elas vão entupindo de vasinhos e fazendo uns cercadinhos na frente, tipo canteirinho, e vai ficando cheio de plantinha. Remete a quando ela morava no Nordeste, em geral é favela de nordestino. A Rocinha, por exemplo. Outro tema bom pra gente falar é poda e retirada de árvores.
Por quê?
Regina – Ontem mesmo um amigo meu americano ficou horas tentando explicar que na Ataufo de Paiva, lá no final do Leblon, estavam tentando retirar várias árvores. Os comerciantes dizem que está muito escuro, que é perigoso de noite. Então os motivos que levam as pessoas a cortar árvores na cidade agora são: ladrão, porque tapa o poste, entope calha, suja carro, quebra calçada, motivos assim… Eu fui a Piracicaba e foi horrível, menino, saímos na capa de todos os jornais de Piracicaba, eu parecia uma possuída. Por mais que esteja calejada, tem uns lugares que chego e me descontrolo. Lá tem uma faculdade importantíssima, uma universidade de Agronomia de onde saíram várias pessoas importantes de toda essa área de paisagismo, botânica. A cidade faz 60 graus, é calor qualquer época do ano. Aí eu perguntei como é que não tinha nenhuma árvore na cidade. Comecei a olhar, tinha aqueles canteirinhos de árvore, mas com a árvore cortada, sabe? Ué, que estranho. Aí comecei a ver outro, e outro, e outro. A gente ia fazer um programa sobre a sibipiruna. Piracicaba já foi quase toda arborizada com sipibirunas. Porque em determinado momento eles fizeram uma lei do tipo “você não paga imposto se plantar uma árvore”. Aí todo mundo foi no horto da cidade, tinha poucas espécies lá, mas tinha um horto vizinho que estava em promoção. Tinha 200 mil mudas de sibipiruna. Aí todo mundo comprou sibipiruna, a cidade ficou cheia de sibipiruna. Sabe qual é a sibipiruna? Ela dá uma florzinha amarela, com uma lancinha, que fica só em cima da copa e solta um melzinho, fica cheia de abelhinha. E esse melzinho suja as coisas. Realmente o carro fica uma eca. Mas você quer o quê? Árvore é um ser vivo. Vai lavar o carro, né? Aí falaram que a raiz dela é terrível, quebra tudo, como se fosse um figo que se alastra. E não era, as pessoas é que não sabem plantar. A pessoa abre um buraquinho e planta uma árvore enorme num canteirinho desse tamanho. Então eles ficavam loucos quando aparecia uma rachadura na calçada ou sujava o carro e foram cortando, cortando. E a cidade, que era inteira arborizada de árvores enormes, ficou sem árvores. Aí eu fiquei louca. Chamei os jornais todos, mostrei a prefeitura cortando. Porque a pessoa reclama e o cara da prefeitura vai lá e corta. Aí o cara da prefeitura ficou puto, era o cara que tinha levado a gente para fazer o programa.
Você já viu mudanças concretas que tenham sido provocadas pelo programa?
Regina – Eu gosto muito de atuar em áreas que só dependem da pessoa. Nessa área ambiental é mais difícil ser uma coisa que só dependa de você. Tudo bem, poupar água só depende de você. Xaxim, é um ótimo exemplo. Todos os meus amigos não tinham a menor idéia que não deviam comprar xaxim, nem usar xaxim. Você acredita que aqui na Praça do Jóquei vendem xaxim? E que um negócio daquele, que vem normalmente com a samambaia, para chegar àquele tamanho tem que ser uma Dicksonia de no mínimo 50 anos?
E é proibido, está em extinção.
Regina – É proibido, proibidíssimo. Proibido o transporte já, para não ter nem dúvida, o corte e a comercialização.
Vocês foram atrás disso, procuraram o Ibama?
Regina – Demais. Cada estado tinha legislação diferente, foi uma lenha. E com todas as pessoas que eu falei, o cara ali do Jóquei, por exemplo, não vende mais…
Por causa do programa.
Regina – Do programa. Neste caso dá pra ter uma resposta rápida, porque depende do pessoal urbano. A gente fez uma série para o Fantástico que acabou esbarrando no ambientalismo também. Não jogar lixo na rua, não parar o carro em cima da calçada, essas coisas. E eu fiquei impressionada como você tem uma resposta rápida. Qualquer pessoa que eu vejo passando com o cachorro, por exemplo, na rua, faz assim para mim ó, e mostra o saco plástico. É horrível porque você vira aquele fiscal, aquela polícia.
E ainda tem que ficar vendo saquinho com cocô.
Regina – É, “Olha só, tô com o saquinho”. Mas você sente que tem uma resposta aí. Não são questões muito grandes, abrangentes. São coisas que dependem só da pessoa. Muito legal. É o que eu digo: quando é só ignorância, e a pessoa é legal, a partir do momento que ela toma conhecimento, ela diz “Não brinca! Mas, é mesmo? Não pode? Ah, meu Deus, eu fazia”. Isso eu ouvi muito. As pessoas ficam contentes de poder ajudar, de contribuir de alguma maneira.
Conte o caso de Camaçari, na Bahia. É o nome de uma árvore, não é?
Regina – Isso. É assim pelo Brasil todo. Na Bahia, quase todas as cidades, toda a toponímia é nome de árvore, de planta. Mas como as árvores não estão mais lá, as pessoas nem têm noção que aquilo é nome de árvore. Às vezes a árvore está nos seus últimos suspiros, e tem como recuperar. É o caso de Camaçari. A cidade é Camaçari, o rio se chama Camaçari, a árvore principal era Camaçari. Mas como a árvore dependia do rio, e o rio tá um troço… então não tem mais a árvore. A gente perguntou na rede escolar, na prefeitura, em todos os lugares, o que era camaçari, o nome da cidade, e ninguém sabia. Até que alguém disse: é uma árvore. “Ah, uma árvore. Você conhece a árvore?”. Ninguém conhecia. Até o dia em que a gente estava numa escola pública e tinha uma menina, uma fofa, muito pretinha como não tem mais hoje em dia. Todo mundo já casou em algum lugar com um branco. Mas ela era daquelas que você vê que mora no mato. Ela falou: “Eu sei, eu conheço”. Sério? Ela falou: “É”. Ela também ficou orgulhosa, porque eu acho que era a mais caipira, a mais pobre, a mais preta do colégio. Ela virou a estrelíssima e a gente foi com alguns alunos onde o pai dela disse que tinha. Andamos, andamos, andamos. Aí tinha um corregozinho, um lugar muito bonito, de mata fechada. Na beira desse corregozinho tinha um camaçari enorme, uma árvore linda.
Uma árvore grande.
Regina – Grande, muito bonita. Esse cara, o pai dela, eu sempre digo que ele faz umas 200 ongs. Ele não sabe nem a terminologia Mata Atlântica, mas fala “Essas árvore tudo que tá acabando, eu vou tirando muda”. Ele tem um viveiro e faz tudo por conta própria. É um homem com nove filhos, miserável, vive na rocinha dele de mandioca, um homem incrível que sabe um monte de coisas e cuida e tal.
No que vai dar o Um Pé de Quê? Ele se esgota um dia?
Regina – Sei lá, acho que não. Eu me imagino bem velhinha, já comprei até um cajado, andando e fazendo Um Pé de Quê?. Eu acho inesgotável. Só de espécies brasileiras são 1.500 descritas, com história. A gente está em 100. Até chegar a 1.500… E vão abrindo outros caminhos. Por exemplo, eu tenho vontade de fazer sobre árvore e arquitetura, árvore e cidade, árvore e os bichos. Ninguém tem intenção de parar a série. A Futura gosta, a gente gosta também. E é um programa tão querido, é impressionante. Só passa no canal a cabo, mas para muitos lugares ela é aberta, entra na parabólica. Tudo que é favela, sitiozinho ou propriedade rural pequena tem parabólica, então ele é muito visto e não tem nenhum controle de ibope. Hoje em dia, mesmo que eu esteja na Globo fazendo alguma coisa, chego nos lugares e as pessoas falam: “É o Pé de Quê?”. É muito mais importante do que os outros, em qualquer lugar. Uma vez um cara tava passando a cavalo num lugar ermo e falou. Eu disse “É mentira, que árvore você viu?”, e ele sabia tudo.
Como é feito o programa?
Regina – Desde o ano passado está muito mais organizado, porque tem patrocínio especifico. Mas no início era muito mais kamikaze, a gente chegava, ninguém nunca tinha ido lá, era Indiana Jones. Primeiro escolhemos as árvores que eu gostava mais, que eu achava mais bonitas, as que o Estevão [Ciavatta, diretor do programa e marido de Regina] gostava. O consultor era o Harri Lorenzi, ainda é. A gente faz uma primeira lista, submete ao Lorenzi, ele diz as áreas de ocorrência. Se o lugar é muito longe a gente tenta achar alguma outra árvore. Fomos lá em Corumbau fazer essa guanandi, dos índios, e acabamos fazendo a berimba, que deu um programa ótimo. É a árvore que faz o berimbau. Então o método varia muito. Tem o problema da época de floração e frutificação, porque a gente só grava no primeiro semestre. Tem árvores que a gente não fez até hoje, pitanga, porque a gente nunca grava nessa época. Caju, a gente fez sem fruta.
Qual é o saldo pessoal dessa experiência?
Regina – Eu vou te dizer uma coisa, o melhor do Um Pé de Quê? são as pessoas que eu conheci. Incrível isso. Brasil legal era maravilhoso, você conhece pessoas lindas, mas pode conhecer um chato de galocha, um vodu, um cara do mal. Um Pé de Quê? é um atestado de que árvore é legal.
E quem gosta de árvore é legal.
Regina – São pessoas em um outro nível, têm uma relação com a vida completamente diferente. Você pode botar o nome que você quiser, espiritualizadas ou desenvolvidas ou o que quer que seja. Olha, são 5 anos, e tem raras e honrosas exceções do cara chato. Em geral o chato tá na ong grande, que dá exposição, tá entendendo? É o cara que quer ganhar holofote.
É o contato com a natureza que muda as pessoas?
Regina – Com certeza. Com árvore você tem que ter tempo, paciência, saco, perseverança. É outro ritmo. Você vê os ciclos de outra maneira. A noção de processo que qualquer pessoa leva 30 anos de análise para entender. Uma hora vem uma coisa, depois vem outra, daqui a pouquinho vai acontecer isso, você tem noção de que aquilo está acontecendo, ainda não acabou, que daqui a pouco vai acontecer outra coisa. Hoje em dia a gente está tão distante da natureza que já não tem isso nem com lua mais, nem com dia e noite. Se quiser você acende a luz. Mas quando você começa a fazer essa observação, parece que está redescobrindo cada coisa que já existe, como aquilo funciona, todos os mecanismos.
Acontece com você?
Regina – Eu peguei umas sementes ali em frente ao restaurante Porcão Rio’s. Tem um lago do Burle Marx que no meio tem uma ilha com um lótus. Um dia eu fui comer lá, fiquei apaixonada porque a semente parece um chuveirinho, cheia de bolinhas. Arregacei a calça e entrei para pegar as sementes. Aí plantei na minha casa, fiz umas caixas no lago e botei os lótus. Achei que não ia acontecer nada, e de repente, é que nem couve, aquele talo grosso que não demora pra crescer. Eu tinha ficado uns dias sem ir e quando cheguei tava com umas três ou quatro folhonas rosas, com aquele negócio grande, aquele miolo que depois fica seco, amarelo. Lótus, né? Aquele do krishna. Eu fiquei chapada. Tem uma palafitazinha no meio do lago, e eu fico ali. Eu estava lendo, e comecei a ouvir um barulho assim: Bóórrrrr, brrr. Eu falei, “Gente, que bicho é esse?”. Brrrrrrrrr, brrrrr, brrr. E o som não era igual, ia variando. Olhei em todos os negócios, já estava com a escada tentando ver na telha, e não conseguia descobrir o barulho. Estava chovendo, e cada folha dessas é peludinha, redonda. É um negócio redondão, aí a chuva vai caindo e faz uma bola como se fosse de mercúrio quando quebra o termômetro. Fica lindo aquele monte de água. E quando junta uma quantidade de água a folha não agüenta e faz um biquinho com o peso, e derruba. Se a folha de baixo for menor, cai um pouquinho nela, que enche, cai um pouquinho na outra, um pouquinho na outra. As outras, que ainda não completaram, ficam esperando. Então fez brrrrrrr, na outra fez brrrr, na outra não fez barulho nenhum. Quando cair mais chuva e encher o suficiente ela vai fazer brr, mais um pouquinho, compatível com a altura e a quantidade de água que ela reteve. É igualzinho aqueles negócios que vende em loja cafona esotérica, aquelas fontes japonesas que cai uma coisa na outra. Todos esses sistemas de moinhos de água que você viu em todos os filmes, tá tudo ali, funciona igualzinho. È uma fábrica funcionando com todo o design e o barulho incrível. Isso devia ser 9 da manhã. Eu fiquei ali até 9 da noite, impressionadíssima. Mas eu vou pouco a Angra, muito menos do que eu gostaria. Esses velhinhos, o cara só faz isso. O cara que observa, que estuda uma bromélia, fica ali horas esperando vir um beija-flor. É por isso que eu não posso ver um cara mais velhinho que saio logo puxando papo… –
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