Não foi fácil marcar uma tarde para uma conversa com o biólogo Fábio Olmos. Apaixonado pelo trabalho de campo, ele tem uma agenda cheia que o leva para muito longe da brutal urbanidade do seu apartamento no centro da cidade de São Paulo. Conduzir a entrevista, por outro lado, foi fácil: o seu currículo online no sistema do CNPq dá a ficha completa sobre uma carreira que já passou pela academia, pelo serviço público e pela consultoria em meio ambiente. E Olmos é um ótimo entrevistado. Bom frasista, dono de opiniões fortes e argumentação embasada, ele fala tanto e diz coisas tão inteligentes que O Eco decidiu publicar sua entrevista em duas partes. Nesta, a primeira, ele conta como nasceu cedo sua paixão por bichos, em especial as aves, discute o horror do ser humano às florestas e afirma que as relações do Brasil com sua natureza são típicas de um país incivilizado.
Eco – Você é biólogo e birdwatcher (observador de pássaros)…
Fábio Olmos – Olha, vamos pensar como é que a biologia surgiu como ciência. Surgiu dessa coisa do amador interessado, da história natural. Você pega a Inglaterra, fim do século 17, século 18, 19 e até hoje. Você tem todos aqueles amadores, que eram clérigos, médicos, advogados que tinham interesse pelo mundo natural, colecionavam rochas, besouros, colecionavam e olhavam passarinhos, e essa é uma tradição que existe até hoje. O bird watching, ou as excursões botânicas, que até hoje existem. Na Internet tem empresas que fazem “botanical tours.” E por aí vai. São todas filhas desse interesse do amador que acabou se profissionalizando e virando ciência. Aquela coisa de catalogar seja lá o que for, acabou virando história natural e chegou a ser disciplina acadêmica. A Niède Guidon é formada em história natural…
Eco – O Paulo Nogueira-Neto também.
Fábio Olmos – O Paulo Nogueira-Neto também é formado em história natural. E a disciplina se dividiu: parte virou biologia e parte virou geologia. E a biologia, a gente está vendo o que ela está se tornando. Então, a observação de aves é filha disso. E eu acho uma coisa fantástica. Ainda hoje, observação de aves e ciência ficam naquela zona de transição, em que é difícil você distinguir o que é uma coisa e o que é outra. Tem informações preciosas que são obtidas pelos birdwatchers. Descobertas de bichos que estavam extintos, ou mesmo de bichos novos, que são feitas por birdwatchers, que utilizam o método científico para fazer e documentar os seus registros. No meu caso é um hobby inevitável. Você vai passar um reveillon em algum lugar e é claro que vai levar o binóculo, o gravador, a máquina fotográfica e vai ver o que tem.
Eco – Vai acordar de madrugada…
Fábio Olmos – E eventualmente acorda de madrugada e vai a “n” lugares. Vou com a minha esposa, que é bióloga, gosta dessas coisas, gosta de fotografar, de ver os bichos. Gosta da minha reação quando acho alguma coisa legal. Ficar o dia todo embaixo da chuva, subir numa ladeira, mosquito comendo tudo e, de repente, ‘nossa! Nunca vi esse bicho antes’. Ganhei o meu dia. Pagou a viagem. Ela também gosta disso. E também às vezes, aconteceu duas vezes, na realidade, de pegar alguns grupos de amigos estrangeiros que vêm para o Brasil e pedem para eu acompanhá-los para ver umas aves.
Eco – Como voce se interessou por biologia?
Fábio Olmos – Eu nasci biólogo. Nunca tive crise de identidade ou crise vocacional. Minhas memórias mais remotas vão até quatro anos de idade. Eu nasci em Santos, beira da praia, eu tinha pé chato e minha mãe, além de colocar meus pés em botas, achava que andar na areia ajudava. E eu era aquela criança que ia juntando concha, peixe morto, pena, qualquer coisa que aparecesse. Meu pai trabalhava em uma indústria, em Cubatão, no sopé da Serra do Mar. E é aquela coisa: o negócio fica aceso a noite e vêm aqueles besouros enormes, cobras e tudo o que o pessoal achava, meu pai sabia que eu era interessado, ele trazia.
Eco – Voce tinha bicho de estimação? Qual?
Fábio Olmos – O primeiro foi uma rã. (risos) Meu pai trouxe e ela ficou um bom tempo morando no banheiro de casa. Nesse tempo, nós morávamos em um apartamento em Santos e depois a rã foi morar no jardim da casa da minha avó. Minha avó tinha um jardim razoável e acabamos deixando a rã lá. E ficou muito tempo. Ela tinha uma bacia no jardim, que era para os passarinhos beberem água. Então a rã se hidratava lá e ficava circulando.
Eco – O que os seus pais achavam disso?
Fábio Olmos – Eu sempre gostei muito de ler. Sempre fui um leitor voraz. Até hoje, quando eu estou meio chateado, eu entro na Amazon e compro uns cinco livros, e meus pais sempre me deram força nisso. Na minha geração, todo mundo acabou ganhando uma coleção “Os Bichos” dos pais, da Abril. Isso acabou fazendo diferença. E, na mesma época, passava aquela série de documentários que era “O Mundo Animal”. Não sei se vocês lembram.
O fechamento era o Sol se pondo e um elefante passando. Aquele jogo de luz e sombra, o elefante, TV preto e branco. Também, na minha geração, todo mundo viu aquilo. Com os quatro, cinco, seis anos de idade eu pensei ‘puxa vida! Eu quero ver esses bichos e quero estudar’. O golpe de misericórdia mesmo foi no segundo primário, eu tinha seis anos e li o livro do Darwin, “Viagem de um naturalista ao redor do mundo”. Até então eu sabia que eu queria estudar bichos, mas eu não tinha o nome da profissão. Aí eu descobri que a profissão era naturalista, que era o que o Darwin tinha feito. Depois eu descobri que naturalista se chamava biólogo.
Eco – Para um biólogo da sua geração, originário de Santos, era natural o interesse pela Mata Atlântica?
Fábio Olmos – Sem dúvida. Era o quintal de casa. Absolutamente natural. Você está em Santos: de um lado você olha e tem o mar, com tudo o que tem de interessante. E aí do outro lado você tem o paredão da Serra do Mar. E meu pai gostava de pegar o carro e passear. Eu era muito pequeno, mas lembro que meu pai tinha um Fusca e a gente foi conhecer a Caverna do Diabo, Eldorado, Vale do Ribeira. É o primeiro contato com a Mata Atlântica que eu me lembro. E você olha aquela coisa e pensa, ‘meu, o que é isso?’ Árvores carregadas de epífitas. Não sabia que chamava epífita na época. Ainda hoje, eu acho que a floresta mais bonita que existe é a Mata Atlântica, de todas em que eu já estive.
Eco – Pela variedade?
Fábio Olmos – É uma questão de estética mesmo, sabe? Aquela coisa da floresta montana com aquelas árvores carregadas de epífitas, aquelas taquaras no sub-bosque, a neblina, eu acho que é a coisa mais bonita que tem.
Eco – A Mata Atlântica desperta uma reação negativa em muita gente, não é como a floresta temperada dos filmes.
Fábio Olmos – Não. A reação natural do ser humano com a floresta é desconforto. Tem até as hipóteses de que isso é por causa que nós, humanos, evoluímos em uma savana, então temos alguma coisa programada no cérebro para ficarmos mais confortáveis em paisagens abertas, com árvores esparsas e tem até uns estudos psicológicos em que o pessoal analisa quadros de paisagem ao longo do tempo e nota que a paisagem idealizada é parecida com a savana africana: aberta, árvores esparsas. É com isso que as pessoas se sentem confortáveis. Então, de maneira geral, a floresta sempre foi inimiga, sempre alguma coisa a ser raleada, senão eliminada. E na Europa também, não existem mais florestas primitivas. Talvez tenha uma como deveria ser, que é aquela na Polônia, de Bialowieza, que é a floresta dos bisões. Foi onde sobrou a última população de bisões europeus. Onde você tem árvores que estão se aproximando de mil anos de idade. Em nenhum outro lugar na Europa você tem isso. A Europa inteira foi muito desmatada em larga escala, começando no Império Romano e atingindo o máximo na Idade Média. A ação antrópica é antiga e extensa. E o planeta inteiro é isso. Quando dizem que não existe um metro quadrado, talvez exceto a Antártica, que não tenha a pegada humana, eu concordo plenamente.
Eco – É. Hoje com a mudança climática, nem um milímetro não é?
Fábio Olmos – É global. Não existe um milímetro quadrado que não tenha sofrido com o impacto humano.
Eco – Em lugares como o Havaí, por exemplo, é complicado definir o que preservar, pois uma série de coisas que estão lá quem trouxe foram os polinésios. Então, onde é que você marca a linha, onde faz o corte?
Fábio Olmos – Aí é que está. O corte é feito a partir do momento em que você começa a perder espécies. Nesse caso do Havaí, entre outros. Se você for lá em Big Island, você vê aquela coisa desértica, com aqueles arbustos que são de mesquite, que veio do sudoeste americano. A grama, o capim era um capim ornamental que escapou do jardim de alguém e veio da África. Você vê perus, que vieram da América, vê galo selvagem que veio do sudeste asiático, vê passarinhos que vieram de todas as partes do mundo. Você não vê uma forma de vida nativa. Você vai ver formas de vida nativa no topo do morro onde a topografia acabou ajudando a manutenção. É um caso de massacre.
E a coisa não é culpa só do capitalismo europeu branco. Os polinésios foram responsáveis, calcula-se, pela extinção de pelo menos duas mil espécies de aves do Pacifico inteiro. Como uma grande cultura, eles estão ganhando de todo mundo, por causa da vulnerabilidade dos biotas insulares. Ano que vem, vai sair um livro sobre isso de um cara chamado David Steadman, que tem trabalhado com essa questão de extinções insulares no mundo inteiro. É “Biogeografia e conservação de aves do Pacifico”. Estou esperando sair. Ele trabalhou com um colega na Ilha da Páscoa. A Ilha da Páscoa talvez fosse a maior colônia de aves marinhas do Oceano Pacífico inteiro. Albatrozes, absolutamente tudo o que você imaginar. Eram mais de 15, 16 espécies de aves marinhas, mais pombos, papagaios, uma floresta de palmeiras. Os caras conseguiram eliminar praticamente tudo.
Eco – No livro do Jared Diamond, “Colapso”, ele cita esse exemplo e é impressionante. Os caras derrubaram até a última árvore.
Fábio Olmos – E ficaram encalhados na ilha. O interessante é que a população humana não se extinguiu. Nós somos o equivalente primata da barata. Não importa quão ruim é a situação, os humanos vão se adaptar, se acostumar com aquilo e vão prosperar, ou no mínimo se manter. E como a memória é curta, as pessoas vão achar que, embora estejam numa situação muito pior do que aquela que existia gerações atrás, eles vão achar que ‘ah! Vivemos no melhor dos mundos’. Essa atitude psicológica explica muito do que a gente vê hoje em dia. Essa normalidade com que a gente vê esse trânsito, e o Tietê detonado. Há algumas gerações atrás, o Tietê era a praia de São Paulo.
Eco – Fabio, você mora aqui em São Paulo, no centro da cidade, não é?
Fábio Olmos – Sim, no centrão. Eu defendo viver no centro. Quando você mora em lugares mais afastados, morei no Piauí morei em Ilhabela, morei em Rondônia, já passei acampado em aldeia indígena no meio do mato. Quando você tem essas experiências dispares aí você vai para o centro de São Paulo e faz assim no seu sábado. Você acorda de manhã, vai numa padaria, toma um café da manhã especial, aí você caminha, vê uns CDs na Galeria do Rock, você começa a caminhar em direção à Praça da Sé. Passa no Centro Cultural Banco do Brasil, vê a exposição que está lá. Dá uma parada no Sebo do Messias. Anda até a Liberdade. Dá um pulinho na Ikitiri, compra um pãozinho. Isso, para mim, é muito legal. Aí na Liberdade, toda vez que tem uma festa eu procuro ir lá. Última vez que eu fui tinha um campeonato de sumô e era o máximo ver aquele pessoal negro, loiro, oriental, todo mundo lá no diabo do campeonato de sumô, não só assistindo, participando. Tinha uma delegação gaúcha. É o máximo esse tipo de coisa. Aquela mescla de diferentes culturas e que se combinam. É difícil até de verbalizar o que é o negócio, mas é um mundo mais rico. E é o tipo de coisa que em uma cidade multicultural como São Paulo você tem. E eu aprecio isso muito. Agora, a questão do dia-a-dia, depende muito de projeto. Tem meses que eu não passo em casa. Fico um dia em casa. Às vezes eu chego de um trabalho, chego em casa, lavo a roupa, pego algum equipamento que eu estou precisando e vou embora. Então é muito sem rotina.
Eco – Você tem filhos?
Fábio Olmos – Não tem como. Eu e minha esposa somos muito parecidos na questão de sermos muito individualistas e cada um ter o seu espaço. A gente se dá muito bem porque, ao mesmo tempo, nós temos muitos gostos em comum, então eu tenho a minha carreira e ela tem a dela. Alguém teria que abrir mão se houvesse a decisão de ter um filho e ninguém está disposto a fazer isso. Essa é uma questão da própria liberdade que você tem não é? ‘Vamos pegar e conhecer um determinado lugar onde a gente não sabe onde vai ficar hospedado’ Não pode fazer isso. Qualquer decisão que você toma, tem que pagar um preço. Agora, do dia-a-dia, comumente trabalhos de campo. Já me ofereceram coisas para basicamente ficar em escritório. Se eu quisesse, hoje acho que eu seria um eco-burocrata, só que eu não consigo ficar em escritório. Então, mesmo quando me oferecem trabalhos que envolvem coordenação de equipe eu sempre pego e ‘estou indo com a equipe de aves’. Duas coisas. Primeiro, sem campo não dá. Eu não sou a faxineira do motel, aquela que arruma as coisas para os outros se divertirem, eu quero me divertir também. E dois, o olho do dono é o que faz o boi engordar, não é? Como é que você vai poder estar falando de determinado local se você não esteve lá?
Eco – Algum projeto legal?
Fábio Olmos – Tem um projeto muito legal que eu vou estar participando agora, que é no Tocantins. Seriam avaliações ecológicas rápidas para seleção de áreas protegidas no vale do Araguaia. Região perto da Ilha do Bananal, do Cantão.
Eco – A avaliação ecológica rápida é quase como a história natural? Chegar lá com o binóculo e anotar o que tem?
Fábio Olmos – Isso seria parte da coisa. A avaliação ecológica rápida pode ser definida como um inventário rápido, um snapshot, feito de uma maneira rápida, maximizando o aporte de informações em relação ao tempo que você tem. Por isso é importante que você tenha uma equipe que seja habilitada a coletar o máximo de informações no mínimo de tempo, de forma que você consiga produzir um perfil da comunidade biológica e definir se a área é interessante para a conservação ou não. Resumidamente, seria isso. Claro que você não vai poder estudar tudo, então existe uma tendência de você pegar e privilegiar alguns grupos que são considerados indicadores. E aves sempre são as mais convenientes de você estar trabalhando. É o grupo mais diverso, você as vê ou as escuta, tem aquelas espécies que são indicadores de situações ecológicas particulares. Pelo fato de ser um grupo bem conhecido, as espécies ameaçadas são bem conhecidas. Se você acha um lugar com uma concentração de espécies ameaçadas, opa!, isso quer dizer alguma coisa. Sempre é bem interessante usá-las.
Eco – Tem alguma coisa que você deixa de fazer para conservar, preservar?
Fábio Olmos – Tem um restaurante vegetariano aqui perto de casa, o Lótus, onde eu vou todo dia, mas é porque eu gosto da comida. Não tenho problema nenhum com churrasco e esse tipo de coisa. Dentro do comportamento pessoal, o que eu procuro é sempre usar o transporte público, uma das escolhas de eu morar no centro é isso. Uma das razões de também morar no centro é que eu odeio desperdício. Então, se eu fosse morar em uma área mais distante, em um empreendimento imobiliário recente. Eu iria estar pagando por esse imóvel, que teve que ocupar um novo espaço, que demandou uma estrutura urbana nova, que é mais um sumidouro dentro desse organismo que é a cidade. Eu estaria pagando por isso, talvez, três a quatro vezes mais do que eu paguei por um apartamento que é maior, no centro. Relação custo-benefício, sabe? Eu não entendo porque o pessoal não mora no centro. Dentro dessa ótica de maximizar retorno minimizando gasto, puxa vida, o universo funciona dessa maneira, eu não entendo porque um sujeito vai morar num apartamento que tem 70 metros quadrados e que ele leva duas horas para chegar, gastando combustível e tudo o mais. E é aquela coisa, é produção de resíduo. Você não pegou a época do sujismundo, ‘povo desenvolvido é povo limpo’, lembra disso?
Eco – Coisa horrorosa!
Fábio Olmos – Coisa horrorosa? Falta isso. Setenta por cento da população dessa cidade acha que ainda mora em cima de uma árvore e pode jogar casca de banana para baixo. É terrível isso. Eu fico possesso. Acho que deveria ter um atirador de elite no telhado só derrubando esses animais. Não dá! Não dá! É o cúmulo da barbárie! Aí depois o córrego entope com o sofá que o cara joga lá dentro e ‘ai! Minha casa ficou inundada!’ Pô! São essas pequenas coisas que você não faz. Não jogue lixo no chão que vai entupir o bueiro. Sabe?
Eco – Você estava falando que a sua geração tinha uma atenção com os animais…
Fábio Olmos – É uma impressão que eu tirei dos meus colegas de faculdade. Todos nós, ou boa parte das pessoas que fizeram biologia na mesma época que eu fiz, tinham essa coisa em comum. Eu acho engraçado como que uma coleção de livros e um documentário em especial podem ter, literalmente, mudado a vida de uma boa parcela de pessoas que, por causa desse fator em comum, acabaram optando por uma opção profissional. Naquela época, anos 70, início dos anos 80, questões ambientais não eram exatamente prioridade. Começou a ser mais divulgado no início dos anos 80.
Eco – E o grande caso foi Cubatão. Você deve ter visto isso de perto, não é?
Fábio Olmos – A serra começou a cair, e então o pessoal finalmente fêz o link de que a poluição mata as árvores, sem árvores a gravidade faz o serviço dela e a terra cai. E foi interessante porque eu estava ali do lado. Foi possível testemunhar esse tipo de coisa, e acompanhar as mudanças que aconteceram e ainda estão em progresso. A poluição deu uma diminuída muito considerável. A situação agora é definitivamente melhor, mas até o ecossistema se recuperar… Toda vez que os manacás começam a florescer, fica tudo bonito, florido, o pessoal diz ‘ai que linda a Mata Atlântica! Que beleza!’. Mas se a Serra do Mar fosse um organismo, o manacá seria a casca da ferida. Ela é a pioneira que coloniza áreas onde teve escorregamento, onde basicamente o solo ficou exposto. Ela entra ali, é o nicho natural dela. Se você tem manacá dominando, tem alguma coisa está muito errada. É como um corpo coberto de casca de ferida.
Eco – Por que é tão difícil defender unidades de conservação no Brasil?
Fábio Olmos – Na minha opinião, a apreciação pela natureza, pela arte em todas as suas formas, pela dignidade humana, são todos componentes daquilo que eu chamo de civilização, e o Brasil ainda não se tornou um país civilizado. A partir do momento em que se chega a um determinado nível de civilização, o que está correlacionado com o nível de educação, educação humanista, se incorpora uma série de valores éticos, As pessoas não apenas desenvolvem um senso de apreciação estética pela arte e pela natureza, mas, ao mesmo tempo, desenvolvem uma forma diferente de se relacionarem umas com as outras. Olha a política ambiental. Qual é o discurso que a gente tem? Eminentemente utilitarista. Uma árvore que levou 1200 anos para crescer é vista tão somente como uma fonte de madeira.
Eco – É um objeto de manejo, em um plano de manejo de 30 anos.
Fábio Olmos – Exatamente. 30 anos que são colocados de forma totalmente arbitrária, porque os poucos estudos sobre demografia de árvore mostram que o tempo de geração é muito maior. Se você pensar como a forma de plano de manejo, o propalado pelo governo, é feito, é como se você jogasse no mesmo curral cabra, cavalo, carneiro, vaca e galinha, tirasse a média e começasse a extrair a carne dessa misturada. É claro que não vai dar certo. A demografia é diferente. Agora, árvore eles acham que é tudo a mesma coisa. É a ignorância crassa de quem dita política ambiental no país. A lei de biossegurança é um exemplo disso, misturar soja transgênica com célula-tronco. O que é isso? Para mim é um enorme exemplo de ignorância, não tem outro termo.
Eco – Há um oportunismo político que se aproveita dessa ignorância?
Fábio Olmos – Exatamente. Existe o oportunismo que se nutre da ignorância e a ignorância que é retro-alimentada pelo fato de não haver prioridade política para educação. Da forma como a política é conduzida no Brasil hoje, é desejável manter o pessoal no nível de ignorância que temos hoje. Pobreza e ignorância são de total interesse tanto de movimentos religiosos como de políticos populistas. São duas formas de populismo, na realidade, que têm um campo extremamente fértil nesse meio.
Longe da civilização – Parte II
João Teixeira da Costa e Aline Ribeiro
Esta é a seguinda parte da entrevista com o biólogo Fabio Olmos. Na primeira, ele contou como chegou até os bichos e as plantas e falou um pouco de sua vida pessoal em relação ao trabalho. Nesta, Olmos conta como é complicado depender de governo, onde decisões técnicas, são frequentemente atropelados por interesses políticos. Como por exemplo, no caso de Murici, Alagoas, onde existe uma nesga de Mata Atlântica que, se desaparecer, vai produzir a primeira extinção em massa documentada de pássaros em 50 anos. Desde 1991 queriam fazer lá uma Unidade de Conservação. Mas a área pertence à família Calheiros, a do Renan, presidente do Senado. Não é à toa que ela só foi criada esse ano. E sem muitas condições materiais de proteger as espécies que estão lá ameaçadas.
Eco – Você atuou na área pública. Teve uma passagem pelo Instituto Florestal e foi diretor do parque de Ilhabela.
Fábio Olmos – Eu ainda estava na faculdade e pensava ‘puxa vida! Meu projeto de vida é ser diretor de parque’. Eu achava o máximo, aquela coisa idealizada. Você olhava os documentários e pensava, ‘puxa! Esse é o meu projeto de vida’. Uma área legal, que você pode manejar, administrar, e estudar os bichos. Se você pensar assim, conceitualmente, é uma coisa espetacular manejar um parque. O dia-a-dia pode ser uma coisa muito legal. E tem aquela coisa de você estar colaborando para deixar um legado positivo.
Eco – Deixar o mundo melhor do que ele estava quando você chegou.
Fábio Olmos – Um mundo menos pobre, entende? A gente está trocando a Mata Atlântica, com milhares de espécies de árvores, por milhares de eucaliptais, que têm apenas uma. Eu acabei entrando na Cetesb, por concurso, e consegui ser comissionado para assumir como diretor de Ilhabela. Aí cheguei em Ilhabela e vi um parque que, se houvesse seriedade na questão de implantação de área protegida no Brasil, poderia ser um modelo, poderia estar gerando emprego, renda e arrecadação, poderia ser uma coisa maravilhosa. O problema é que o governo não trata o assunto com a menor seriedade. Começa pela questão fundiária. Não se resolve a questão fundiária.
Eco – Por que?
Fábio Olmos – Na questão fundiária é menos importante você desapropriar os grandes proprietários ou quem tem o título do que indenizar de forma justa o posseiro, que é quem está provocando o impacto ambiental. Não o proprietário ausente. Quem está desmatando, caçando, tirando palmito, quem implantou uma comunidade que está crescendo, é o posseiro. Então eu sempre achei que o foco era desviado. Que primeiro você tem que controlar a ocupação efetiva que tem na área e depois você se preocupa em resolver aquela titulação que pode ser válida ou não. E são os posseiros que acabam alimentando o movimento político pelo fim da unidade de conservação, como os casos de Jacupiranga e da Juréia estão mostrando. E quem são esses posseiros? São os que acabam ganhando o título de comunidade tradicional.
Eco – Existe isso de comunidade tradicional?
Fábio Olmos – É a mesma coisa que o habitante de Tóquio dizer ‘eu sou um samurai’. É uma coisa deslocada. Tudo bem, o cara pode ser de uma família samurai, pode ser de uma família caiçara, pode se colocar o rótulo que ele quiser, baseado nos ancestrais que ele teve. Agora, funcionalmente, não existe mais isso. E as pessoas ficam olhando para o passado ao invés de olhar para o futuro. E como diretor, o que acontece? Eu acabei ganhando um parque com regularização fundiária zero. Então eu teria que ditar normas numa área que não é minha, não é do estado e que pega 80% do município. Então você já tem um conflito intrínseco com a prefeitura, porque a arrecadação da prefeitura é o IPTU. E quanto mais casa, mais gente, melhor. Então, não é a toa que as prefeituras, de maneira geral, estimulam a invasão de áreas que não deveriam ser ocupadas. É IPTU, e é voto.
Eco – Como parque, Ilhabela é bem equipado?
Fábio Olmos – Eu me lembro de que quando eu entrei, em 1993, nós tínhamos um Jipe Willys, o “trovão azul”, e olhe lá. Paguei do meu bolso para mantê-lo em funcionamento. Foram os meus guardas que reformaram aqueles negócio, estava literalmente caindo aos pedaços. Conseguimos comprar uma carcaça de fibra de vidro para fazer manter negócio rodando. Tínhamos um Gurgel X12 e um Jipe Willys. Precisa comentar algo a mais? E tinha outra coisa. Eu tinha os guarda-parques. O que é o guarda-parque no sistema de unidades de conservação de São Paulo? Na minha época, era o sujeito local que havia passado num concurso, que hoje seria equivalente ao nível médio. Você botava uma farda no sujeito, dava um 38 e dizia ‘olha, não deixa ninguém caçar, não deixa ninguém desmatar’ e dava umas instruções gerais. Uma coisa louca isso, sem um treinamento especializado. O sistema de unidades de conservação do Estado de São Paulo é o império da gambiarra. Eu até pensei em trabalhar junto com a polícia, que na época se chamava florestal e hoje é a ambiental. Impossível.
Eco – Por quê?
Fábio Olmos – Eles não aceitam. Você tem um problema de duplo comando. Alguns parques conseguem lidar com isso, que conseguem entrar em um acordo, mas aí é uma coisa pessoal, não é institucional. O que é outro problema do Brasil. Tudo é na base das relações pessoais, que não sobrevive à passagem das pessoas.
Eco – Esse império de gambiarras fica só em São Paulo?
Fábio Olmos – Existem lugares melhores e piores. Em estados como Minas Gerais e Paraná é o policial ambiental que vai pegar o marginal no meio da unidade de conservação. Tem parques que têm o destacamento dentro do parque. Aqui em São Paulo isso não acontece por questões históricas de conflitos que aconteceram entre a polícia ambiental, que tentava cumprir seu dever, e diretores de unidades de conservação que não queriam que esse dever fosse cumprido. Tudo isso acoplado ao problema do comando.
Eco – Você ficou um ano em Ilhabela.
Fábio Olmos – Um ano e pouco como diretor. Foi extremamente educativo. Você tem uma missão teórica, que é o que a lei impõe que você execute. E quando você tenta executar, obviamente vai cair em situações de conflito. Quando você vai pedir respaldo da instituição que te colocou lá, a instituição diz ‘te vira sozinho’. Então, não é a toa que muito guarda-parques, diretores, simplesmente fecham os olhos porque não têm respaldo. Quando tem um invasor lá e você derruba o barraco. O sujeito vai ao vereador no qual ele votou. O vereador faz uma moção na Câmara dos Vereadores pedindo a cabeça do diretor do parque e isso vai bater no secretário do meio ambiente. A instituição não te segura.
Eco –E de lá você foi para onde?
Fábio Olmos – Para a sede do Instituto Florestal. Acabei na seção de animais silvestres, que é uma função eminentemente técnica. Fiquei lá até 1997. Em setembro ou outubro eu fiz um parecer negativo com relação à reabertura de uma pedreira no interior do parque estadual do Jacupiranga. A pedreira deveria fornecer brita para a obra da duplicação da BR-116. Nos estudos apresentados diziam que era a única fonte de brita numa distância da ordem de centenas de quilômetros. A vistoria em campo mostrou que havia vários afloramentos de rochas semelhantes, inclusive à beira da estrada, inclusive rochas que podiam cair na estrada, então não era a única opção ou, no meu entender, não era a única opção. Essa coisa deveria ser mais bem explicitada e o pior, havia um pouso coletivo com pelo menos 30 papagaios de peito roxo exatamente em cima da pedreira. No parecer eu coloquei que não era correto você explodir o pouso coletivo de uma espécie ameaçada para reabrir uma pedreira em uma unidade de conservação.
Eco – Deu confusão?
Fábio Olmos – O secretário de meio ambiente da época, o senhor Fabio Feldman, discordou e me demitiu. Eu era celetista, contratado pela Cetesb, então não tinha estabilidade. Para evitar que meu parecer fosse excluído do licenciamento, eu tive que levá-lo no protocolo do IF, para ser protocolado oficialmente, para evitar que ele desaparecesse misteriosamente dos processos. Eu fui demitido do IF, o que foi uma boa coisa, porque em janeiro eu estava trabalhando em Rondônia como funcionário do Pnud, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, na cooperação técnica do Planafloro.
Eco – O que é o Planaforo?
Fábio Olmos – Lembra do Polonoroeste? Era o finzinho do governo militar e eles conseguiram um dinheiro do Banco Mundial para pavimentar a Cuiabá-Porto Velho, a BR-364, e pegar o excedente populacional dos estados do sul, especialmente Paraná, onde o agronegócio estava expandindo e você tinha aquele monte de ex-pequenos proprietários de terra causando movimentações sociais. A pressão estava aumentando. Qual foi a idéia: a gente pavimenta, e faz o projeto de reforma agrária ao longo da estrada. Bom, o Banco entrou nessa e o resultado foi o gigantesco índice de desmatamento de Rondônia. Quando a bobagem se tornou pública, o Banco tentou corrigir a situação da maneira que fosse possível. Então negociaram com o governo brasileiro um projeto sucessor, o Planafloro, que seria um projeto com uma vertente ambiental, seria feito um zoneamento sócio-econômico ecológico do estado de Rondônia para orientar a ocupação. Seria criado um sistema estadual de áreas protegidas e, claro, seriam feitos projetos para beneficiar as comunidades indígenas e extrativistas que haviam sido prejudicadas pelo Polonoroeste.
Eco – Deu certo?
Fábio Olmos – Bom, se você olhar os artigos recentes de O Eco sobre o estado de conservação das unidades estaduais em Rondônia, obviamente não deu certo. Mas foi extremamente educativo pelo seguinte: quando você faz o resumão da coisa, com que é que você acabou? Acabou com um zoneamento em Rondônia bem interessante e muito legal, inclusive com uma lei estadual. O problema é a aplicação da lei. Foi produzido um papel muito caro, mas de aplicação que deixa a desejar. Foram criadas várias unidades de conservação, das mais variadas categorias, que seguiram um seguinte princípio: se o terreno é inundado ou é muito montanhoso é de proteção integral, se é plano e dá para desmatar, tirar a madeira, etc, então a gente transforma em uso sustentável, usando as categorias do SNUC, antes era uso direto e indireto. Então novamente a visão utilitarista do negócio.
Eco – Essa multiplicação de tipos de unidade de conservação cria confusão?
Fábio Olmos – Cria confusão. Qual é a diferença entre uma reserva biológica e uma estação ecológica? Alguém pode me explicar? Por outro lado, acho que tem coisas interessantes. Refúgio de vida silvestre é uma categoria nova que tem possibilidades interessantes se for bem utilizada, porque permite uma certa criatividade.
Eco – Por que?
Fábio Olmos – Olha, esses refúgios seriam uma medida de compensação ambiental, atrelada a empreendimentos da área portuária. Então a idéia, como sempre, é: os empreendimentos vão causar algum dano, mas se espera que esses danos sejam compensados, mitigados através da implantação de áreas que conservem parcelas do sistema de manguezais que sejam importantes ali. O refúgio de vida silvestre é uma categoria de unidade que não implica necessariamente em desapropriação. Tem duas características interessantes: a primeira é que não implica necessariamente em desapropriação e depois se você olha na descrição, o refúgio permite que sejam desenvolvidas atividades, desde que essas não conflitem com a finalidade, que é para a qual o refúgio foi criado. Isso abre algumas possibilidades interessantes, porque existem algumas formas de usos de recursos naturais que não têm problema algum em determinadas circunstâncias. Por exemplo, no caso dos manguezais, a pesca artesanal e a pesca esportiva não são um problema para a conservação dos manguezais e das aves migratórias e espécies ameaçadas que justificariam a criação de um refúgio. Então são coisas compatíveis. Se eu for criar um parque estadual, uma reserva biológica, um estação ecológica, eu não posso ter a pesca ou a coleta de caranguejos. Isso gera um conflito desnecessário.
Eco – No peito de um ecologista bate um coração de desenvolvimentista sustentável?
Fábio Olmos – Eu queria frisar uma coisa: eu não sou nenhum ecologista xiita não. Acho que você tem que pegar uma situação e tem que ter bom senso. Tem que brigar por aquilo que realmente não é negociável. Então, nesse caso, perfeito o pessoal que vive de pegar caranguejo, de pescar, isso é perfeitamente compatível com os bichos. Não é compatível a mania que alguns têm de caçar jacaré. Não é compatível você aterrar o manguezal para fazer um terminal portuário na principal área de alimentação dos bichos. Você pode permitir alguns usos. Essa abertura, no meu entender, o refúgio de vida silvestre dá. E a questão da regularização fundiária também se resolve. Ninguém quer botar a mão no bolso para comprar terra. Como no refúgio você só estaria desapropriando em casos em que um conflito com o ambiente é identificado, isso tira uma carga enorme. Aí o recurso que seria canalizado para o refúgio, pode ir mesmo para atividades que vão fazer a diferença.
Eco – O que funciona e o que não funciona no processo de licenciamento ambiental?
Fábio Olmos – O processo de licenciamento ambiental deveria ser isento de pressões externas. Ele deveria ser isento o suficiente para quem licencia dizer ‘esse é um projeto que é tão impactante ou tão idiota que não vai ser aprovado’ e ele não é. O problema é que o licenciamento deixou de ser uma coisa decisória para ser apenas mais uma instância burocrática. Independente do mérito ou do impacto que um projeto causa, se houver a ordem política superior, ele vai ser aprovado. O melhor que pode acontecer é você ter algumas medidas mitigatórias e medidas compensatórias que vão deixá-lo um pouco mais caro, de certa forma tentar remediar algumas coisas.
Eco – Essas considerações não desanimam quem faz o EIA-RIMA?
Fábio Olmos – E se os EIA começassem a ser feitos de maneira não isenta e não científica? Porque o EIA vai ter que ser feito. Então é resistir sempre e desistir jamais. Acho que você, como consultor ambiental e como pesquisador, tem o dever de seguir o método cientifico e colocar aquilo que seria o melhor descritor da realidade possível. Com base nas informações coletadas com a melhor metodologia possível, dadas as circunstâncias. Esse é o teu dever. Se quem decide vai levar isso em consideração ou não, são outros quinhentos. É muito comum você ver, está lá no EIA ‘isto aqui é uma catástrofe’ e o pessoal simplesmente passa batido. Acontece. O empreiteiro quer realizar a obra. O político quer a bandinha e fazer o descerramento da placa e dizer ‘votem em mim’. O empreiteiro geralmente ganha financiamento público para fazer a obra. Se ele tivesse que pôr a mão no próprio bolso, aí é diferente. Então, quem tem interesse na eficiência do negócio? No EIA é onde você pode pegar e colocar isso ‘esse projeto vai ser um desastre para a comunidade biológica por causa disso e disso’ e diz ‘não faça isso e, se for fazer, pelo menos faça tais coisas’. Agora, quem vai decidir se a Cuiabá-Santarém vai ser asfaltada não é quem licenciou, porque já decidiram antes. Olha a questão da transposição [do Rio São Francisco]. A transposição já estava decidida antes do relatório de impacto ambiental e do licenciamento. O licenciamento se tornou mera instância burocrática. Apenas valida uma decisão política tomada antes. Hoje, o Ibama recomenda, embora não seja uma norma, que os consultores rubriquem todas as páginas do EIA. Se tiver alguma coisa estranha, vai aparecer lá e vai ser problema do consultor. Porque acontece de más empresas dourarem a pílula.
Eco – Adulterarem um relatório?
Fábio Olmos – Omitir informações. Isso acontece. Aí depois o Ministério Público descobre tudo, o tiro sai pela culatra e o negócio sai muito mais caro do que eles pensavam. Agora o que eu acho que é o maior problema é a qualificação dos órgãos licenciadores e isso é muito sério, principalmente nos estados. Eu já vi EIAs que foram aprovados por órgãos estaduais que eram assim: EIA de um resort a beira-mar e o cara fez um ‘copiar-colar’ de um EIA de uma barragem. E nem fazer o ‘substituir barragem por resort’ o cara fez. E foi aprovado pelo órgão ambiental do estado. Só que aí, qual o problema do órgão ambiental? A falta de técnicos qualificados é uma. A ingerência política é outra.
Eco – Voltando para São Paulo, a história do parque estadual de Jacupiranga é difícil desde o começo. Tem a parte fundiária que nunca foi regularizada …
Fábio Olmos – Embora tenham gasto muito comprando terras lá.
Eco – É muito mais fácil levantar a atenção para um caso como o de Juréia-Itatins do que o de Jacupiranga, não é?
Fábio Olmos – Porque Juréia tem todo um histórico de marketing. Tem camiseta da Juréia por aí. Agora, quem ouviu falar em Jacupiranga? Tem esse problema. Jacupiranga sempre foi longe demais e nunca teve um histórico de ser badalado. O pessoal até conhece a Caverna do Diabo, mas não imagina que a Caverna está dentro de um parque estadual chamado Jacupiranga, que tem 120 mil hectares, que é a mesma área da segunda maior unidade de conservação de Mata Atlântica do planeta, que é a Serra da Bocaina. As maiores áreas são a Serra do Mar, da Bocaina e Jacupiranga. A Juréia é menor.
Eco – As Ongs não ajudam em coisas assim?
Fábio Olmos – Vamos lembrar: ONG não é governo, não desapropria. Pode até conseguir uma concessão para manejar, mas não é governo. A ONG não recebe dinheiro de recurso público, como o Estado recebe, para cumprir aquilo que é obrigação segundo a constituição. É função do Estado. O que a ONG pode fazer é gritar bastante ‘Estado, cumpra a sua obrigação’. Vê que situação patética que a gente vive? Tem que lembrar ao Estado qual é a obrigação dele. Tem que dizer para o Estado ‘olha, você está sendo pago para fazer determinadas coisas que você não está fazendo’. Isso é ridículo. É a barbárie. E a Ong vive do quê? Vive de mostrar resultado para o teu patrocinador. Então a tua margem de manobra para estar abraçando projetos com grande probabilidade de fracasso é muito pequena. E aí falta governo. Existem algumas ONGs que dizem ‘vamos para o sacrifício’. A BirdLife se meteu na briga de Murici, onde a probabilidade de fracasso é gigantesca.
Eco – Murici?
Fábio Olmos – A história é a seguinte. Nos anos 80, pela primeira vez, foram explorar algumas florestas montanas, montanas é 800 metros de altitude, lá em Alagoas. Descobriram um monte de espécies novas de passarinhos, que estão restritas a essas poucas áreas altas, ao longo da Borborema. Só que tem um pequeno problema: é o pedaço da Mata Atlântica mais destruído que tem. Tem menos de 2% de mata remanescente e o que tem está ferrado. É secundário, foi queimado. Estão os bichos ali em cima, nessa área que fica em Murici. Minto. Os bichos foram descritos na década de 80, mas foram descobertos no final da década de 70. Tanto que, em 79, tinha até uma idéia do Paulo Nogueira-Neto, de criar uma estação ecológica. O problema é que o Nordeste é outro país e os usineiros é que mandam e essa coisa foi sendo protelada. Enquanto a criação da área foi sendo protelada, a área foi sendo destruída. As usinas que eram donas da área acabaram falindo, então parte das terras foram para pagar dívidas trabalhistas e teve um pessoal que acabou comprando para criar gado, trocar o canavial por gado. E aí entra a família Calheiros.
Eco – A do Renan, presidente do Senado?
Fábio Olmos – Isso. Eles são donos da maior parte da estação ecológica. O Renan perdeu uma eleição, se não me engano em 1992 e para por dinheiro no bolso desmatou um pedaço da área para vender a madeira. A estação ecológica só foi criada em 2001, depois de um lobby violento. Estamos em 2005. Tem dois funcionários, um carro, zero de regularização. E a única coisa que impede um pouco o que sobrou ir para o saco é a estrada ruim. E é “só” a área no país com maior concentração de espécies ameaçadas.
Eco – Importante assim?
Fábio Olmos – Muito. Mas pergunta se o governo federal, se a dona Marina Silva sabe que Murici existe. Se tem uma coisa que é importante para impedir a extinção de espécies no Brasil seria implantar e manejar adequadamente a estação ecológica de Murici, que é onde a gente vai assistir às primeiras extinções documentadas de espécies no país, em pelo menos 50 anos. Só que absolutamente nada acontece. Apesar das pressões, o governo não se move. Por quê? Política. De quem são as áreas? Família Calheiros, Renan e o irmão Olavo. É um escândalo.
Eco – Como voce definiria conservação?
Fábio Olmos – Para mim, conservação é tentar retardar ao máximo as perdas, até que aconteça alguma coisa, talvez o H5N1, que vai pegar e tirar o pé da humanidade do acelerador que está nos levando ao colapso e o pessoal vai dizer ‘ops! Vamos parar, pensar, avaliar e ver para onde que a gente vai’. Essa seca que a gente está vendo na Amazônia hoje. Se isso se repetir por três, quatro anos, o pessoal pondo fogo do jeito que coloca, você vai ver. As populações de peixe-boi, por exemplo. Esse bicho vai para o saco. Esse é o mundo mais pobre que a gente está construindo. Que raio interessa o PIB se você deixa um deserto atrás de você?
Eco – Você está extinguindo uma riqueza que não vai ter como recuperar…
Fábio Olmos – Eu gosto de colocar isso em algumas palestras que eu faço para deixar o pessoal nervoso. Os socioambientais gostam de dizer ‘estamos perdendo sei lá quantas línguas, quantas culturas, que não sei o que. Isso é tão importante quanto a extinção de espécies’. Eu digo ‘ó procês’. Primeiro, língua, cultura, etc. você conserva em livro, DVD, vídeo. E depois que vai embora, você consegue recuperar. Você tem essas tribos renascidas porque estão aprendendo o tupi, reaprendendo o toré. Tudo bem que não é como era há 500 anos, mas pelo menos é uma coisa 50% do que era. Vamos pegar essa arara que era da Bacia do Paraná e que se extinguiu nos anos 50. Faz um terço de arara, 20%, 10% de arara, você consegue?
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Excelente, Fabio Olmos!!!!