“Na zona rural, encontram-se vastas áreas em estado avançado de desertificação, lagoas eutrofizadas, nascentes desprotegidas e processos erosivos. Da cobertura vegetal original, mais de 90% foram extintas. Da restante, menos de 1% encontra-se em estágio primário (…) Nas cidades, praticamente todo o esgoto e lixo são lançados nos cursos d’água ou em suas margens”.
Este era o retrato da degradação do rio Doce há cinco anos, em documento feito para a instauração do Comitê de sua Bacia Hidrográfica. De lá para cá, a situação melhorou, mas pouco, e muito mais pelo esforço da iniciativa privada do que de ações do poder público. Agora, um novo acordo pode dar começar a mudar o futuro do rio que se estende por 853 quilômetros e banha 3,1 milhões de pessoas entre Minas Gerais e Espírito Santo.
Na semana passada, os governadores Aécio Neves (PSDB) e Paulo Hartung (sem partido) se reuniram na cidade de Pedra Azul, num corredor ecológico do Espírito Santo, para assinar um protocolo de compromisso em benefício da revitalização do Doce, incluindo também as bacias dos rios São Mateus e Itapemirim, igualmente compartilhadas pelos Estados.
Aécio não deixou escapar a oportunidade para reafirmar o seu mais vigoroso discurso do momento, a favor da rediscussão do pacto federativo. Ao falar na solenidade, que reuniu políticos, empresários e representantes do Comitê da Bacia Hidrográfica, garantiu que o encontro de governadores não se resumia a uma colaboração isolada, mas à escolha de um modelo de federação. “É preciso fortalecer as relações laterais e multilaterais entre os entes federativos. Não podemos nos inibir por fronteiras geográficas ou políticas”, disse.
A aproximação de governadores em torno do rio, e até mesmo a assinatura de um protocolo de cooperação, já aconteceu em outras épocas. Mas não surtiu muito efeito. Quem lembra é o engenheiro Paulo Maciel, especialista em Gestão Ambiental e coordenador, entre 1989 e 1998, do Projeto Rio Doce (Cooperação Brasil/França), o primeiro estudo sobre bacias hidrográficas feito no país e que serviu de pano de fundo para a criação da legislação das águas. Maciel ressalta que, nos últimos anos, a evolução positiva na situação do Doce não pode ser creditada à atuação dos municípios ou Estado, e sim ao setor industrial.
O Projeto Rio Doce listou prioridades para a bacia, porém não conseguiu incentivar muitas ações concretas. “Este projeto estava à frente da evolução social e técnica do assunto. Tínhamos uma perspectiva de atuação muito avançada, que não tinha respaldo da legislação”, explica o especialista, autor de dois livros sobre o rio Doce. Estado e municípios, diz Maciel, fizeram muito pouco em relação às prioridades traçadas, ainda que algumas cidades (ele só se lembra de três) tenham conseguido, por exemplo, melhorar as condições sanitárias. Mas a lista continua valendo, ressalva ele, destacando trabalho recente da Comissão Interestadual Parlamentar de Estudos para o Desenvolvimento Sustentável da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (Cipe-Doce), que tem um primoroso estudo e proposta de saneamento para a bacia.
Na bacia do rio Doce estão situadas grandes siderúrgicas, como Usiminas e Belgo Mineira, a maior mineradora do mundo – Companhia Vale do Rio Doce – e grandes empresas de celulose, como Cenibra e Aracruz. Segundo Maciel, indústrias como essas empreenderam um grande esforço de despoluição, premidas pela nova legislação ambiental que não foi capaz, entretanto, de mover o poder público. “O problema da bacia passa pela questão financeira”, salienta. Maciel está convicto de que a solução para a preservação desta ou de qualquer outra bacia hidrográfica está diretamente relacionada à questão da cobrança pelo uso da água.
O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, João Guerino Balestrassi, também admite esta alternativa como das mais viáveis para o incremento de ações pelo poder público. Prefeito de Colatina (ES), ele salienta que a cobrança do uso das águas não é uma punição generalizada. “Temos que penalizar é quem gasta mal, quem usa inadequadamente a água”, argumenta, admitindo que em seu município 45% da água tratada é desperdiçada. “Essa cobrança é uma tendência natural”, diz. Para o prefeito, o encontro dos governadores, pela repercussão que atinge, ajuda na sensibilização da própria população da bacia. O protocolo de cooperação, acredita, cria oportunidades para o poder executivo e entidades que lidam com a questão ambiental correrem atrás dos recursos, inclusive internacionais, que faltam aos projetos de revitalização e desenvolvimento econômico de áreas degradadas.
Maria da Glória Brito Abaurre, secretária de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Espírito Santo, também exalta a união dos dois Estados para fortalecer políticas voltadas à economia local. “A solução passa pela gestão dos recursos hídricos, mas também pelo desenvolvimento sustentável. Os dois secretários de Estado de Desenvolvimento e de Planejamento estão participando”, enfatiza Maria da Glória. Segundo ela, “os dois Estados estão entendendo que são interdependentes, que na visão de bacia não dá para separá-los geográfica ou politicamente”.
A maioria da população da bacia está concentrada em 202 municípios de Minas Gerais, mas nem por isso o Doce é mais mineiro do que capixaba. No Espírito Santo, onde alcança outras 26 cidades, ele tem status de o maior manancial de água doce do estado. “Brinco com os mineiros que, para eles, o Doce é mais um rio, mas, para a gente, ele é o nosso rio”, resume Maria da Glória.
A perspectiva solidária entre os estados foi explicitada em reuniões do Comitê da Bacia, há cerca de dois meses, quando foi eleita sua nova diretoria. “Se fosse sem discussão, Minas ganharia sempre a presidência, porque tem um número maior de representantes. A idéia do trabalho conjunto mudou a lógica, surgindo a proposta de alternância. Por isso, hoje quem preside o Comitê é o prefeito de Colatina”, afirma. Ela prevê ações afinadas entre os dois estados e enumera algumas decisões político-econômicas que podem estreitar o relacionamento entre Minas Gerais e Espírito Santo, como a maior utilização dos portos capixabas.
Por enquanto, as melhores intenções para salvar o rio Doce estão todas no papel. As propostas são genéricas, num modelo “guarda-chuva”, como define o presidente do Comitê. “Vamos montar um grupo de trabalho dos dois estados, com a participação da Agência Nacional das Águas (ANA), para apresentar planos com prazos”, explica Balestrassi. Ele destaca o trabalho diferenciado do Comitê. “Nós estamos nos organizando, trabalhando no plano diretor, nas outorgas e no enquadramento do uso da água. Estamos nos organizando via ANA, governo federal, emendas de bancadas. Este é um caminho mais lento, mais difícil, mas que tem uma base. O problema é que não temos ainda recursos para fazer qualquer coisa, porém o que penso é que com a base bem feita conseguiremos suprir essa deficiência”, argumenta.
O encontro de Pedra Azul pode marcar uma nova etapa na captação de recursos em benefício do Doce. “A presença dos dois governadores, de prefeitos e do empresariado já implica em novas parcerias”, afirma o presidente do Comitê.
* Roselena Nicolau é mineira de Belo Horizonte e jornalista. Foi repórter do Jornal do Brasil por 12 anos é correspondente da Agência Sebrae de Notícias.
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