Reportagens

Vizinhos primatas

Centenas de bugios-ruivos habitam florestas e morros de Porto Alegre, ajudando a regenerar as áreas verdes. Projeto trabalha há 12 anos para preservá-los.

Cristina Ávila ·
12 de maio de 2005 · 20 anos atrás

No meio da mata que ainda resta nos morros de Porto Alegre, algumas pessoas se assustam com o ronco grave do bugio-ruivo – até pela surpresa de encontrá-lo tão próximo da cidade. Mas o macaquinho não é ameaça. Pelo contrário: está ameaçado de extinção por causa do avanço da zona urbana. Para protegê-lo, estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) estão começando a segunda fase de uma pesquisa de campo sobre a população do primata que vive na capital. O primeiro mapeamento foi concluído há seis anos.

“Muita coisa mudou desde que concluímos a primeira etapa do levantamento de bugios. A cidade cresce rápido, e nesta segunda fase já sentimos dificuldade de encontrá-los nas matas nativas. Os bichos estão extremamente ameaçados”, afirma a bióloga Márcia Jardim, do departamento de Mastozoologia da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul. Ela ainda era estudante quando, há 12 anos, ajudou a fundar o Programa Macacos Urbanos na UFRGS. Hoje é doutora no assunto.

A capital gaúcha é cercada por áreas de Mata Atlântica, onde ainda vivem os bugios-ruivos. “Sabemos que são algumas centenas, embora não tenhamos um número preciso”, explica o biólogo Gerson Buss, que no final da década de 80 participou de estudos sobre a dieta dos primatas. Esses levantamentos preliminares deram início ao Programa Macacos Urbanos, em 1993.

O primeiro mapeamento feito pela UFRGS investigou a presença dos bugios na região sul de Porto Alegre, em uma área de 4.925 hectares que foi dividida em 197 unidades de amostra (o município tem 47 mil hectares). A região tem 42 morros que representam 24% da área do município e 10% da mata nativa existente, com alturas entre 30m e 311m. Foi registrada a ocorrência dos macacos em 54,8% das unidades, a maior parte nas regiões mais altas dos morros e em vales de florestas.

Estudantes universitários agora estão em campo para conhecer a população de bugios no centro-sul de Porto Alegre, onde existem 17 morros entre os bairros Lomba do Pinheiro e Glória. Nessa região há áreas de grande concentração humana e outras com bastante floresta nativa. Os estudos científicos querem identificar os locais que os primatas habitam e a partir disso propor meios para a preservação da fauna e flora locais.

Os bugios são habitantes de destaque no estado. Seu ronco transformou-se até em gênero musical. Para animar bailes tradicionalistas, os gaiteiros imitam nas acordeonas o som ouvido nas matas. Mas mesmo sendo um elemento cultural, os macaquinhos não deixam de sofrer ameaças. “Os bugios são vítimas de atropelamentos e de perseguição por cães. Às vezes os animais são protegidos pela população, mas também tem gente que os apedreja e até mata. A cidade está tão próxima das florestas que os bugios acabam entrando nas casas. Já houve caso de uma pessoa fazer massagem cardíaca em um macaco que sofreu choque elétrico. Os choques são freqüentes”, conta a estudante de biologia Luiza Lokschin, que há dois anos participa do programa.

A espécie desses macacos, Aloutta guariba clamitans, consta do Livro Vermelho da fauna ameaçada de extinção no Rio Grande do Sul, editado em 2003 pela PUC/RS.

Os bugios-ruivos ocorrem do sul da Bahia ao Rio Grande do Sul. Os animaizinhos pesam em média sete quilos, têm cor avermelhada e aspecto barbado. Vivem em pequenos bandos, geralmente com seis indivíduos entre adultos e filhotes, que se alimentam de folhas, frutos e flores. São importantes para a regeneração das florestas, pois dispersam sementes pelas fezes. Contribuem especialmente para a reprodução de figueiras e jerivás (palmeira típica da Mata Atlântica). No estado, há registros de grupos de bugio em todas as regiões.

Segundo a bióloga Márcia Jardim, o avanço urbano sobre as áreas verdes muitas vezes interrompe os corredores naturais de passagem dos animais, isolando grupos de primatas uns dos outros. A conseqüência é o cruzamento entre parentes, o que pode provocar problemas genéticos, tornando-os mais suscetíveis a certas doenças. Este é um dos fatores que ameaça a sobrevivência da espécie. A destruição das florestas também reduz abrigos e alimentos necessários aos bugios. Em outros municípios do estado, eles perderam muito terreno para a agricultura, a pecuária, a construção de hidrelétricas e de estradas.

O Programa Macacos Urbanos é constituído por voluntários e desde 1995 tem convênio com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, com reuniões periódicas. As informações científicas sobre as populações dos primatas auxiliam na definição de políticas públicas. A intensa mobilização dos pesquisadores durante as discussões do Plano de Desenvolvimento Urbano e Ambiental da cidade influenciou a mudança do traçado de uma estrada que passaria entre o Morro São Pedro e o Morro da Extrema, na Zona Sul. Agora, está em andamento uma campanha, junto ao Ministério Público, para que sejam encapados os fios da rede de energia elétrica do Lami, um dos bairros onde os macacos aparecem nas ruas da cidade.

“Nosso trabalho tem o respeito do poder público”, comenta Felipe Viana, que também participa do grupo de universitários que fazem as pesquisas de campo. Ele é presidente da Associação dos Moradores do Morro São Pedro, que reúne vários ambientalistas proprietários de terras. O São Pedro é um dos morros mais altos da capital, com 289 metros, e importante área de habitação dos bugios-ruivos. Vizinhas aos macacos, estão instituições interessadas na proteção da natureza, como o Centro Espírita Beneficiente União do Vegetal (UDV), sociedade religiosa fundada nos anos 60 em seringais da Amazônia, com base em rituais indígenas. Os moradores do Morro São Pedro estão tentando criar uma rede de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) para garantir a preservação da mata nativa, e com ela seus bugios.

* Cristina Ávila é jornalista em Porto Alegre, especializada em Divulgação Científica pela Universidade de Brasília (UnB). Cobriu meio ambiente para o Correio Braziliense por seis anos.

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