O avião anfíbio novinho em folha do Greenpeace – um Cessna Caravan capaz de transportar até dez pessoas – tocou a pista de terra do aeroporto de Vila Rica, no norte do Mato Grosso, por volta do meio-dia, hora local, na quarta-feira, dia 18 de maio. Tão logo o piloto Fernando Bezerra cortou o motor, Paulo Adário, coordenador da Campanha Amazônia da ong, pulou para o solo e vestiu um colete azul que tinha a estampa, em letras amarelas estilizadas, da marca de sua organização. O gesto chamou a atenção. Afinal, até ali, em quase dois dias de sobrevôo sobre o Mato Grosso e o sudoeste do Pará monitorando desmatamentos, ele tinha feito um esforço para escamotear sua identificação, a ponto de mandar arrancar das asas do avião as insígnias do Greenpeace.
O cuidado em permanecer anônimo tinha uma ótima razão. Por conta de seu trabalho para manter de pé a floresta amazônica, em alguns lugares da região, principalmente no Pará, Adário, se não é um cara marcado para morrer, é sem dúvida sujeito candidato a levar uns tapas, algumas cusparadas ou no mínimo insultos pela cara. “Botei o colete do Grinpa (forma pela qual na intimidade ele se refere à Ong) porque aqui nós não somos tão visados e a nossa identificação às vezes causa uma catarse que nos ajuda a descobrir o que está acontecendo”, recordaria ele mais tarde. No aeroporto de Vila Rica (foto), tosca construção de alvenaria em cujo saguão há um bar que apesar das condições de higiene suspeitas tem um pastel de carne delicioso, a marca do Greenpeace atiçou um grupo de quatro homens que tinha partido de avião naquela manhã de Goiânia rumo à Terra do Meio, no Pará, e fazia uma escala para reabastecimento.
Ao ver o colete de Adário, um deles, vestindo camisa social cor de laranja da grife Ralph Lauren, sapatos de camurça tinindo de novos e pulseira e relógio para lá de vistosos, não resistiu. “Para que vocês usam esse avião?”, perguntou. “Para monitorar desmatamentos”, ouviu de volta. Outro homem do grupo, de aspecto mais humilde, vestindo uma camisa de malha e com a barba por fazer, resolveu abrir o coração. “Estou dentro de uma área sem título lá na Terra do Meio. Você sabe como anda essa história de criação de Parque Nacional por lá?” Seu nome é João Henrique da Silva, sujeito que ocupa 600 alqueires já desmatados na Terra do Meio, comprados há cinco anos de colonos que ocupavam o local.
Silva explicou que ele e seus companheiros de viagem estavam todos na mesma situação (foto). Detinham posse de terras públicas na região e estavam preocupados com seu futuro por conta do decreto presidencial de fevereiro deste ano que demarcou na área um mosaico de Unidades de Conservação. Apontou para um de seus colegas de viagem e disse que ele era americano, com posse de terra dentro do que hoje é o Parque Nacional da Serra do Pardo. O gringo foi saindo de fininho, mas isso não pareceu arrefecer a vontade de Silva de abrir a boca. “Ele ali é o cara que fez o desmatamento grande no ano passado”, falou, apontando para um homem da camisa laranja que, constrangido, admitiu a fama que o colega lhe atribuía, para depois avisar: “Você está falando demais”.
Silva não se fez de rogado. “Mas eu quero falar”, insistiu. Adário aproveitou a deixa. “Então aproveita porque a imprensa está aqui”, disse apontando para o repórter de O Eco e equipes da Folha de S. Paulo, Rede Globo e Reuters que estavam participando do sobrevôo da região organizado pelo Greenpeace. O homem da camisa laranja tentou fazer o mesmo que o gringo, sair de banda, mas não deu. Os jornalistas o cercaram. Afinal, ele era a estrela daquele grupo, autor do desmatamento que virou símbolo no ano passado na Terra do Meio. Foi capturado pelas lentes do satélite que serve ao Deter – programa do governo federal que monitora o estado da floresta em tempo real – no dia 22 de junho e, além de extenso, com exatos 6.238 hectares, assumia na imagem um formato que o tornava impossível de ser esquecido: parecia um revólver.
Cercado pelos jornalistas, reconheceu que era o autor intelectual do desmatamento, mas foi o único momento em que se dispôs a falar a verdade. A partir daí, deu a si próprio vários nomes e sobrenomes – Marcelo ou Santiago, Moura ou Zamora – posou de vítima e desafiou a autoridade do governo federal na região. Disse que tinha posse de apenas 4.600 hectares, comprados há dois anos de um grileiro, bem onde foi criada a Estação Ecológica da Terra do Meio em fevereiro, e que achava uma bobagem a implantação de Unidades de Conservação por lá. “A terra se presta à agricultura. É plana e tem ph alto”, ensinou. Com cara não muito convincente, contou que era paulista, de Presidente Prudente, e que foi para o Pará depois que sua fazenda no Paraná foi invadida pelo MST. “Desapropriaram a área por 2 mil reais o alqueire em lugar onde na verdade ele vale 20 mil reais. Estou na Justiça até hoje”, disse.
Meio encabulado, contou que sabia que seus hectares na Terra do Meio estavam em terras públicas, mas que resolveu tomar o risco assim mesmo. Disse que tinha gado em cima do solo, que estava trabalhando normalmente e que até agora ninguém do governo tinha aparecido para tirá-lo de lá. Perguntado se tinha receio de ser enxotado pelas autoridades, assumiu tom desafiador. “Enquanto Polícia e Exército não chegarem, não saio de lá. E, se chegarem, saio, mas volto depois”, afirmou. Reassumiu um certo ar de humildade quando Maria Pia Palermo, repórter da Reuters, desconfiada, insistiu em obter seu nome. “Nome para quê?”, desconversou. Ficou com cara de sem graça tão logo o repórter Alberto Gaspar meteu-lhe o microfone com a marca da Globo na cara (foto).
Não cheguei a prestar atenção na sua conversa com Gaspar. Mas depois o vi retomando o papo com Adário, do Greenpeace. Parecia mais confortável em trocar um dedo de prosa com o ambientalista, a quem contou que sua atividade principal de vida era a grilagem de terras. Tinha grilado 300 mil hectares na Terra do Meio, comprados há alguns anos da Cotril Agropecuária, empresa sediada em Goiânia. Dividiu a área em 60 lotes e já tinha vendido 37 deles, por 68 mil reais cada um. Disse que os contratos tinham cláusula de risco e que os compradores sabiam o que estavam levando. “Lá não tem ninguém inocente”, disse, revelando que pretendia desmatar mais mil hectares e que não tinha medo de levar multa. “As posses estão todas em nomes de laranjas”.
As reticências de Marcelo ou Santiago na sua conversa com os jornalistas contrastaram com a candura das palavras que saíram da boca de João Henrique Silva, que durante anos foi imigrante ilegal nos Estados Unidos, onde trabalhou como motorista juntando dólar para poder comprar terra quando voltasse ao Brasil. Ele contou que não era dono dos 600 alqueires goianos (cerca de 2.900 hectares) já desmatados onde pôs gado – “as terras são do governo” – mas que se sentia dono deles mesmo assim porque foi para a Terra do Meio em 2000 incentivado pelo governo do Pará e porque o governo federal não parece ligar para a região. “Comprei a posse de quatro pessoas com aval do Instituto de Terras do Pará e cuido delas melhor que o governo. Fiz estrada sozinho e quando alguém lá adoece sou eu quem cuida de arranjar avião para levá-lo até um médico”, disse.
A ausência de governo no local parecia ser o principal argumento para justificar sua ocupação ilegal na região. “O Estado não liga para aquilo lá. Eu ligo”, afirmou, contando que entrou com mandato de segurança na Justiça para garantir sua permanência na área, que também ficou dentro da demarcação da Estação Ecológica da Terra do Meio. João Manuel, vereador de Vila Rica pelo PFL, que correu ao aeroporto pouco antes de nossa partida, tão logo foi informado que sua cidade estava recebendo jornalistas, dois deles da Globo, entabulou conversa no mesmo tom de Silva. Pecuarista, reclamou da ausência do governo federal na Amazônia. “O governo nunca está aqui. Só aparece para dar porrada e depois some. Se ele quer manter a floresta de pé, tem que provar para as pessoas que estão na região que isso vai valer a pena”, afirmou.
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