A Floresta Nacional (Flona) Roraima nasceu por decreto, em 1989. Tinha 2,6 milhões de hectares e era como um queijo suíço, toda furada por reservas indígenas (no mapa, em marrom). Três anos depois, os Yanomami ganharam do governo o direito de ocupar 9,6 milhões de hectares na região, e sua enorme fatia de terra se estendeu sobre 95% da área da Flona (no mapa, as terras indígenas em amarelo).
Ficou apenas uma pontinha de fora, cerca de 140 mil hectares, para as atividades de exploração controlada. Mas o pedaço de floresta também não durou muito. Em 1996, enquanto todo mundo olhava para o lado Yanomami, o Incra desembarcou no lado leste da Flona cerca de 3 mil famílias de sem-terra. Ali criou os assentamentos Samaúna e Vila Nova, com crédito fundiário, estradas e infra-estrutura, consumando a ocupação.
Na área dos índios, a floresta aparentemente segue bem conservada. Mas do lado dos colonos começou a ser detonada de cara. O Ibama tentou embargar os assentamentos, mas veio ordem de cima para que os burocratas se entendessem, embargando o embargo, deixando a terra para os novos ocupantes.
O diretor da Flona Roraima, engenheiro florestal Felipe Marron, 48 anos, garante que negocia uma solução, mas está cercado de descrença. Sobre sua mesa, no gabinete na capital Boa Vista, ele tem uma caneca que ganhou dos colegas, de gozação: nela está escrito “floresta sem mata”.
Segundo ele, os entendimentos com o Incra caminham a passos lentos e penosos, mas caminham. Sua proposta é entregar toda Flona hoje existente, exceto a parte tomada pelo Incra, para o território Yanomami. Em troca, obteria do Incra uma nova área para implantar uma Floresta Nacional, mais ao norte, na região chamada Pirá-andira, um pouco maior, compensando assim a Flona quase perdida pelo Ibama ao longo dos anos.
Tradução: o decreto de 1989 foi pras cucuias, os índios ficam com seu naco preservado, os colonos com seu naco devastado, e a nova Flona ainda está para ser parida nos gabinetes de Brasília. O diretor ainda não tem certeza do nascimento da nova área, e teme perder a que tem. “As frentes de ocupação são rápidas, logo elas podem se espalhar. Nós não temos fiscais. Mas pode ser que a gente consiga recuperar alguma coisa”.
Além dos índios e dos ex-sem-terras, Marron também não tem o apoio dos ambientalistas. “O conceito das Florestas Nacionais recebe muita oposição por parte das ongs, que não querem nenhum tipo de manejo”. As Flonas, por lei, podem aprovar planos de manejo sustentável. Ele acha que tanto a ação do Incra como a das ongs (ele não mencionou nenhuma pelo nome) “podem ser parte de uma política de acabar com as outras Flonas”.
A política de fim das Flonas amazônicas de fato existe. Mas está sendo conduzida por sua própria instituição, o Ibama. O Atlas de Conservação da Natureza Brasileira, lançado este mês pela Editora Metalivros com apoio técnico do Ibama, anuncia com todas as letras: “Recentemente, o Ibama abriu mão de lutar por onze Florestas Nacionais, assumindo sua extinção”. Todas no noroeste do Amazonas, na região conhecida como Cabeça de Cachorro. O motivo: sobreposição por Terras Indígenas. Com a decisão do órgão ambiental de desistir dessas terras e deixá-las exclusivamente com os índios, a área coberta por Unidades de Conservação na Amazônia diminuiu, em 2004, cerca de 4 milhões de hectares.
Antônio Carlos Hummel, diretor de Florestas do Ibama, diz que o processo ainda não foi formalizado, mas está decidido. Ele alega que a criação das Florestas Nacionais no norte da Amazônia no final dos anos 80 obedeceu muito mais a critérios geopolíticos do que de preservação dos recursos naturais. Era tempo do Programa Calha Norte, do governo federal, que queria promover a ocupação humana da floresta e das zonas de fronteira pelo estímulo a projetos econômicos. “Houve vício de origem na criação das Flonas”, justifica, para depois completar: “Tradicionalmente, aquelas terras eram dos índios”, diz Hummel.
O que significa que todas as Flonas instituídas naquela época, naquela região, em sobreposição a terras indígenas, podem ter o mesmo “vício de origem”. E portanto passíveis de abandono por parte do Ibama. Nesta condição encontram-se as seguintes Florestas Nacionais: Purus (AM), Bom Futuro (RO), Mapiá-Inauini (AM), Amazonas e, claro, a Flona Roraima. Todas criadas entre 88 e 89, somando quase 5 milhões de hectares. Hummel reconhece que elas estão sendo reavaliadas.
Mas perder a tutela do Ibama não significa deixarem de ser áreas protegidas. Simplesmente porque elas nunca foram protegidas, explica o responsável pelas Flonas em Brasília. “Não tem nenhuma atividade do Ibama nessas áreas. A partir do momento que se verificou a sobreposição, a administração ficou só com a Funai. A gente nem sabe o que está acontecendo por lá, mas como a população indígena é rarefeita a área deve estar bem preservada”, comenta Hummel.
Falta comunicar os planos de Brasília ao diretor da Flona Roraima, Felipe Marron, que tenta demonstrar otimismo. “Tenho uma promessa do Incra de ocupar 72 mil hectares de suas terras ao norte da reserva, o que nos deixaria de um tamanho maior do que somos hoje. Mas por enquanto é promessa, o pessoal está analisando a proposta”, diz ele, enquanto deposita uma caneta naquela sua caneca de mesa.
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