Os funcionários do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), cujo prédio fica na área do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, trabalham cercados de uma invejável paisagem verde. Mas por vezes a tranqüila convivência com a floresta é interrompida por um barulho de choque em suas janelas. São pássaros desavisados.
Maria do Carmo Pacheco foi contratada no ano passado, e não passou muito tempo até passar pelo primeiro susto do baque na janela. Seus pendores ambientalistas a levaram a descer até o canteiro em frente ao prédio para tentar descobrir o que acontecera. Achou um passarinho ferido, que ela reanimou ali mesmo, com água, recebendo em troca a recompensa de uma enérgica bicada.
Aquele tinha sobrevivido, mas Maria do Carmo ficou curiosa e descobriu, em suas conversas no Serpro e por testemunho próprio, que os acidentes eram freqüentes, muitos resultando até em morte. Preocupada com a preservação dos animais, enviou no início de 2005 uma denúncia para a Associação de Amigos do Jardim Botânico. A carta repercute até hoje, levando os moradores a discutirem as causas do problema e a proporem soluções para ele.
A explicação é simples. Os vidros espelhados refletem a floresta do Jardim Botânico, enganando os passarinhos. Eles pensam que a imagem é a continuação de sua área de vôo e acabam se chocando contra o prédio. E isso não acontece apenas em locais com floresta em volta. Qualquer prédio envidraçado pode refletir outras imagens bem conhecidas dos pássaros: céu, sacadas, árvores de rua e até pontos de ônibus.
O coordenador da Comissão de Meio Ambiente Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Otto Ribas, explica a moda dos prédios de vidro: “O efeito da transparência dos vidros torna os edifícios mais leves e, de certa forma, sedutores”, afirma o arquiteto. O vidro é uma opção barata e ajuda a preservar o efeito do ar condicionado, o que economiza energia. “Algumas legislações urbanísticas incentivam a utilização intensiva do vidro como forma de poupar energia”, afirma Dagoberto Pinheiro, sócio dos Amigos do Jardim Botânico e do Clube de Observadores de Aves.
Este tipo de construção, no entanto, nada tem de positivo para países cujas temperaturas são mais elevadas, como o nosso. Os vidros funcionam como uma espécie de estufa, recebendo o calor externo do sol e impedindo que ele saia, aquecendo enormemente o prédio. Apesar de conservar o fresquinho do ar condicionado, sem ele os vidros tornam o ambiente insuportavelmente quente.
O espelhado e o insul-film surgem como opções para minimizar a absorção do calor, embora não tenham tanta eficácia. “A construção de um edifício não é pautada, infelizmente, pela adaptação climática, muito menos pela idéia de sustentabilidade ambiental”, afirma Otto.
Não existe estimativa no Brasil sobre a quantidade de aves acidentadas contra prédios e outros obstáculos impostos pelo homem. Mas nos Estados Unidos existe. Além dos prédios, o vôo dos pássaros também é interrompido pelas altíssimas torres de televisão ou de celular e pela fiação elétrica que corta as cidades. Mas os campeões são mesmo os edifícios envidraçados. As pesquisas norte-americanas divergem sobre os números, as mais contidas ficando em 100 milhões de pássaros mortos, e as mais alarmistas chegando à casa de 1 bilhão de vítimas por colisão com prédios.
Durante a estação de migração, quando centenas de espécies de pássaros sobrevoam o céu de Nova Iorque, o problema piora. A maioria dos pássaros voa à noite, guiada pela lua e pelas estrelas, numa altura de 150 a 600 metros. As luzes dos prédios que ficam acesas durante a noite confundem os pássaros, assim como as luzes das torres. Durante o dia a confusão se dá pelo reflexo nos vidros. Quando estes são transparentes, muitos pássaros voam na direção de plantas decorativas dentro de escritórios. Em dias de tempo ruim e baixa visibilidade, as chances de colisão aumentam, pois eles ficam confusos com a luz artificial dos prédios e cegos pela neblina.
A campanha Project Safe Flight apresenta sugestões para minimizar os riscos para os pássaros. Uma das primeiras providências é desligar as luzes dos prédios no período noturno. Como em prédios comerciais não é possível acabar o expediente mais cedo só para que as luzes sejam desligadas, o grupo propõe conversar com arquitetos e proprietários para buscar outras formas de tornar os vidros visíveis aos pássaros. Uma extensa rede de voluntários acorda cedo para recolher pássaros feridos nas ruas na intenção de salvá-los.
Buscar soluções junto a arquitetos e construtores também foi a iniciativa da Birds & Buildings Conference, realizada no Instituto de Tecnologia de Illinois este mês. A Conferência teve como objetivo divulgar o problema da mortandade de pássaros e propor diretrizes para profissionais do ramo. Uma novidade é o uso de um filme aderente nos vidros, que permite a entrada da luz através de perfurações, mas diminui a reflexividade e transparência do material.
Enquanto isso, no Brasil, a pouca repercussão dada ao tema deixou vários sócios da Associação Amigos do Jardim Botânico preocupados. Maria do Carmo pediu para que não envolvessem sua instituição – afinal o prédio do Serpro é apenas um exemplo de um problema que ocorre em toda parte – mas sua iniciativa propiciou o debate em torno de soluções para garantir aos pássaros um vôo seguro. Como a utilização de vidros com pontos, listras ou decalques que chamem a atenção, persianas de concreto na fachada (brise-soleil ou quebra-sol) e a adoção de vidros opacos ou translúcidos. O professor Eduardo Jordão apresentou idéia criativa: colar adesivos de predadores, como gaviões, para assustar os pássaros.
No entanto, Dagoberto Pinheiro reconhece que as inovações só devem privilegiar futuras construções. As mudanças arquitetônicas esbarram no valor imobiliário dos modernos prédios de vidro. O Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea-RJ) diz que não existe legislação específica sobre os materiais que podem ou não ser usados em determinadas áreas. Para Maria do Carmo, bastaria ter bom senso. “Os arquitetos devem ter a preocupação de estar em harmonia com o meio ambiente”, afirma. Ela espera que os meios de comunicação colaborem, fazendo propaganda negativa deste tipo de prédio “arquitetonicamente incorreto”.
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