Reportagens

Quatro dias para morrer

Centro de Controle de Zoonoses de Porto Alegre funciona como uma câmara de extermínio de cães e gatos encontrados nas ruas, mesmo saudáveis ou filhotes.

Liège Copstein ·
16 de junho de 2005 · 20 anos atrás

Quatro dias. Esse é o prazo que os cães e gatos recolhidos nas ruas da capital gaúcha têm para escapar à injeção letal, no Centro de Controle de Zoonoses de Porto Alegre (CCZPA). Se ninguém aparecer para buscá-los ou adotá-los neste prazo exíguo, é morte certa.

Os animais chegam ao centro de várias maneiras. A mais comum é quando capturados pela caminhonete da vigilância sanitária, a carrocinha moderna. Outro jeito é quando “denunciados” por cidadãos zelosos da saúde pública.

Ou, mais chocante, sendo levados por seus próprios donos. Isso acontece ou porque são muito velhos, ou porque estão doentes. Muitas vezes são filhotes, recém-nascidos e já indesejáveis. Poucos são de raça – mas nem os bem-nascidos estão imunes à má sorte. Entre os condenados encontrados lá na semana passada, estavam dobermans ferozes, poodles amáveis e dálmatas elegantes.

O CCZPA oferece os rejeitados à adoção, mas isto raramente acontece. Os poucos que escapam ainda são esterilizados. Mas a grande maioria acaba num saco de lixo que vai para uma vala comum, para ser coberta com cal.

Tal poderá ser o destino de Catarina, pitbull, idade desconhecida, jaula 22, entregue pelo próprio dono. Motivo alegado: tentou morder uma mulher. Punição extra: foi proibida de tomar sol, mesmo enquanto aguardava sua injeção.

No “presídio” do CCZPA – como em quase todos, aliás – só há inocentes. Num dia qualquer há 300 deles à espera de uma chance. Alguns cooperam com a direção e conseguem um abrandamento temporário da pena. Titã, um imenso dog alemão negro, e Max, grandão mas vira-lata (preferimos o termo SRD – sem raça definida), escaparam do corredor da morte: conseguiram os cargos de cães de guarda.

Os carcereiros adotaram Pink, um SRD branco especialmente bonito. Ele perdeu um dos olhos, já vive lá há dois anos e ganhou a simpatia do pessoal – objeto de ternura de gente que, por dever de ofício, precisa ser muito dura. Os funcionários contam que também se apegaram ao gato Tom, um sobrevivente-residente, mas este não foi encontrado pela reportagem.

“A gente sempre se apega a alguns. Tem cachorros que me dá vontade de perguntar o que estão fazendo aqui. Poderiam ser os meus”, confessa a veterinária Sônia Maria Duro (foto), há 20 anos no serviço. Fora dali, ela é a dona de Tobi, Floqui, Jessi e Dara. Sônia conta que “os funcionários se afeiçoam, todo mundo têm bicho adotado daqui, tivemos até que limitar um pouco essas adoções”. Na sala onde ficam os gatos filhotes, há bichinhos e flores pintados nas paredes. Mas num canto do mural preso à parede fica o lembrete sinistro: a escala semanal das equipes de “eutanásia”.

No CCZPA há disciplina. Os detentos, mesmo que algum dia tenham atendido por Saddam, Madonna ou Fred, já não têm nomes. Os cães são identificados por números nas coleiras, e os gatos por anéis na base das caudas, que designam suas jaulas: 1A, 1B, 2A.

Surpreendentemente, não são visíveis animais magros, doentes, sarnentos, feridos, tão comuns nas ruas. Onde estão? Os considerados irrecuperáveis são mortos já na chegada. Os que respondem vagarosamente ao tratamento, também. São critérios questionados pelas entidades protetoras dos animais, que reclamam de uma má aplicação das verbas públicas. Põem em dúvida se algum animal de fato recebe tratamento veterinário lá, se tem uma real chance de adoção, ou se o CCZ é apenas uma usina de mortes.

Em fevereiro deste ano, três militantes dos direitos dos animais estiveram de surpresa no local para resgatar uma cadela da raça husky que diziam ter sido capturada nas ruas pela equipe do Centro, sofrendo espancamento mesmo depois de imobilizada. Conseguiram circular pelas dependências desacompanhadas e fotografaram containers cheios de animais mortos, inclusive filhotes, que em tese têm grande chance de adoção. Acharam ainda o corpo de um cão decapitado. Segundo várias organizações, entre elas a Associação Protetora dos Animais de Canoas (Aprocan), a Carrocinha Nunca Mais, o Sítio dos Bichos e a Bicho de Rua, quase 3 mil animais, a maioria jovens e saudáveis, foram sacrificados só no primeiro semestre de 2004 em Porto Alegre.

A triste verdade é que os centros de controle de zoonoses não são orgãos de proteção aos animais, mas sim de controle de pragas. Isso está bem claro para o coordenador do CCZ, veterinário Marcelo Vallandro (foto), dono de Aretha, Dimple, Cindy, Daiana, Preta, Duffy, Tyson e Xuxa. “Existem várias doenças que são passadas dos animais para os homens, como a leishmaniose e a hidrofobia”, afirma ele. “A nossa função é a prevenção das zoonoses”. O fato de que há mais de 30 anos não é registrado um caso de raiva na região Sul, para ele, é irrelevante: “Não significa que esteja erradicada”. Sobre o flagrante do cãozinho sem cabeça, ele explica: “Uma das atribuições do Centro é fornecer o cérebro de animais suspeitos de portarem zoonoses para análise em laboratório. A cabeça foi removida após a eutanásia. Aqui ninguém é samurai para estar matando cachorros com espada”.

Vallandro lembra que o CCZ disponibiliza animais para doação a cada quinzena, nos domingos, próximo ao café do lago no Parque da Redenção, no evento batizado de “Cantinho da Adoção”, partilhado com a entidade Protetores Voluntários. A Protetores Voluntários exige dos candidatos a dono dos bichinhos a resposta a um cuidadoso questionário, além da assinatura de um termo de compromisso, mas o CCZ não pode, por lei, impor restrições à adoção. Na prática, esses animais são entregues a qualquer cidadão adulto, o que aumenta as possibilidades de novo abandono e maus-tratos. “Não podemos discriminar ninguém”, justifica o veterinário.

Se há um único ponto em que protetores de animais e autoridades concordam, é que a tragédia dos animais abandonados só pode ser minimizada com a posse responsável. Isso significa desde assumir as obrigações com alimentação, veterinário e segurança durante toda a vida do animal, até a prevenção da procriação indesejável, através da esterilização cirúrgica, rápida, indolor e relativamente barata. Aos que se escandalizam com essa prática, sugere-se uma visita surpresa ao CCZ mais próximo.

* Liège Copstein é jornalista em Porto Alegre. Ama gatos acima de tudo.

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