A taxa anual de desmatamento na Amazônia, que sempre foi anunciada no mês de abril pelo governo – a última, relativa ao biênio 2003/ 2004, só saiu em maio – vai ficar pronta antes de 2005 acabar. “Teremos o número em dezembro”, diz João Paulo Capobianco, diretor de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Mas quem quiser, por curiosidade ou, no caso do governo, por dever, saber o que anda acontecendo agora com a floresta na região, já tem disponível uma estimativa de razoável precisão. Ela foi feita pelos pesquisadores do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) usando as imagens de satélite do Deter, programa de monitoramento da região por satélite do governo federal, que envia dados, na média, com apenas 30 dias de defasagem.
O trabalho do Imazon, com base nas fotografias capturadas para o Deter entre 1º de agosto de 2004 e 31 de maio deste ano, mostra que foram derrubados nesse período pouco mais de 9 mil quilômetros quadrados de floresta. Como historicamente junho e julho são os meses em que ocorre mais de 50% do desmate anual na região, o Imazon projetou uma taxa para o biênio 2004/ 2005 que ficou muito próxima a alcançada em 2003/ 2004, em torno de 26 mil quilômetros quadrados. Essa projeção poderá ser recalculada com maior exatidão a partir desta semana, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), apoiado no estudo do Imazon, divulga a taxa de desmatamento registrada pelos satélites que servem ao deter no mês de junho. “Ainda vai faltar julho”, diz Carlos Souza, que comandou a pesquisa do Imazon.
“Mas já teremos 11 meses contabilizados em cima do que realmente aconteceu, o que permite melhorar a previsão do número que teremos este ano”, explica ele. Souza, junto com outras Ongs, participou de seminário fechado no Inpe nos dias 27 e 28 de junho no qual apresentou sua pesquisa em cima das imagens do Deter e aproveitou para dar um recado ao governo. Ele tem hoje à sua disposição um sistema de monitoramento que lhe permite se antecipar à ação dos desmatadores na Amazônia. Basta querer, ou poder, se antecipar a eles. Os satélites que servem ao Deter são mais rápidos no envio de informações – o Landsat, satélite que manda os dados que o Inpe emprega para chegar à taxa oficial de desmatamento, é mais lento – mas suas imagens têm menos nitidez. Enquanto o Landsat detecta desmatamentos acima de 6,25 hectares, o sistema do Deter só detecta derrubadas acima dos 20 hectares. Melhor dizendo, detectava.
Na sede do Imazon em Belém, Souza e uma equipe com outros três pesquisadores, passaram dois meses submetendo as imagens feitas para o Deter a um refinamento técnico que ampliou em duas vezes a sua visão. Elas passaram a mostrar desmatamentos acima de 10 hectares. Foi refazendo as contas sobre o que as fotografias mostravam ter acontecido com a floresta entre agosto do ano passado e maio deste ano, que ele e seu time chegaram a conta de 9 mil quilômetros quadrados já devastados e fizeram a projeção mostrando que o Brasil tem tudo para repetir a desatrosa performance de 2003/ 2004. “Eu prefiro não comemorar que acertamos o número”, diz Souza. “Prefiro que o governo use nosso trabalho para começar a agir já e mostrar que erramos na estimativa”. Tudo indica que o governo gostou do que os pesquisadores do Imazon fizeram.
“Nós estávamos fazendo o mesmo tipo de trabalho”, conta um assessor direto da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Ele explica que o trabalho com os dados do Deter, menos exatos que os fornecidos pelo satélite Landsat, envolve alguns riscos metodológicos e muita capacidade de estimativa. “Não queríamos divulgar nada porque corríamos o risco de transformar os dados fornecidos pelo Deter na taxa oficial”, diz. “Estávamos loucos para alguém fazer esse estudo”. A história pode parecer choro disfarçado de quem foi derrotado numa pesquisa científica. Mas o fato de que o Inpe decidiu soltar, agora em julho, a taxa desmatamento de junho obtida pelas lentes dos satélites que servem ao Deter, mostra que o governo decidiu pelo menos encampar os aspectos científicos do trabalho feito pelo Imazon.
A notícia é boa porque o estudo do Instituto desceu a detalhes que ampliam a capacidade do governo de agir na prevenção contra o desmatamento na Amazônia. A pesquisa examinou também a rede de estradas clandestinas na região e mostrou a correlação direta que existe entra elas e a devastação da floresta. Fazem parte da infra-estrutura do desmatamento e sinalizam para onde os madeireiros estão se locomovendo. Com 45% da região já mapeada, os pesquisadores detectaram uma malha viária ilegal com 95 mil quilômetros de extensão que começa exatamente nas rodovias oficiais. Noventa e cinco por cento dos desmatamentos ocorrem a uma distância de até 10 quilômetros dessas estradas não-oficiais. “Agora, não sabemos apenas o que aconteceu, mas o que está acontecendo”, prossegue Souza. “Melhor, dispomos de informação suficiente para saber também onde é preciso levar a repressão”. O problema é que entre saber e agir, no caso do governo, há uma enorme distância.
No seminário do INPE, a ministra Marina Silva prometeu a vários dos presentes, em conversas paralelas, que o governo iria agir com mão de ferro em julho para preservar a floresta. Não contou como. Falou vagamente num aperto da fiscalização. Andou, junto com seu secretário Capobianco, dando até uma previsão de redução do desmate para este ano: entre 5 mil e 6 mil quilômetros quadrados. Seria uma meta? “Não, não é uma meta”, diz Tasso Azevedo, secretário de Florestas do MMA. “É um objetivo, que eu pessoalmente preferia até que fosse uma meta”. E dá para alcançar? “Pois é”, diz Azevedo. Esse é o xis da questão.
As recentes ações do governo federal contra o desmatamento, como as medidas tomadas depois da morte da irmã Dorothy Stang (em fevereiro, no Pará) e a Operação Curupira (em junho, Mato Grosso), atrapalharam o comércio ilegal de madeira na região. O setor já tinha sido prejudicado no ano passado pela decisão do Ibama de não conceder mais autorizações para planos de manejo e restringir a circulação de Autorizações para Transporte de Produtos Florestais (ATPFs) – documento que valida a circulação e comercialização de madeira – no Pará. Embora importantes, essas ações não impediram que o corte de árvores continuasse. Para isso acontecer, ainda falta ao governo demonstrar capacidade de fiscalizar e reprimir no campo.
De concreto, a Curupira e a suspensão de planos de manejo no Pará produziram mesmo foi um aumento no preço da madeira extraída da Amazônia. Hoje, paga-se 150 reais por metro cúbico de tora. Há quatro anos, diz Azevedo, não passava de 60 reais. Entre as madeiras nobres, o Ipê, por exemplo, há quatro meses estava sendo vendido por mil reais. Em junho, já custava o dobro. As análises de imagens recentes de satélite mostram que a derrubada anda comendo solta e no governo suspeita-se que os madeireiros estejam fazendo cortes não-autorizados e deixando a madeira no solo da floresta. “Eles vão estocar o material e aguardar alguma decisão oficial que os permita legalizá-lo num futuro próximo”, diz Azevedo.
Há uma escassez no mercado, mas o que empurrou o preço para cima foi o aumento do risco de se extrair e comercializar madeira sem acesso à rede de corrupção que esquentava a produção ilegal com ATPFs falsas. Portanto, aquela rede clandestina, que ainda tentava ter um mínimo de formalização legal, diante da Operação Curupira foi para o cúmulo da ilegalidade, como aponta Azevedo. E pelo preço que os madeireiros estão obtendo no mercado, parece que está valendo à pena.
Para fazer com que eles paguem ainda mais caro pela sua ousadia, o governo teria que estar agindo no campo. Lá, infelizmente, ele continua de mãos atadas. Sua estrutura de fiscalização e controle no Mato Grosso, corroída pela corrupção, a Curupira desmantelou. Vai levar um tempo para ser reerguida. Para piorar as coisas, no Pará, onde ela também nunca foi um exemplo de lisura e competência, o Ibama está paralisado por uma greve. Os dois estados são os campeões do desmatamento e a situação por lá reflete o quanto o governo terá que suar para conseguir alcançar seu desejo de reduzir o desmatamento na Amazônia, ainda este ano, em pelo menos 5 mil quilômetros quadrados.
“O encontro no INPE deixou claro: temos a tecnologia necessária para detectar o desmatamento. A etapa técnica está cumprida. Falta agora ação política”, disse Enrico Bernard, coordenador da Conservação Internacional (CI) na Amazônia e representante da ong na reunião em São José dos Campos. Lá, a organização mostrou o outro lado da moeda: o que significa perder 26 mil km² de floresta amazônica em termos de biodiversidade. Segundo cálculos feitos em cima de densidade de plantas por área, tombaram entre 117 milhões e 143 milhões de árvores de agosto de 2003 a julho de 2004. Se cada tora fosse colocada lado a lado ao longo de uma estrada, cobririam quase 4.900 quilômetros. Uma distância rodoviária superior à que separa Belém, no Pará, de Chuí, na fronteira do Rio Grande do Sul com Uruguai. “O número é assustadoramente alto”, comenta Bernard.
Mas não pára por aí. No mesmo período, algo entre 43 milhões a 50 milhões de aves foram afetadas. Não se pode afirmar que elas morreram, mas certamente perderam casa e alimento. A CI também tentou calcular o impacto da devastação sobre os primatas. Utilizou estudos realizados em Rondônia, Mato Grosso e Pará (os campeões em desmatamento) e descobriu que pelo menos 915 mil macacos foram afetados de alguma forma. Segundo a ong, as espécies na Amazônia não são amplamente distribuídas e a perda de biodiversidade é uma conseqüência irreversível do desmatamento.
A perda de recursos naturais não consegue nem ser punida. Do total de multas aplicadas pelo Ibama entre 1999 e 2002, 82% não foram pagas. Para quem esteve na reunião do INPE, os dados do desmatamento revelam muito mais do que a área de floresta que se perdeu. Revelam caminhos a serem seguidos, área críticas a serem priorizadas, e principalmente a necessidade de investimento e vontade política para impedir que a Amazônia seja derrotada pelo estado de anarquia que vigora por ali.
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