Mudou o vento na costa de Santa Catarina. De três anos para cá, ela começou a atrair visitantes numa época do ano em que o céu está quase sempre cinza, chove muito e faz tanto frio que às vezes se vê pinguim na praia. É uma mudança e tanto para os hoteleiros e donos de restaurante da região, que estavam acostumados a viver só do verão. Quando o calor passava, cerravam suas portas e aguardavam o termômetro subir. “A maioria ainda fecha”, diz Mozart Antunes Maciel, dono da Pousada do Surf, na praia de Itaperubá, entre Laguna e Imbituba, aberta o ano inteiro. Azar dels. No ano passado, entre julho e outubro, Maciel manteve a média de 35% dos seus quartos oupados. “Antes, não vinha quase ninguém”, ele compara.
Na Ilha do Papagaio, um dos hotéis mais bem cotados desse litoral, o índice de ocupação chegou na última temporada de praias desertas a 40%. Em setembro passado, quase a metade dos hóspedes veio de fora do Brasil, principalmente da Europa. Seu proprietário, Renato Sehn, já cadastrou 50 pessoas interessadas em garantir a vaga este ano. No Silvestre Praia Hotel, em Imbituba, a ocupação de quartos no inverno foi de 50%. “Um operador de barco levou 2 mil pessoas ao mar em 2004”, informa o dono do hotel, Adriano Silvestre. “Talvez em dois, três anos, a gente não possa mais chamar o inverno aqui de baixa estação”, aposta. Silvestre, e a indústria de turismo local, sabem exatamente a quem agradecer se isto acontecer. José Truda Pallazzo Jr., um gaúcho que tem opinião sobre quase tudo, todas enfáticas e muitas, como se verá adiante, incorretas.
É dele a invenção do turismo de inverno na costa catarinense. Logo Truda, que não tem o menor tino comercial, nem jamais pensou em cuidar de turistas. Mas foi ele quem lhes deu uma razão para visitar o litoral de Santa Catarina fora de época: observar as baleias francas, que vão para as praias do estado veranear com seus filhotes durante os meses de inverno na Antártica. Elas sempre tiveram esse hábito. Mas 200 anos de caça praticamente a fizeram sumir da região. Vinte anos atrás, nem baleia para ver existia.
Os primeiros colonizadores europeus instalaram-se no litoral catarinense justamente por causa da maciça presença de baleias francas. Seu óleo era usado para iluminar cidades na Europa e nos Estados Unidos. Mortas, elas valiam muito dinheiro. No século XVIII, os portugueses fundaram cinco armações – bases de operação para navios baleeiros – em praias da costa catarinense. O apogeu dessa indústria aconteceu na primeira metade do século XIX. A matança indiscriminada tornou as francas escassas. Mas a caça continuou ainda por quase 150 anos. A última baleia a morrer foi arpoada em 1973. Sua carcaça foi retalhada em Imbituba. O primeiro avistamento oficial de uma franca depois desse episódio só foi acontecer 9 anos mais tarde. No ano passado, apareceram 91 baleias no mares da região Sul do Brasil. Todas chegaram nadando. Todas foram embora do mesmo modo, sem serem incomodadas.
Truda freqüenta a costa catarinense desde o final dos anos 70, quando ainda era adolescente. Já se interessava por meio-ambiente, preocupava-se com o futuro das baleias, mas foi só depois de um encontro em Brasília com o almirante Ibsen Gusmão Câmara que elas entraram definitivamente na sua vida. Tratava-se do vice-chefe do Estado Maior das Forças Armadas. E o regime era o militar. Truda conseguira a audiência por pura petulância. Ligou dizendo que vinha de Porto Alegre para lhe entregar um abaixo-assinado contra a matança de baleias. “Fiquei curioso”, contaria o almirante anos mais tarde. “A secretaria disse que tinha um menino querendo falar comigo sobre francas. Claro que eu tinha que recebê-lo”. Pouco tempo depois, indicava Truda para cumprir com uma ajuda de 2 mil dólares um convênio internacional para ver se ainda havia baleias francas na costa catarinense. O “menino” fez muito mais do que isso.
Viu a primeira baleia em 1982. Decidiu entretanto que achá-las não era suficiente. Iniciou um movimento pela sua preservação que começou com os dólares que lhe foram entregues pelo almirante e deu na fundação, três anos mais tarde, da ONG Projeto Baleia Franca. Até 2001, sobreviveu graças basicamente à sua obstinação, a dedicação de voluntários, o carinho dos amigos e o dinheiro de seu pai, morto em 1994. Foi uma época de vacas muito magras, lembra a bióloga-chefe do projeto, Karina Grosch, que começou lá como estagiária em 1996. “Vivíamos de pedir pouso, de pegar equipamento emprestado. Era uma aventura só”, diz. “Durante 17 anos, o lugar onde eu mais dormi foi em banco de trás de carro”, conta Truda.
Levou anos sendo “visto como doido e encrenqueiro”. Olhava para a Petrobras como se olha “uma petrolífera cheia de passivos ambientais”. O gêlo entre ele a empresa só quebrou em 2001, com um patrocínio anual de 380 mil reais. Mas é graças a ele que hoje sua ONG tem “condições de fazer pesquisa de primeiro mundo sobre as francas”, diz Karina. O dinheiro que seu chefe se recusou tanto tempo a pedir lhes meios, “por exemplo, de fazer cinco vôos de helicóptero por ano para monitorar a população de francas na nossa costa Sul e perceber a sua importância para as baleias”. Truda reconhece que não tem do que reclamar: “Demos um salto de qualidade no trabalho e eles nunca se intrometeram nas nossas pesquisas”.
Da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza ele se aproximou em 1993. Por causa de golfinhos. Conseguiu com ela o financiamento para implantar, no município de Celso Bastos, a Área de Proteção Ambiental de Anhatomirim, criada um ano antes pelo governo federal para proteger os mamíferos que frequentam uma baía na região. Ele recusa a paternidade da APA, mas admite que a idéia, forneceu informações e fez inclusive a prestação de conta do trabalho. O segundo patrocínio veio em 2002, quando a Fundação bancou para o Projeto Baleia Franca um projeto para estudar o turismo de observação de baleias.
Para perceber o impacto destes 23 anos de trabalho initerrupto de Truda na região, é preciso tirar os olhos do mar e trazê-los de volta à terra. Para Imbituba, por exemplo. Ela cresceu da última armação a ser fundada no litoral do estado, em 1795, e foi a última a desativar a sua indústria baleeira, em 1973. Suas duas últimas concorrentes locais tinham largado a pesca da baleia 20 anos antes. Foi essa Imbituba que Truda transformou a franca numa espécie de celebridade. A baleia agora está em toda parte, espalhada em calçadas por esculturas de epóxi, pintada em letreiro de bar, stampada em camiseta e até como chuveiro de banhistas na areia.
Até museu só para ela Imbituba tem. Foi fundado pelo próprio Truda há dois anos, com objetos recolhidos por lá mesmo e outros que chegaram do exterior. Para Sehn, da Ilha dos Papagaios, foi até lógica a mudança. “Históricamente, Imbituba estava ligada à baleia”. Mas nem por isso a acha menos impressionante. “Mas seu sentimento em relação a ela fez, em apenas 15 anos, uma virada de 180 graus”. As comemorações da Semana da Baleia Franca, em setembro, começaram lá. Dali, espalhou-se pela região.
Este ano, Maciel, da Pousada dos Surfistas recebeu 15 operadoras de turismo num fim de semana para discutir pacotes para a estação da baleia. “É uma mudança e tanto. Tomara que a coisa decole”, diz. Uma das coisas que ele vai mostrar aos visitantes são os planos para criar uma operadora de observação de baleias de terra que leva o turista a cavalo para pontos estratégicos da orla. Os sinais são bons, mas mesmo estes hoteleiros acham que ainda há muito a ser feito. “Falta equipamento”, diz Sehn. “Como barcos maiores para levar gente ao mar com mais conforto”. Silvestre lembra também que as trilhas terrestres precisam de cuidados. “Elas já existem, mas são mal conservadas e as placas que existem podiam ser bem mais informativas”, reclama. E Truda, como é de praxe, vai mais longe: “Ainda falta tudo”.
Maciel acha que o sarcasmo de Truda é típico do “sujeito que está pensando na frente”. Segundo o hoteleiro, “ lá atrás, quando a volta das baleias à nossa costa não passava de uma dúvida, ele já falava que elas iriam gerar renda para a região”. Truda é um velho estudioso do assunto. Começou pela regulação da observação de baleias e ajudou a escrever as normas que hoje estão em vigor no Brasil. Elas são um primor de correção ecoturística. Os barcos só podem se aproximar até 250 metros dela. Daí em diante têm que desligar os motores e ficar ao sabor das ondas e do humor da baleia. Qualquer barulho, exceto conversa, é proibido. Qualquer iniciativa de contato por parte dos humanos, também. Um encontro mais próximo, só se ela quiser.
O financiamento da Fundação O Boticário permitiu que Truda e sua equipe expandissem seu conhecimento sobre a indústria de observação de baleias para além da pura regulamentação. Pesquisaram também o comportamento dos bichos durante os encontros com os barcos e instrumentos caoaz de fazer o turismo contribuir para a preservação da espécie. Desse projeto, saiu um trabalho de pesquisa de longo prazo conduzido por Karina Grosch, que agora está servindo de base à sua tese de doutorado. Ela e Truda foram no início de julho até o Nordeste da Austrália, na grande barreira de corais, fazer um mergulho com baleias Mink.
Sabem que a idéia não pode ser reproduzida aqui com as francas. “Elas se estressam com gente mergulhando perto”, diz a pesquisadora, explicando que eles vão aproveitar a estadia para aprender outras coisas. “É bom conhecer a logística da operação. Trata-se de um programa de turismo que financia a pesquisa científica”. Nada disso quer dizer que Truda está mudando de idéia e pensando lançar o Projeto Baleia Franca na onda do turismo de observação. “Nosso papel é o de fazer pesquisas sobre a baleia e, no máximo, prestar assessoria técnica ao Ibama e aos operadores de turismo”, diz.
Nesses anos todos de dedicação ao assunto, ele ficou conhecido pela intransigância com que vela o rigor científico no trabalho de sua ONG. Mais um paradoxo de sua personalidade, porque ele nada tem de cientista. “O que eu sei sobre a baleia franca aprtendi lendo e observando. Treinamento formal eu só tive durante estágio que fiz na Península de Valdez, na Argentina”, ele avisa, com a autoridade que quem é consultado regularmente sobre a matéria por especialistas no resto da América do Sul, na Austrália e nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, virou voz influente em programas de conservação marinha.
“Tudo o que sou devo às baleias”, diz Truda. “Não fossem elas, não teria conhecido cientistas, nem teria ganho entrada nas áreas de conservação do governo. As francas me fizeram membro até da delegação brasileira na Comissão Internacional de Baleias”. Por conta dela, passou o mês de junho inteiro Ulsan, na Coréia do Norte. Com a diplomacia de sempre: “A cidade é suja, as mulheres são feias e a cerveja é horrorosa”, afirma. Truda partiu para lá meio pessimista. Tinha certeza que o Japão – principal país a defender a volta da caça e que nos últimos anos conseguiu angariar apoio de países pobres ao seu projeto em troca de ajuda econômica – chegaria à reunião com força para fazer valer seus pontos de vista e enterrar de vez a idéia de se criar um santuário para os mamíferos no Atlântico Sul.
Sem qualquer apoio direto do governo brasileiro, Truda fez campanha contra os japoneses e seus aliados pela Internet e ajudou a negociar a posição de várias delegações presentes ao encontro. Resultado, onde esperava uma retumbante derrota, colheu importantes vitórias. O plenário rejeitou todas as idéias colocadas em votação pelo Japão. Manteve aberta a discussão sobre o santuário e, de quebra, repreendeu o país por sua intenção de dobrar a cota de baleias que captura todos os anos valendo-se de regulamentação que permite a caça para pesquisas científicas. Nada mal para quem até hoje, quando lhe perguntam o que faz na vida, responde que é jardineiro, “embora ande sem tempo para exercer minha profissão”.
* Esta reportagem faz parte de um livro sobre os 15 anos da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza.
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