Reportagens

Turismo de fronteira

O governo do Amapá diz que a ponte que ligará o Brasil a Guiana Francesa unirá o paraíso caribenho à Amazônia, mas desconhece o potencial turístico da região.

Carolina Elia ·
4 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

Cheguei ao Oiapoque na tarde de 20 de julho depois de uma viagem de cinco dias ao Parque Nacional do Cabo Orange, no extremo norte do Amapá. O corpo doía. Eu tinha passado seis horas sentada numa lancha pequena ,exposta a sol e chuva, depois de dormir quatro noites em rede feita para garimpeiro ou ao relento, na parte de cima de barcos de pescadores. Tudo o que eu queria era descansar, mas a notícia de que naquela noite haveria uma reunião com a secretária de Turismo do estado, Fátima Palaes, no prédio da prefeitura, provocou uma mudança de planos.

Apesar da fama adquirida nos livros de geografia, a cidade do Oiapoque (foto abaixo) não parece estar incluída no mapa dos governantes. Não há esgoto, nenhuma rua é asfaltada e o lixo tem como principal destino o rio Oiapoque, que separa o Brasil do território francês. A cidade se sustenta do comércio gerado pelos garimpos próximos (incluindo prostituição) e das compras em euro feitas por turistas e franceses que cruzam a fronteira para comprar artigos mais baratos. Ainda assim, não há casa de câmbio oficial. A oeste existe o Parque Nacional do Tumucumaque, a leste fica o do Cabo Orange, mas eles ainda não são tratados como grandes atrativos. A curiosidade de saber o que a secretária de Turismo tinha a dizer pessoalmente àquela comunidade superou o meu cansaço.

Numa sala abarrotada, ouvi que no último dia 15 de julho o presidente Lula assinou na França um acordo binacional para a construção de uma ponte de 360 metros que ligará a cidade de Saint George, na Guiana, ao Oiapoque. O projeto, orçado em 4,5 milhões de reais foi apresentada como “uma aventura do paraíso amazônico ao paraíso caribenho”, mas a secretária Fátima Palaes não soube responder qual aventura na Amazônia brasileira os governos estadual e federal pretendem oferecer aos turistas que chegarem até ali. Talvez ela devesse conhecer o Parque Nacional do Cabo Orange.

A aventura é garantida pela dificuldade de acesso. Afinal, paraíso que se preze não pode ser fácil de chegar. Do Oiapoque à vila de pescadores de Taperebá, que fica dentro do parque e abriga a sede do Ibama, leva-se 18 horas de viagem em um barco de pescador. O tempo de viagem cai para um terço se o trajeto for feito em uma lancha do tipo voadeira. As outras duas opções são pela BR-156, que liga Oiapoque a Macapá. Para quem sai da capital, o jeito é subir 330 km até chegar ao município de Calçoene, de onde se segue por uma estrada rural até a Vila de Cunani, no extremo sul do parque. Para quem sai do Oiapoque, primeiro se enfrenta 120 km de terra e depois mais 70 km num barco pelo rio Calçoene até Vila Velha, que faz divisa com a parte oeste da unidade. Em época de chuva a estrada é intransitável e a única opção é fazer Vila Velha-Oiapoque de barco, o que significa três a quatro dias de viagem.

O Ibama submeteu um grupo de jornalistas à primeira opção, que possibilita conhecer o acidente geográfico que dá nome ao parque e marca o começo do litoral brasileiro. Entre os séculos XVI e XIX, esse naco de terra à beira do rio Oiapoque foi disputado por portugueses, franceses, espanhóis, ingleses e holandeses. Acabou sendo batizado diversas vezes, em diferentes línguas, mas o nome que ficou foi Cabo Orange, dado em 1625 pelo batavo Johannes de Laet em homenagem à realeza holandesa. No fim do século XIX, esse braço de terra tornou-se oficialmente território brasileiro e em 1980 virou cartão de visita do então recém-criado Parque Nacional do Cabo Orange, que protege a maior e mais bem preservada extensão de mangue do país.

Mangue de proporções amazônicas, com árvores de 30 metros de altura e que já sumiu até com um forte holandês. Dizem que a construção foi engolida pela floresta, capaz de se expandir sobre o mar, um fenômeno característico do Amapá. No sul do estado, o rio Amazonas despeja uma carga de sedimentos que é depositada na costa por uma corrente que sobe em direção ao Caribe. Na época da seca, as árvores fincam suas raízes nesses barrancos recém-formados e como quem não quer nada aumentam o território nacional. Uma evidência dessa grilagem natural é a localização do farol construído em 1997 pela Marinha na ponta do Cabo. Atualmente essa torre de tubos metálicos está a mais de um quilômetro da extremidade do Cabo e se encontra cercada por uma mata que fica cada vez mais jovem à medida que se aproxima do mar (veja o vídeo, em .mpg, com 2.5 Mb).

“Com a data de construção do forte e o cálculo da velocidade do crescimento da mata, podemos ter uma idéia da localização das ruínas”, conta Ricardo, um oceanógrafo carioca que há três anos trabalha no parque. “Encontrando o forte, o parque está salvo. Dificilmente a Holanda não contribuirá para preservá-lo”, completa. Ricardo é um dos três funcionários recém-concursados do Ibama responsáveis por proteger e administrar o Parque Nacional do Cabo Orange: uma área de 619 mil hectares, com faixa litorânea de 200 km de extensão e uma área de proteção marinha que avança 10 km, ou seis milhas, mar adentro. Cuidar desse patrimônio custa caro e exige equipamentos e uma quantidade de funcionários que o Ibama não tem.

Os dois primeiros problemas começaram a ser amenizados este ano com a execução do ARPA (Áreas Protegidas da Amazônia), um programa que aplica em unidades de conservação recursos doados por instituições internacionais. O dinheiro é destinado à compra de bens e serviços necessários para melhorar o funcionamento de 48 parques e reservas na região. No caso de Cabo Orange, a administração do parque solicitou no primeiro trimestre de 2005 um barco com cabines para ser utilizado na fiscalização da costa e no combate a incêndios, que têm como período mais crítico os meses de setembro a novembro. O chefe do parque, Marcos Cunha, contava com a embarcação ainda para este ano, mas Fábio Leite, gerente do programa Arpa, acha que só conseguirá entregá-la em novembro por causa de atrasos burocráticos.

“Se faltar equipamento correto de transporte, corremos o risco de repetir os mesmos erros do ano passado”, diz Marcos. Incêndios criminosos ameaçam o parque. Eles são iniciados normalmente por caçadores, pescadores ou criadores de búfalo. Em 2004, foram detectados 408 focos dentro da unidade, seis vezes mais do que no ano anterior. A maioria surgiu a partir do mês de novembro, quando acabaram os recursos disponíveis para operações de prevenção. Não tinha mais verba para aluguel de embarcação, combustível e alimentação dos brigadistas.

Para este ano, o Ibama só conta por enquanto com três voadeiras. Provavelmente, o motor doado pelo ARPA para a lancha do parque chegará em tempo. Ainda assim, um barco maior fará falta. “No ano passado alugamos uma embarcação, mas tivemos dificuldades com a qualidade do serviço e em ter alguém que quisesse trabalhar para o Ibama, por motivos óbvios de perseguição após o termino do serviço”, conta Marcos.

Difícil mesmo é encontrar quem aceite alugar um barco para o Ibama realizar operações contra a pesca ilegal. A atividade é proibida dentro dos limites do parque e apenas as populações ribeirinhas podem praticá-la, ainda assim em quantidade restrita e com técnicas quase artesanais.

Por ser uma região de mangue, na foz de diversos rios, e conter água rica em nutrientes trazidos junto com os sedimentos, a área do Cabo Orange tem peixes diversos que se proliferam em abundância. Há espécies nobres como filhote, gurijuba, pescada amarela, e as de água doce como tucunaré, xaréu e pirarucu. Até peixe-boi dá por ali, tanto do tipo marinho quanto do amazônico.Também é fácil encontrar tartarugas, crustáceos, camarões e caranguejos. Estes últimos são muito caçados no Marrecal, uma área do litoral que serve como ninhal para diferentes tipos de aves. O Cabo Orange é um dos poucos lugares no Brasil onde se pode ver flamingos. Pássaros migratórios encontraram ali um pouso seguro para descansar, se reproduzir,e uma fartura alimentar que não existe mais nas redondezas.

“Os catadores de caranguejo ficam desesperados quando a gente vai lá e solta os animais. É o trabalho deles de três semanas voltando para as tocas”, relata Marcos Cunha. “Ao mesmo tempo, apreender o pescado é a melhor forma de repressão no Cabo Orange”, revela o chefe do parque. “No caso de pescador, a gente apreende a rede e tudo o que está nela. Assim dói no bolso”. Ano passado, o Ibama, em operação conjunta com a Polícia Federal, chegou a apreender redes de pesca de 50 km de extensão.

A maioria dos barcos pesqueiros de grande porte é de estados vizinhos como Pará e Maranhão, onde as melhores espécies de peixe se tornaram escassas. Para fugir da fiscalização, os pescadores aproveitam que a Marinha circula pouco por aquelas águas e navegam à noite em embarcações sem nome ou rebatizadas. Tem até pescador do Pará que deixa o barco na mão de ribeirinhos por saber que o Ibama costuma ser menos severo com eles. No momento, Marcos Cunha tenta firmar uma pareceria com as associações pesqueiras das cidades no entorno do parque para elas ajudarem a manter os barcos “estrangeiros” fora da unidade de conservação e protegerem seu próprio mercado. Um passo importante já foi dado. Os pescadores locais pararam de praticar a pesca de estacas, em que eles colocavam redes na boca dos igarapés.

Outro problema provocado pela pesca é o lixo das embarcações que vai parar na costa. No Marrecal, pássaros como o xexéo utilizam fios de redes de pesca abandonadas para fazer seus ninhos, que passaram a ganhar uma coloração azulada. Os pescadores forasteiros também aumentam a pressão por água doce. Eles entram nos igarapés atrás do recurso e degradam o ambiente e pescam em lugares proibidos.

No lago Maruani, onde se tem a ilusão de chegar a um mar de água doce depois de meia hora de navegação em igarapés estreitos, o Ibama recorreu à ajuda dos índios. A oeste o parque faz divisa com reservas indígenas que contribuem muito para a preservação do parque. No caso do lago, uma parte pertence à unidade de conservação e a outra à aldeia indígena de Cumarumã. Na época da seca, que se estende de agosto a novembro, o lago se torna a principal fonte de água doce das vilas de Taperebá e Vila Velha, mas os pescadores já aprenderam o caminho. Este ano, os índios vão ajudar a coibir a pesca no lago e a presença de embarcações não-ribeirinhas.

Na época da seca, o lago Maruani também se transforma na principal hospedagem da fauna do parque. Os jacarés açu, os maiores da América do Sul, ficam enfileirados nas margens para aproveitar o sol. As aves também ficam por ali à toa e é possível caminhar nos campos e avistar animais como anta, cutia, tamanduá-bandeira e preguiça.

Um cenário parecido se repete no sul do parque, no lago Tralhoto. Lá os turistas também teriam facilidade de observar animais. Para o geólogo Márcio Sousa, coordenador do levantamento para o plano de manejo do parque por parte do Instituto de Pesquisa do Amapá (IEPA), a região sul deve se revelar a mais propícia para o turismo. Ali há representações dos principais ecossistemas encontrados no parque – do mangue às manchas de cerrado – e, na seca, pequenas praias se formam perto de Cunani.

A previsão é de que o plano de manejo do parque fique pronto em 2006, o que permitirá preparar a unidade para receber turistas. O que o Cabo Orange tem a oferecer é um turismo de contemplação, como observação de pássaros. A atividade é pouco desenvolvida no Brasil, mas bastante popular lá fora. Em julho foi formado um conselho consultivo para o parque, com representantes das cidades de Oiapoque e Calçoene. O grupo tem desde taxistas a índios e numa coisa eles concordam: a adaptação do parque para receber um determinado fluxo de visitantes pode ser a verdadeira ponte entre o paraíso amazônico e o paraíso do euro. Pena que bicho não tenha cadeira no conselho.

Leia também

Reportagens
18 de dezembro de 2024

Congresso aprova marco da eólica offshore com incentivo ao carvão  

Câmara ressuscitou “jabutis” da privatização da Eletrobras e assegurou a contratação, até 2050, de termelétricas movidas a gás e carvão. Governo estuda veto

Notícias
18 de dezembro de 2024

Paul Watson, ativista contra a caça de baleias, deixa prisão na Groenlândia

O canadense, fundador de ONGs como Greenpeace e Sea Shepherd, estava preso há 5 meses por acusações do Japão relacionadas a embate com navio baleeiro, em 2010

Reportagens
18 de dezembro de 2024

ESEC Murici, em AL, fica mais de 2 meses sem fiscal após afastamento de chefe da unidade

Analista foi afastado da fiscalização por ação que culminou na demolição de terreiro em parque na Bahia; ele alega não ter percebido uso religioso do local e não ter tido direito à defesa

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.