Reportagens

Um resto de paraíso

Num pedaço de natureza que praticamente sumiu do litoral catarinense, dois irmãos, discípulos de José Lutzemberger, tentam conciliar economia e conservação.

Manoel Francisco Brito ·
16 de setembro de 2005 · 19 anos atrás

Para alguém que como eu passou pela última vez no município de Garopaba, próximo a Imbituba, na costa de Santa Catarina, há exatos 29 anos, o retorno foi um choque. É bem verdade que a memória, graças às trapaças da idade, anda me falhando ultimamente. Mas onde me lembrava de ter visto uma região linda, praticamente deserta e com muito mato, há uma semana atrás só vi casas, pousadas, uma infinidade delas, a maioria de aspecto caído, e bares. Terreno não ocupado, sobrava pouco. Boa parte virou pasto. Uma imagem de satélite que olhei depois confirmou minha sensação.

De verde mesmo, praticamente só restam os morros da região e uma área de 830 hectares que começa neles e chega até o mar, onde termina em três mil metros de frente de litoral ainda preservado que vai da praia da Barra/ Barrinha à do Ouvidor (foto). Lá, está uma fazenda gerida à distância por dois irmãos gaúchos, Franco e Justo Werlang. Sua mãe, de 75 anos, é que é a dona do pedaço. Os três moram em Porto Alegre, onde fica o principal negócio da família, uma distribuidora de rolamentos, a G. A. Werlang.. Na fazenda, numa parceria com a Fundação Gaia, criada pelo ambientalista José Lutzemberger, tentam provar que é possível conciliar atividade econômica e conservação. “Daqui até o sul da Bahia é impossível encontrar um lugar tão bem conservado como esse”, diz José Truda, coordenador do Projeto Baleia Franca e colunista do O Eco. Pode até ser um exagero. Mas o fato é que o terreno ainda guarda as marcas da natureza que conheci por ali há três décadas.

Rebatizada de Gaia Village, a fazenda trabalha com o manejo ecológico de uma manada de 350 búfalos e um projeto de expansão de suas áreas de floresta alimentado por um viveiro onde crescem mudas de 140 espécies nativas. Seus empregados também se dedicam à preservação do que ainda resta de cinco ecossistemas da região – lagoa, banhado, duna, mata de restinga e mata de costão rochoso. Quem comanda o dia-a-dia dessa operação é Dolizeti Zilli, 32 anos (foto). Ele chegou lá há quatro anos, vindo de Meleiro, também em Santa Catarina, onde era agricultor. Depois de anos mexendo, pelas suas contas, com 29 tipos diferentes de agrotóxicos, acabou doente. “Fiquei intoxicado a ponto de não poder trabalhar”, diz ele. Resolveu vir com a família para Garopaba e três meses depois estava trabalhando para os irmãos Werlang. Acha o máximo o que faz. “Um dia isso aqui será considerado um exemplo”, diz. Já deveria ser.

Num país onde boa parte da atividade pecuária ainda se expande derrubando mato para substitui-lo por pasto, Zilli sabe, por experiência, que é possível fazer diferente. O espaço utilizado pelos búfalos na fazenda diminuiu. Mas a produtividade do pasto cresceu sem qualquer investimento em tecnologia de ponta. O gado encontra-se numa área de 500 hectares, 40% dela de florestas nativas às quais antes tinham acesso. Elas foram protegidas por cerca eletrificada, o que deixou para pasto mesmo não mais que 200 hectares. Nesses quatro anos, graças a uma técnica criada na França, chamada de pastoreio voisin e implantada com a ajuda de Abdon Schimdt, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o terreno para pasto encolheu 30%. Os animais, em lotes de até 50 cabeças, se alimentam em piquetes de meio hectare onde ficam por apenas 24 horas. Os piquetes são reutilizados a cada 30 dias. O espaço ganho dos búfalos está sendo reflorestado, parte de um projeto para criar corredores ecológicos com pelo menos 100 metros de largura interligando as matas remanescentes na fazenda.

A idéia por detrás do manejo ecológico dos búfalos era produzir leite orgânico. Ela não foi abandonada, mas ficou para o futuro. Por enquanto, a fazenda vende suas crias para pequenos produtores de gado de corte da região. Os bichos, garante Zilli, estão praticamente livres de produtos químicos. São tratados à base de homeopatia. Mas os fazendeiros que os compram para engorda e abate não vendem sua carne como orgânica. “Os frigoríficos daqui não têm estrutura para captar esse tipo de produção”, diz. É dessa atividade que a fazenda tira um naco de renda para o seu sustento. Um outro pedaço vem da produção de mel orgânico nas florestas da fazenda. Ela é tocada por oito apicultores que pagam 10% do que produzem para utilizar o local. Mas o grosso do dinheiro que faz a Gaia Village sobreviver ainda vem do bolso dos irmãos Werlang.

“O reflorestamento não dá dinheiro”, lembra Zilli. “É uma iniciativa nossa. As 140 espécies que criamos em nosso viveiro (foto), por exemplo, só nós utilizamos”. Além disso, há outros projetos que estão sendo tocados na fazenda e que, muito embora façam sentido ecológico e econômico ao mesmo tempo, ainda estão longe de garantir alguma rentabilidade. Os prejuízos de curto e médio prazo não preocupam Franco Werlang. Não é que ele e seu irmão não liguem para o dinheiro. “As despesas são administradas no detalhe”, diz. Mas seus olhos estão no longo prazo. “Estamos investindo capital para gerar valor. Em algum momento, ele vai aparecer”, afirma com voz de quem tem certeza que a economia, e um certo comportamento ético, estão do seu lado. Ele dá como exemplo o projeto de criar um pátio de compostagem para a produção de adubo orgânico. A equipe da Gaia Village levou a idéia para a prefeitura de Garopaba há 4 anos. 

No princípio, a burocracia municipal não se sensibilizou muito. Resolveram bancar sozinhos o projeto, certos de que a lógica estava do seu lado. Durante o periodo de veraneio a cidade de Garopaba ‘importa’ enorme quantidade de comida para alimentar as cerca de 100 mil pessoas que vão para lá. Cinquenta por cento desta comida vai para o lixo. “Compostando esta enorme carga de material organico, fazendo adubo se elimina o problema do lixo, se gera saude, emprego e riqueza na regiao e mais ainda um lugar lindo, preservado”, diz Werlang, que aliás entende muito bem de números e geração de valor. Foi economista do BNDES no Rio e trabalhou em empresas de porte, como a Cataguazes-Leopoldina. Para começar o trabalho na Gaia Village, alistou-se a ajuda de seis restaurantes da região. Dois anos depois, a prefeitura encampou a idéia. Infelizmente, não por muito tempo. Em 2004, o candidato de outro partido ganhou a eleição e o projeto foi abandonado. Werlang acha que a paralisação será temporária. “A coisa, além de ter sentido, tem apoio da população local”, diz.

Na Gaia Village ele deixou uma herança, um banheiro equipado com latrinas secas numa das três casas recicladas – foram trazidas de demolições no interior do estado – construídas no terreno. O banheiro tem duas latrinas (foto). Utiliza-se uma de cada vez, por um período de cinco, seis meses. Os dejetos, coletados em uma gaveta, são cobertos com serragem. Depois desse tempo, a que estava em uso é trancada e o material fica se decompondo dentro da caixa coletora por período igual enquanto se usa a outra latrina.

Ao fim desse período, retira-se a caixa e o adubo está pronto. “Não dá cheiro”, garante Zilli. E não dá mesmo. Pelo menos meu nariz não sentiu nenhum quando estive por lá, embora a descrição que me foi feita de seu funcionamento me fizesse duvidar disso. Soube depois que não era a única pessoa a ter alguma resistência ao conceito. “Os Werlang doaram um posto de salvamento aos bombeiros na praia do Ouvidor”, conta Truda. “Foi uma dificuldade fazer os salva-vidas usarem a latrina seca”.

A Gaia Village está longe de ser um acidente. Franco e Justo Werlang cresceram numa família que sempre teve olho para a conservação da natureza. Seu pai, morto em 1989, começou a comprar a área onde está a fazenda, um pedacinho de cada vez, em 1968. Recuperou solo danificado por plantação de mandioca e combateu a caça. Sua mãe, hoje com 75 anos de idade, cuida de uma horta orgânica em sua casa em Porto Alegre e produz mensalmente 400 mudas. Parte delas abastece o viveiro da fazenda em Garopaba. Ainda assim, Franco Werlang chegou a ficar tentado a passar o terreno nos cobres. “Aquela área já era muito valorizada quando meu pai morreu”, conta. “Recebemos uma oferta por ela de um suíço. Só não fechei o negócio porque a mãe e o Justo resistiram”. Decidida a manter a propriedade, a família viu-se diante da necessidade de descobrir o que fazer com ela.

Imaginaram implantar na fazenda um projeto ecológico e foram procurar Lutzemberger. Mas tinham dificuldade de chegar até ele. No máximo, conversavam com seus assessores diretos. Queriam ver o homem. “Não queríamos só ouvir os técnicos. Tínhamos que falar com a pessoa que tinha a visão”, lembra Franco Werlang. “Até porque essa coisa de buscar uma vertente ecológica é complexa”. Insiste daqui e dali, e finalmente, em meados dos anos 90, Lutzemberger concordou em ver pessoalmente os dois irmãos. Foi convidado para um jantar na casa de Justo. “Lutz estava estressado e nós concordamos em tudo, exceto num ponto, quando ele disse que os empresários serviam para predar a natureza”, conta Werlang. A desavença, aparentemente, fez Lutzemberger se interessar mais pela proposta. Foi sobrevoar a área da fazenda e ficou fascinado.

Mas não entregou o projeto que os Werlang, principalmente Franco, tanto queriam. “Lutz sempre teve a idéia de que não é possível ter um projeto pronto. É preciso uma interação com o organismo vivo para se saber o que é possível fazer”, diz ele.

Na Gaia Village, já se fez muito, como reconhecem até aqueles que acham que a natureza está aí apenas para ser explorada. A pressão de pessoas para utilizar esse pequeno paraíso conservado no litoral de Santa Catarina aumenta a cada ano. Os Werlang precisaram contratar guardas para manter caçadores ou gente que quer estacionar ou acampar no terreno, ou deslizar em sandboards pelas dunas da propriedade (foto). A imprensa local critica os irmãos. Chamam os dois de “estrangeiros” que querem impedir a diversão no verão catarinense. Mas a repressão é mais do que justificada. Zilli e sua equipe fizeram um árduo trabalho de contenção e reflorestamento das dunas, por exemplo. Cada vez que alguém desliza sobre elas num sandboard, além de afetar a vegetação, abre sulcos que comprometem sua estabilidade. “A turma não preservou o seu e agora querem vir se divertir às custas de quem ainda garante um mínimo de sobrevida ao que resta de natureza nativa por aqui”, diz Truda.

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