Reportagens

O mico do Incra

Reforma agrária às margens de Poço das Antas, santuário dos micos-leões dourados no estado do Rio, trouxe pobreza para os homens e destruição para a mata.

Priscila Geha Steffen ·
30 de setembro de 2005 · 19 anos atrás

“Improdutiva” é palavra mágica para os sem-terra e o Incra. A terra é improdutiva? Pronto: cria-se ali um assentamento. Muitas vezes, sem se preocupar se ela é improdutiva porque o solo é impróprio para o cultivo. Quando isso acontece, em vez de resolver uma injustiça social, cria-se um novo problema. E se a apressada reforma agrária é feita às margens de uma Reserva Biológica, o problema social vira ameaça ambiental. Ou seja, todo mundo sai perdendo.

Este é o script dos assentamentos criados pelo Incra no município de Silva Jardim, a 120 km do Rio de Janeiro. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) ganhou mais um quinhão de Brasil na vizinhança de Poço das Antas, uma reserva criada na década de 70 para evitar a extinção dos micos-leões dourados. Desde 1997, uma liminar proíbe novos assentamentos no entorno da reserva biológica. Mas os antigos permanecem. Por enquanto.

O Ministério Público Federal estuda o que fazer com as 248 famílias instaladas no lugar. Um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com o Ibama e o Incra deve propor uma solução para o conflito de interesses. A reserva quer ampliar a área de proteção dos micos-leões, criando corredores ecológicos, e de quebra se livrar do desmatamento e queimadas provocados pelos assentados. Estes também não estão satisfeitos com a situação. Muitos querem distância daquelas terras.

No assentamento Sebastião Lan, com 30 famílias cadastradas em uma área de 520 hectares, a maior parte dos moradores afirma que não planta nada há dois anos. Culpam uma as fortes chuvas de verão pelo estado da terra e dizem estar com dívidas junto ao Pronaf – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. Antes disso, a única cultura era de aipim. Iracema da Silva Paraíso, que está há oito anos no assentamento com o marido e oito filhos, torce para que os estudos propostos pelo TAC proíbam a permanência deles lá. “A gente está numa situação difícil, porque não tem de onde tirar, como trabalhar. Eu espero que eles transfiram a gente para uma terra melhor porque não tem como plantar aqui”, reclama.

Já do outro lado do canal do rio São João, no acampamento Sebastião Lan II, que tem 72 famílias em 1.600 hectares, o desejo é outro. Os sem-terra esperam há oito anos pela oficialização do assentamento. “Quem resistiu esse tempo todo, eu não acredito que queira sair”, diz o acampado Alencar Barbosa Gomes.

Estudos vão analisar a viabilidade agrícola e econômica das terras, e as condições para a preservação da floresta. Mas o prazo é a perder de vista. Só daqui a 120 dias a área deve começar a ser analisada. Depois, são mais dois meses para o diagnóstico ficar pronto. Mas não é preciso ser perito para constatar a falta de produtividade do solo. Nenhuma plantação em larga escala à vista, a não ser uma pequena porção de abacaxis em um lote do assentamento, e outros poucos no acampamento. De acordo com o Ibama, a maioria dos moradores trabalha nas cidades vizinhas ou faz “bicos” no próprio assentamento.

Apenas 2 metros separam a reforma agrária da conservação ambiental. É esta a largura do rio Aldeia Velha, na divisa entre o acampamento Sebastião Lan II e a reserva de Poço das Antas. Ano após ano, o fogo consome a mata pelas beiradas. Em 1997, 2000 e 2002 foram registrados três grandes incêndios no local. “O de 2002 foi o maior que já tivemos na reserva. Foram queimados quase 1.300 hectares. Isso é significativo para uma reserva que tem 5.500 hectares”, afirma Rodrigo Mayerhofer, chefe de Poço das Antas. Uma perícia da Polícia Federal indicou que o fogo partiu do acampamento, ateado para limpar o terreno na expectativa de plantar algo. A história se repete este ano. No final de agosto, a reportagem de O Eco viu pelo menos quatro queimadas florestais no caminho de 23 km da estrada de terra que liga o acampamento e o assentamento.

A Associação Mico-Leão Dourado, que cuida da reserva em parceria com o Ibama, denuncia o abandono a que o Incra submete as famílias. “Antes de assentar, quando eles ainda estão acampados, existe organização. Mas depois que o Incra assenta o objetivo já não é mais comum e sim individual. Aquele espírito de trabalho em conjunto, em grupo, se perde no meio do caminho”, explica Maria Inês da Silva Bento, filha de um assentado que trabalha há mais de dez anos na Associação. Ela participa de um programa de extensão ambiental para conscientizar os assentados e ajudá-los a implantar cultivos que não agridam a natureza. Mas atualmente nenhum projeto está sendo realizado perto da reserva. No assentamento Aldeia Velha, que fica mais afastado e já foi emancipado pelo Incra, foram implantados Sistemas Agroflorestais, que não usam agrotóxicos e garantem a diversidade no plantio, e um viveiro de mudas com espécies frutíferas e árvores para reflorestamento. “Cinqüenta e nove famílias foram capacitadas para estas atividades sustentáveis. No acampamento e no assentamento Sebastião Lan foi feito um reflorestamento na mata ciliar do rio São João e a implantação de um viveiro. Mas as coisas não estão funcionando desde a enchente de 2002. Eles não estão produzindo nada e se encontram em total dificuldade. Fica difícil falar em meio ambiente se eles não têm nada em casa para comer”, diz Maria Inês.

O superintendente do Incra no Rio de Janeiro, Mário Lúcio Melo, reconhece que falta apoio técnico aos assentados, mas diz que isso vai mudar “o mais rápido possível”. Segundo ele, os assentamentos entrarão no projeto de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária (ATES), que incentiva a agroecologia, o plantio sem uso de agrotóxicos e a educação ambiental com os assentados. “Nós já temos os recursos para lá e já deveríamos estar atuando. A previsão é de que ainda em setembro comecem os trabalhos naqueles assentamentos”, afirmou, em agosto. Outubro chegou, e Mário Lúcio agora diz que o atraso se deve a problemas de documentação das empresas que prestarão assessoria técnica ao projeto. Ele faz questão de ressaltar que “o Incra, assim como toda a população brasileira, vem se sensibilizando com as questões ambientais”. Sobre a escolha de áreas impróprias para a reforma agrária, o superintendente do Incra informa que “existe toda uma revisão dos erros cometidos historicamente”.

O Instituto espera a decisão do Ministério Público para decidir o futuro dos assentamentos de Silva Jardim. “Ou o estudo vai provar que não podem existir assentamentos na área, daí teremos que retirar todo mundo. Pode ser também que permitam os assentamentos ou, o que é mais provável, que permitam com restrições, em menos área, com menos famílias, com determinados cultivos”, explica Mário Lúcio.

Para o primatólogo Adelmar Coimbra Filho, que redescobriu os micos-leões em Poço das Antas e lutou pela criação da Reserva Biológica, em 1974, os assentamentos são inaceitáveis. “O Incra colocou as famílias lá depois de a reserva já existir há quase 10 anos. Aquelas terras são de turfa, terreno ácido, imprestável para a agricultura”, critica. Para ele, a solução é simples: “Precisa comprar mais terras, comprar as fazendas, tirar os assentados de lá, meter árvore e tomar conta”, sentencia.

É mais ou menos o que planeja o chefe de Poço das Antas. Se o Ministério Público permitir, as terras dos assentamentos serão revertidas em corredores florestais. “Existe um grande fragmento de 2 mil hectares de mata depois do assentamento Sebastião Lan, na Fazenda Arizona. Se esta área for liberada, a primeira medida será fazer um grande corredor de reflorestamento conectado à fazenda”, diz Rodrigo Mayerhofer.

Como a região tem grandes fazendas, o Ibama e a Associação Mico-Leão Dourado incentivam a criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs). Já existem 17 reservas particulares no entorno de Poço das Antas, cobrindo uma área de 2.475 hectares. Pesquisas mostram que para o mico-leão dourado livrar-se do risco de extinção é necessária uma população de 2 mil animais vivendo em 25 mil hectares de mata atlântica. Por enquanto, há menos micos em menos floresta. Poço das Antes, sua vizinha Reserva Biológica União (criada em 1998 com 3.126 hectares) e as florestas particulares, somadas, oferecem 15 mil hectares para os cerca de 1.200 micos-leões que moram na região.

Luis Nelson Cardoso, proprietário da Fazenda Bom Retiro, em frente à entrada da reserva, foi um dos primeiros a acreditar nesta idéia. Ambientalista há 20 anos, levou oito para conseguir transformar 494 hectares da sua fazenda (91% da área total) em reserva ambiental, por causa da burocracia. Antes mesmo de oficializar sua RPPN, ele colocou uma placa em verde e amarelo na entrada da propriedade, onde se lê “Reserva Permanente dos Recursos Naturais”. Luis Nelson já viajou por vários estados dando palestras e fazendo trabalho de educação ambiental em escolas. Hoje é coordenador de Educação Ambiental da Secretaria de Meio Ambiente de Casimiro de Abreu e incentiva fazendeiros a também criarem suas reservas. “Tentamos convencer os proprietários de Aldeia Velha a, mesmo sem criar uma RPPN, dispor de uma área florestada da fazenda deles para colocar o mico-leão. Seis deles concordaram em deixar a floresta em pé, o que representa uma área de 1.300 hectares. Foi o maior presente que a gente já recebeu”, conta Luis Nelson.

A parceria com a Associação e o apoio de fazendeiros não escondem as graves restrições de infra-estrutura que o Ibama enfrenta para manter a Reserva. Este ano, até julho, Poço das Antas recebeu apenas 8 mil reais do governo federal. “O recurso é muito baixo para fazer o que tem que ser feito. Já passei um ano inteiro aqui com 7 mil reais, em 1999. Eu precisaria de uns 700 mil reais por ano para fazer um trabalho bem feito”, diz Rodrigo Mayerhofer.

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