Reportagens

Pisando em caranguejos

Arthur Soffiati percorreu 150 quilômetros a pé para mapear os manguezais da região dos Lagos, no estado do Rio. O Eco publica seu diagnóstico inédito.

Lorenzo Aldé ·
30 de setembro de 2005 · 19 anos atrás

Entre 1994 e 2001, Arthur Soffiati percorreu o norte do estado do Rio de Janeiro de cabo a rabo. A grande planície e suas fartas águas foram o cenário de suas teses de mestrado e doutorado. Na primeira, falou da história ambiental da região, como um todo. Na segunda, deteve-se nos manguezais. Sempre fiel ao método de investigação que considera ideal: meter os pés na estrada, no mato, no mangue, munido apenas de gravador e máquina fotográfica.

Depois de sete anos esmiuçando cada curva de rio, rastro de caranguejo e raiz de árvore, era de se esperar que Soffiati, um dos maiores historiadores ambientais do país, quisesse um refresco. Que nada. “Nunca perco o interesse pelo mangue”, ele diz, para explicar o que o levou a continuar gastando sola de sapato na lama nos últimos quatro anos.

De lá para cá, aproveitou feriados e fins de semana para expandir sua busca solitária, caminhando até 30 km por dia atrás de manguezais acima e abaixo da área de sua pesquisa original.

Foi movido por uma inquietação científica: será que a escolha arbitrária de estudar os manguezais entre os rios Itapemirim, no Espírito Santo, e São João, no norte fluminense, tinha deixado de fora ecossistemas com identidade semelhante, que permitissem a ele ampliar a área geográfica de suas conclusões sobre a história ambiental da região? Sua tese de doutorado, publicada em 2001, baseou-se numa delimitação histórica: a das capitanias hereditárias. Os mangues que destrinchou estavam dentro do que um dia foi a Capitania de São Tomé. Mas como Portugal desenhou o traçado das capitanias com linhas retas, sem levar em conta nenhum acidente geográfico, a dúvida ficou em sua cabeça.

Para o sul, partiu do rio Una e atravessou praias e rios da região turística de Búzios, chegando até a Lagoa de Araruama e dando um pulo até Saquarema. A primeira caminhada foi feita em 2002, e outras quatro completaram o estudo dos mangues na Região dos Lagos, nos dois anos seguintes. Foram quase 150 quilômetros a pé. Para o norte, no Espírito Santo, ele foi obrigado, pela urgência do tempo, a alugar um carro e perseguir todas as pistas de manguezais entre o rio Itapemirim e a Baía de Guarapari, onde passou os feriados de Semana Santa em 2004 e 2005. “Enquanto todo mundo se distraía, eu aproveitei os quatro dias de cada feriado para completar minha pesquisa”, conta.

Mas ainda sobrou “uma espécie de buraco negro”. Soffiati não sossega enquanto não descobrir se existem manguezais entre o rio São João e o rio Uma, coisa de poucos quilômetros. É um terreno da Marinha, e ele ainda não teve tempo de arranjar uma permissão de acesso. “As informações que me dão é que não existe nada ali, mas não confio nelas. Da estrada vejo alguns córregos, num deles achei exemplares de mangue branco, por isso acredito que existam. Aliás, foi por não confiar em informações erradas que acabei fazendo esses longos percursos e descobri que havia muita coisa escondida”, diz.

Foi o aconteceu em Mar do Norte, no município de Rio das Ostras. Soffiati parou ali para comer, no único restaurante à vista, e sentou-se ao lado de alguns pescadores. Aproveitou para perguntar se eles conheciam mangue nas redondezas. “Não existe manguezal aqui, não”, disseram. “Só para os lados do rio Macaé”, completaram, dando a entender que, pelo menos, sabiam identificar os mangues. Disseram também que nem adiantava tentar seguir por ali, porque à frente havia um costão rochoso “intransponível” e depois uma fazenda “cheia de jagunços”. O pesquisador não apenas subiu o costão como se surpreendeu ao encontrar um pequeno manguezal lá em cima. “O que você está fazendo aqui, rapaz?”, perguntou Soffiati, diretamente ao mangue. E que os desavisados não estranhem, porque até livros de poemas personificando os mangues e revelando seu apelo sexual o historiador já produziu. De certo foi uma semente desgarrada que chegou lá em cima, e acabou gerando o atípico mangue do costão.

Chegou em seguida à fazenda, pronto para enfrentar os jagunços. “Poder passar eu posso”, já ensaiava dizer, acostumado a ter que abrir passagem apelando para a legislação, que garante às praias o status de públicas. “Mas se apontarem uma arma, não viu dar uma de herói”. Não havia jagunço nenhum. Só um cachorro vira-latas que chegou latindo, mas logo já estava abanando o rabo. O que descobriu adiante foi uma paisagem de cair o queixo: mais de 10 quilômetros de restingas acompanhando uma praia maravilhosa, onde desaguavam três córregos, torrenciais por causa das chuvas, e límpidos. Um lugar deserto e totalmente preservado. Nada de mangue, mas a descoberta de uma área ainda íntegra em região tão degradada pelo turismo despertou-lhe uma conclusão na contramão: “Quanta coisa ainda há para destruir”, pensou. Quando contou à mulher, Vera, ela o corrigiu: “Quanta coisa a preservar!”. Soffiati tanto lhe deu razão, que tentou negociar com o município um plano de conservação daquele trecho de litoral, mas a conversa não andou.

O instinto pessimista tem seus motivos. No artigo que escreveu detalhando dez manguezais do Espírito Santo, publicado há um mês no O Eco, e neste inédito que envia agora esmiuçando o litoral da Região dos Lagos, no Rio, chama a atenção a variedade de agressões humanas aos mangues, testemunhadas em suas travessias. Mas isto quem conta melhor é a meticulosa escrita do próprio, nos links abaixo.

Por aqui, resta dizer que a hipótese de identidade entre os manguezais não se confirmou. “As diferenças geológicas são enormes. Ao sul do Espírito Santo e na Região dos Lagos, a serra chega muito perto do mar, em formações com pelo menos 600 milhões de anos. Ambas são áreas propícias ao turismo. O oposto da região que estudei primeiro, cuja formação é ‘recente’, de 60 milhões de anos, e não serve para turismo”, resume.

Em compensação, as novas viagens serviram para Soffiati completar um livro. A proposta é ser um texto paradidático, cuja publicação está negociando com o Ibama. Se chamará Os manguezais do sul do Espírito Santo e norte do Rio de Janeiro. Outro prestes a chegar ao público é O manguezal na História do Brasil, no momento nas mãos de editoras.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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