No ano passado, Maria Pereira recebeu uma visita de técnicos da prefeitura. Eles foram comunicá-la que, depois de muitos estudos, concluíram que sua casa fica em área de fronteira. Metade está dentro de um parque ambiental, metade pertence a uma favela. Assim não podia ser. Ela precisava escolher se, formalmente, preferia declarar-se moradora do parque ou da favela. E arcar com as conseqüências de sua decisão.
Seria cômico, não fosse mais um caso exemplar da bagunça que reina no Rio de Janeiro quando o assunto é urbanização. A metade da casa de dona Maria que fica dentro do Parque da Cidade, no meio da floresta que ainda existe na parte alta da Gávea, é ilegal. Ocupa um espaço público destinado à preservação ambiental. A outra metade, que integra a favela, não fica atrás. Pertence a uma ocupação de encosta feita às custas de desmatamento. Como quase toda favela carioca, a Vila Parque da Cidade desrespeita as leis ambientais.
Chamada a escolher entre as duas situações irregulares, dona Maria preferiu não tomar partido. Até porque já se acostumou com os surtos ordenadores da Prefeitura, que vêm e passam. “Todo ano é a mesma coisa. Eles chegam, dizem que estamos ilegais e ameaçam demolir”. Depois deixam ela lá, na casa que construiu há 35 anos com autorização da direção do parque, onde vive com seu filho.
Este ano, a ameaça vem do Ministério Público Estadual (MPE), que na semana passada deu um prazo de 20 dias para o prefeito César Maia apresentar um programa de remoção de 14 favelas do município, inclusive a Vila Parque da Cidade. São consideradas prioritárias por estarem crescendo rápido demais, por colocarem os moradores em risco ou por ocuparem áreas de encosta, floresta ou mananciais. Se o prefeito não cumprir a determinação, o MPE promete abrir uma ação na Justiça.
Provavelmente, é isso que vai acontecer. Não será o primeiro processo acusando a Prefeitura de omissão pelo crescimento de moradias irregulares nos quatro cantos do Rio de Janeiro. Em 1991, por exemplo, foram abertas duas Ações Civis Públicas relativas à expansão da Vila Verde, na Rocinha, e da favela do Vidigal sobre a avenida Niemeyer. Até hoje, não foram julgadas nem em primeira instância.
E não é só a morosidade da Justiça que confere ao prefeito a tranqüilidade de continuar de olhos fechados para o problema. A julgar pelos discursos de César Maia e de seu secretário de Urbanismo, Alfredo Sirkis, as favelas que se espalham pelos morros e devoram as florestas cariocas pararam de crescer há quatro anos. Foi quando a prefeitura implantou os chamados “eco-limites”, um modelo de sucesso, segundo eles. O projeto é simples. Consiste na instalação de estacas, cercas e arames nos limites superiores das comunidades. No entanto, mapas do Instituto Pereira Passos (IPP), órgão da própria Prefeitura, mostram a evolução ininterrupta das ocupações irregulares na Zona Sul da cidade: de 1975 a 1985, depois 1995, 1999 e 2004 (clique na imagem ao lado para ver os mapas, em arquivo .swf de 500Kb).
“Só na Rocinha existem 70 construções fora dos eco-limites. A prefeitura alega que elas estão lá desde antes de 2001, mas presidentes de associações de moradores da favela nos informaram que a expansão prossegue neste momento”, diz Carlos Frederico Saturnino, promotor de Meio Ambiente do Ministério Público.
Além disso, os eco-limites só foram instalados de um lado da Rocinha, o de São Conrado. Nas outras duas vertentes da favela, que vão dar na Gávea e no Vidigal, não há restrições físicas para a expansão. Coincidência ou não, são essas as áreas onde quem manda são os traficantes de drogas. No Vidigal, fotos aéreas e incursões na favela revelaram mais de 20 pontos de crescimento sobre as áreas de floresta.
Quando a favela já está consolidada e a Justiça manda removê-la em última instância, o argumento da prefeitura é outro: faltam recursos para indenizar as famílias. É o que acontece na Vila Alice, no bairro de Laranjeiras, onde 83 casas ocupam Área de Proteção Ambiental (APA). Além de ser questionável o direito dos moradores de receber dinheiro para se retirar de uma área invadida, a desculpa da verba escassa parece um tanto frágil para um prefeito que sempre vendeu a imagem de bom gestor financeiro, administrador “de cofre cheio”.
Será que, neste caso, o que entra na contabilidade da prefeitura é o custo dos votos que se perdem com medidas impopulares? “Como representante do Ministério Público, não me cabe comentar as motivações políticas envolvidas. O que posso dizer é que administrar é eleger prioridades. E, certamente, esta não é uma prioridade para a atual administração”, opina Saturnino.
Os sinais de descaso da política ambiental são visíveis nas áreas destinadas a proteger o que resta de verde no Rio. No Parque da Cidade, acabaram os convênios com as firmas terceirizadas que cuidavam da limpeza e da portaria. Quando um dos dois guardas municipais responsáveis por fiscalizar toda a área não está por perto, o portão é caminho aberto para quem quiser. Carregando o que quiser. Inclusive material de construção, que se acumula a olhos vistos na imprecisa zona onde o parque vira favela.
Pela entrada principal do parque também anda passando madeira, muita madeira. Seguem a pleno vapor as construções no condomínio Canto e Mello, aprazível recanto particular com casas e bangalôs de classe média-alta. Para chegar lá, o único acesso é o Parque da Cidade. É só dobrar à direita e subir por cerca de dez minutos de carro numa tortuosa estradinha de terra. Não fica claro em que momento o parque público deixa de ser público, mas a partir de certo ponto surgem sucessivas placas de “Propriedade Particular” e “Não Entre”. Mas vale a pena seguir em frente. No meio da floresta, abre-se uma clareira na qual desponta um amplo gramado, em torno do qual estão oito construções, todas em madeira.
“São toras de eucalipto”, informou um guarda municipal do Parque da Cidade, que no entanto disse nunca ter visto a madeira passando pelo portão de entrada. E também não quis criar problemas com os proprietários, indicando o caminho mas deixando-me seguir sozinho estrada acima. Quando cheguei, operários trabalhavam na ampliação de uma varanda. Uma casa recém-construída, na parte baixa do terreno, comprova que o loteamento promovido por Raul Canto e Mello está aberto a novos moradores (foto abaixo).
Tudo irregular. “O condomínio está acima da cota 100 de metros de altitude, área de preservação permanente e não edificante, nos limites do Parque Nacional da Floresta da Tijuca. Sua construção implicou em devastação de área cuja vegetação nativa era típica de mata atlântica”, explica o promotor Saturnino.
Ele diz que o caso também já inspirou uma ação civil pública. Como os processos da Rocinha e do Vidigal, foi aberta em 1991. Como os outros, espera o julgamento em primeiro grau até hoje. “Catorze anos depois, o Poder Judiciário ainda não deu resposta à sociedade sobre o problema”, lamenta.
A Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMAC), responsável pelo Parque da Cidade, não respondeu às perguntas de O Eco até o fechamento desta edição.
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